E a morte aqui tão perto

O terrorismo na Europa vem demonstrar que os problemas dos outros, os que vivem na outra margem do Mediterrâneo, também são nossos.

Afinal já não fui jantar ao Le Petit Cambodge no sábado passado. No dia anterior houve um atentado terrorista nesse restaurante. Mas também em bares, numa casa de concertos. Nas ruas. Morreram muitas pessoas, podia ter sido eu, podia ter sido qualquer um. Os terroristas atentaram no coração da Paris parisiense e não em locais turísticos mais icónicos. Atacaram directamente o modo de vida desta cidade, de muitas outras cidades. Paris é também a cidade da Torre Eiffel ou do Louvre, mas o que a torna especial são as múltiplas pequenas coisas que a compõem. As livrarias e alfarrabistas, as lojas de antiguidades, as casas de vinho, as queijarias e charcutarias, os restaurantes, as pastelarias, as chocolatarias, as galerias de arte, as exposições de fotografia, as feiras de rua, as esplanadas, os parques infantis, os jardins. Em Paris não apetece ir à FNAC. Muito menos ao Colombo. As pessoas vão para a rua, para os canais de água, para o rio. Se não gostasse tanto de Lisboa elegeria Paris como a minha cidade favorita.

O Jardim das Plantas estava fechado no domingo. Talvez só lá tenha ido para me aproximar do epicentro da tragédia. Atravesso o rio, passo por uma feira de velharias, só me deixam entrar depois de me revistarem. “Tem de ser”, dizem-me os seguranças. De manhã já tinha sido assim quando fui ao supermercado do centro comercial. Passo pela Bastilha, símbolo do progresso político e social das civilizações ocidentais, desaguo no Bataclan, onde na sexta-feira à noite o terror obscurantista e ignominioso do ISIS tolheu várias dezenas de vidas. Uma multidão ocupa agora as avenidas Voltaire e Richard-Lenoir. Foram prestar homenagem às vítimas, em silêncio. Velas, flores, desenhos no chão, mensagens em francês, alemão, inglês, português, espanhol, árabe. Há por ali muitos altares. Há quem chore, se abrace, olhe para o que aconteceu para tentar perceber. Os olhares são absortos, perplexos, destemidos e receosos. Estar ali é um gesto de resistência, de fraternidade, um grito de revolta e de desespero. Um grito de indignação.

As pessoas que morreram eram-nos próximas, aos franceses, portugueses, italianos, suecos, espanhóis, australianos ou norte-americanos, porque perderam a vida a viver o modo de vida ocidental. E porque a morte no espaço público não é normal nas civilizações ocidentais. Uma vida humana tem o mesmo valor em Paris e Beirute, em Madrid e Bagdad, em Londres e Istambul. Não é a distância física que nos torna menos sensíveis às tragédias no Norte de África e no Médio Oriente, mas sim o facto de nos termos habituado a elas. Cinicamente, despudoradamente, desumanamente, sem dúvida. O terrorismo na Europa vem demonstrar que os problemas dos outros, os que vivem na outra margem do Mediterrâneo, também são nossos. Em parte porque o Ocidente contribuiu e continua a contribuir para a tragédia social e económica que se vive naquela região. Mas também porque se nada for feito acabaremos por abdicar, de uma forma ou de outra, do nosso modo de vida, dos nossos valores, da nossa liberdade.

Regresso a casa já de noite. As ruas do centro estão inundadas de carros da polícia, com as suas luzes e sirenes nervosas, de polícias e militares. Ouve-se um imperscrutável helicóptero. Dizem-me que não posso continuar, que tenho de seguir por outro caminho. “Não te aproximes de multidões, parece que estão com medo que aconteça alguma coisa”, informa-me um sôfrego transeunte. Talvez fosse melhor apanhar um táxi, o caminho ainda é longo. Na sexta-feira atacaram a Norte, hoje talvez venham para o lado Sul. Pela primeira vez na vida deparo-me de frente com a chantagem imanente do terrorismo. Decido regressar a pé. Com medo, mas a pé.

Sociólogo

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