Deslizando para o terceiro mundo?
A linguagem da “esquerda unida contra a direita” e dos “pobres contra os ricos” é um dos distintivos do “terceiro mundo” e uma das causas da pobreza.
A edição de Outubro do Journal of Democracy conclui a série de artigos inaugurada em Janeiro sob o título “The Global Resurgence of Authoritarianism”. Um tema central é a animosidade dos autoritarismos (re)emergentes contra a sociedade civil — e como essa animosidade anti-pluralista ganha adeptos inesperados em lugares inesperados, mesmo em países democráticos.
Anne Applebaum abre o dossier com um artigo notável sobre as “raízes leninistas da repressão da sociedade civil”. Recorda que Lenine considerava a destruição das iniciativas descentralizadas e espontâneas da sociedade civil como um passo crucial para a ditadura do proletariado. Para ele, “a esfera pública devia ser unitária e unívoca”, não pluralista e multifacetada. Todas as instituições “civis” deviam ser dirigidas pelo estado.
Applebaum podia ter citado também Mussolini. Num artigo da Enciclopédia Italiana, em 1932, sobre “A doutrina do Fascismo”, escreveu Mussolini: “A pedra de toque da doutrina Fascista é a concepção do Estado, da sua essência, das suas tarefas, dos seus fins. Para o Fascismo, o Estado é um absoluto perante o qual os indivíduos e os grupos são relativos. Indivíduos e grupos são ‘pensáveis’ apenas na medida em que estejam inseridos no âmbito do Estado”.
A verdade é que no centro do colapso das democracias liberais, nas décadas de 1920-30, esteve o ataque ao pluralismo da sociedade civil e da economia de mercado. Receio que possam estar enganados os que pensam que estas ideias tiveram a sua época e estão hoje acabadas. Os trabalhos do Journal of Democracy são justamente um alerta para o regresso destas ideias, embora sob diferentes tonalidades.
Receio que uma lógica semelhante possa estar hoje subjacente entre nós aos ataques ao sector privado em sectores como a educação e a saúde. Ou aos ataques contra a privatização de serviços públicos de transportes. Ou às insistentes reclamações de maior controlo do estado sobre a iniciativa privada. Essa lógica serve hoje entre nós para justificar a inédita aliança da actual direcção socialista com os comunistas. E é apresentada em nome da defesa dos pobres contra os ricos.
Lamento ter de recordar que a linguagem da “esquerda unida contra a direita” e dos “pobres contra os ricos” é um dos distintivos do “terceiro mundo” e uma das causas da pobreza. Num outro artigo publicado nesta mesma edição do Journal of Democracy, Steven Radelet, da Universidade de Georgetown, escreve sobre “The rise of the world’s poorest countries”. Ele sublinha que “nas duas últimas décadas [na sequência da queda do Muro de Berlim e do comunismo soviético], a maioria dos países mais pobres do mundo tem vindo a alcançar alguns dos maiores e mais rápidos ganhos de desenvolvimento na história”.
Não foram só a Índia e a China que abriram as suas economias ao comércio global: Bangladesh, Brasil, Bulgária, Chile, Costa Rica, República Dominicana, Gana, Moldávia, Mongólia, Moçambique, Filipinas, Senegal, Tunísia, são alguns dos exemplos citados. Entre os factores que estiveram na base desta extraordinária descolagem da pobreza está o abandono do paradigma estatista e terceiro-mundista: o recuo do controlo do estado sobre a sociedade civil e a iniciativa privada; a abertura das economias ao comércio mundial; a democratização (ainda que muitas vezes apenas parcial) dos sistemas políticos; o abandono da lógica da luta de classes e do frentismo “esquerda-direita” ou dos “pobres contra os ricos”.
Perda de tempo? Esta foi a crítica dirigida contra a tomada de posse do XX Governo perante o Presidente de República, na passada sexta-feira, que aliás decorreu com clássica compostura. É uma crítica tipicamente terceiro-mundista. Esquece que é no Parlamento que cada deputado deve assumir posição face a um Governo da coligação que obteve o primeiro lugar nas eleições. E ignora Edmund Burke, para quem as boas maneiras e o respeito por regras gerais (em vez de comandos específicos) distinguiam as sociedades livres. O terceiro-mundismo, pelo contrário, vive da urgência dos objectivos a atingir. Essa é também uma das razões por que gera insegurança e… pobreza.
“Vamos pôr o Sequeira no lugar certo” é o lema da campanha com que o Público se associou ao apelo do Museu Nacional de Arte Antiga para angariação de fundos com vista à aquisição de A Adoração dos Magos, por Domingos Sequeira. É a primeira (!) angariação de fundos da sociedade civil em Portugal para adquirir uma obra de arte para um (aliás fantástico) museu público. Faço votos de maior sucesso a esta iniciativa da sociedade civil, no melhor espírito não terceiro-mundista.