Discriminação de trabalhadores domésticos é “memória do tempo da escravidão”

Em vésperas de terminar o seu mandato, o primeiro magistrado negro num tribunal superior brasileiro fala, em entrevista, dos temas laborais mais importantes dos últimos tempos no Brasil: a regulamentação do trabalho doméstico e a terciarização.

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O Brasil tem cerca de 7,2 milhões de trabalhadores domésticos Yasuyoshi CHIBA/AFP

Encontramo-lo em finais de Janeiro em Brasília, muito pouco tempo antes de deixar o cargo – atingiu o limite de idade, 70 anos, em final de Fevereiro. A protecção dos domésticos foi justamente uma das medidas laborais mais importantes e polémicas dos últimos tempos, sublinha. “Não há justificativa lógica, jurídica, social para que alguém que trabalhe em benefício de outrem saia discriminado em relação a outros”, diz. “É quase uma memória do tempo da escravidão. Como se o trabalho do trabalhador doméstico tivesse menos valia do que o desempenhado por um jardineiro, motorista de ônibus ou um dactilógrafo”.

Mestre e doutor em direito constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), região onde nasceu, Carlos Reis de Paula foi o primeiro negro a presidir ao Tribunal Superior do Trabalho (TST) e o primeiro magistrado negro num tribunal superior do país em 1998, o próprio TST (na próxima edição de domingo, o PÚBLICO publica uma reportagem sobre as desigualdades raciais no Brasil). 

Embora há um ano tenha sido aprovada uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que equipara os direitos dos domésticos aos outros trabalhadores - a chamada PEC das domésticas -, falta o Congresso ir mais além e aprovar a regulamentação que permitirá aplicar na prática items como o direito ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, um mecanismo que funciona como um subsídio de desemprego.

O Brasil tem cerca de 7,2 milhões de trabalhadores domésticos segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o que faz dele, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2013, o país com mais profissionais nesta área, a nível mundial, cita a BBC. Mas os números podem ser ainda maiores. De acordo com dados da Federação Nacional dos Empregados domésticos, referidos pela senadora Lídice da Mata ao G1 (o portal de O Globo), haveria 9,1 milhões de domésticos: 94% mulheres; 84% negros.

A emenda à Constituição foi uma das medidas mais importantes para este magistrado, que tomou posse da presidência do TST em Março de 2013. Carlos de Paula analisa o contexto histórico: “O trabalho doméstico está radicado na própria estruturação da sociedade. Desde os primórdios, o Brasil sempre teve aquelas pessoas que cuidavam dos afazeres domésticos. As mucamas na época da escravidão eram assim.”

Apesar de se ter avançado, falta porém, a aprovação da lei, pois certos direitos não estão assegurados, defende. Na altura que alterou a constituição, em Março de 2013, o Brasil tornou-se para a própria OIT uma referência internacional em relação aos direitos dos trabalhadores domésticos. A emenda garante o limite de 8 horas diárias e 44h semanais, a licença de maternidade de 120 dias, mas é necessário ainda aprovar a regulamentação que garanta direitos como a protecção contra demissão sem justa-causa, por exemplo.

O magistrado considera que “a lei poderia estabelecer uma forma de haver um controlo, que é um dos grandes problemas em relação ao trabalho doméstico: como se vai controlar o horário do trabalho doméstico de alguém que normalmente desempenha as actividades muito próxima ao seu patrão?”

Outro problema é que falta ainda assegurar o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço para o trabalhador doméstico (o empregador deposita 8% da remuneração do trabalhador na Caixa Económica) e, “na hipótese de o empregado ser dispensado por justa causa ele receberá esse valor que foi depositado com o acréscimo de 40% sobre o valor depositado, pago pelo empregador”, explica. Muitos discordam dos 40%, consideram que no caso dos trabalhadores domésticos deveria ser menos. 

De resto, olhando para o panorama laboral no Brasil, se tivesse que eleger uma questão problemática, Carlos de Paula escolheria a terciarização – quando “em vez de contratar um empregado eu me valho de uma prestadora de serviços, portanto esse empregado não é meu empregado, é empregado da prestadora”.

Este é um sistema em expansão no mercado de trabalho brasileiro que levanta uma série de problemas, nomeadamente em relação à regulamentação. “Cada vez mais a terciarização se espalha no país; e aí vem a precarização. O trabalhador passa a ter menos direitos que os demais empregados, principalmente num aspecto: protecção de segurança no trabalho. Temos índices muito elevados de acidentes de trabalho, e as empresas terciarizadas normalmente não têm os cuidados necessários.”

Como se ataca o problema, que existe também em Portugal, como a Autoridade para as Condições do Trabalho já denunciou tantas vezes? “Hoje a posição da justiça do trabalho é bem rigorosa em relação à apreciação da terciarização”, responde. “Todas as vezes em que houver indícios de precarização admitimos a responsabilidade daquele que é beneficiário do trabalho. É uma posição clássica, baseada num princípio básico que é a protecção do trabalhador. Porque é ele que justifica as leis laborais”.

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