Maajid Nawaz entrou na rede jihadista. E saiu

Um jovem britânico de origem paquistanesa entrou para organizações islamistas e para a luta para erguer um Estado Islâmico. Hoje tenta desconstruir a narrativa que leva milhares de jovens a chegar à Turquia para combater em nome do califado, como explica à Revista 2.

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Houve um momento decisivo na vida de Maajid Nawaz. Envolveu o seu irmão, Osman, um grupo de skinheads e uma mochila verde. Desta, o importante era o conteúdo, puramente imaginário, mas com um poder imenso sobre a discriminação, a intolerância, o racismo, as injustiças no mundo. Era impossível não se render ao prodígio do que viria a designar por “momento mochila verde”, e fazê-lo repetir-se ao longo da vida, sob várias formas.

Maajid era um miúdo de origem paquistanesa nascido e criado em Southend, uma cidade do condado do Essex, no Reino Unido. Fazia graffiti e ouvia música hip-hop, numa altura, os anos 1980, em que o racismo era algo natural e quotidiano nas escolas britânicas. Maajid lembra-se de a funcionária da cantina o obrigar a engolir as salsichas que o pai lhe dissera para evitar, por serem feitas com carne de porco, interdita aos muçulmanos.

Lembra-se de o amigo Tony, quando as primeiras notícias sobre a sida começaram a vir a público, lhe ter dito: “A sida é culpa tua. Foram pessoas como tu que causaram a doença. Vocês fazem sexo com macacos. Foi assim que a sida começou. O meu pai disse-me.”

E não poderá nunca esquecer o momento em que tentou entrar num jogo de futebol, no intervalo do almoço, e nenhuma equipa o escolheu, apesar de haver vagas. Aproximou-se do amigo Patrick, um dos capitães de equipa, para lhe perguntar o que se passava. A resposta de Patrick foi um brutal murro no estômago, em frente de todos. A seguir veio a resposta: “Este jogo não é para pakis! Não voltes a pedir para jogar!”

O que Maajid recorda deste episódio não é a dor, mas o sentimento de solidão, ao ver que era o único que não podia jogar. “Foi este incidente, mais do que qualquer outra coisa, que destruiu a minha inocência da infância”, escreveria no livro O Radical, publicado em 2012 no Reino Unido e agora editado em Portugal pela Texto. “Nunca mais joguei futebol. Aqueles miúdos da escola primária não me deixavam. Quando cheguei ao liceu, senti-me envergonhado por não poder jogar, a rejeição ecoava nos meus ouvidos e nem sequer tentei entrar para as equipas. Sem a vantagem de jogar futebol, teria de me esforçar o dobro.”

O futebol era um universo de afirmação fundamental para as crianças britânicas. Maajid tinha de substituí-lo por qualquer outro instrumento de integração e pertença, e o que havia disponível na altura para um filho de imigrantes como ele era o hip-hop. Ouviu uma faixa intitulada Fuck The Police, dos Niggaz With Attitude, e depois começou a gostar dos Public Enemy, onde identificou não apenas a atitude contestatária contra a autoridade, mas também a visão política.

O Professor Griff, elemento dos Public Enemy, fazia samplings dos discursos de Malcolm X, veiculava uma mensagem nacionalista negra nos guetos dos Estados Unidos, mas não deixava de manifestar a sua simpatia pela Nation of Islam, o movimento religioso supremacista negro chefiado por Louis Farrakhan.

Para Maajid, esta música fazia o facto de ser muçulmano parecer cool, pela primeira vez na sua vida. Antes, quando ia à mesquita, às sessões para crianças, via o imã tentar transmitir os seus ensinamentos em árabe, usando um pau para punir os meninos que não respondiam acertadamente às suas perguntas. Agora, nas vozes dos rappers americanos, e depois britânicos, o islão já não parecia uma coisa antiquada, de que só podia envergonhar-se.

Foi-se envolvendo cada vez mais profundamente na cultura hip-hop, usava calças largas de bombazina, lenço amarelo, boné dos Redskins, ténis Adidas e todas as marcas rigorosamente adequadas à sua imagem de B-boy, tornou-se artista urbano, pintando tags e “bombas” pelas paredes de Southend, sob o nome de Slammer.

Esta nova identidade permitia-lhe afirmar-se e juntar-se a grupos com afinidades, que garantiam alguma segurança face aos ataques racistas. Mas no início dos anos 1990 surgem e multiplicam-se nas cidades britânicas os gangs skinhead. São uma ramificação dos mods, a tribo que combatia os rockers, nos anos 60 e 70, e tornam-se progressivamente racistas e violentos. Um grupo em particular, os Combat 18, transforma-se numa organização paramilitar neonazi. Em Southend, andavam armados de facas e bastões de basebol, à caça de jovens imigrantes, para os espancar, ou matar.

Maajid e os amigos hip-hop também passaram a usar facas, mas ficavam sempre a perder nas lutas com os skinheads e os C18, em particular o bando de Mickey, um dos jovens brancos nazis do bairro, cujo único entretenimento era perseguir os “pakis” como se fossem animais.

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No livro "O Radical", publicado em 2012 no Reino Unido e agora editado em Portugal pela Texto, Maajid Nawaz conta a sua experiência corbis

Mas esta era a época em que vários acontecimentos internacionais faziam emergir nas novas gerações uma consciência de pertencer a uma comunidade muçulmana, antes de a qualquer nacionalidade. A guerra na Bósnia, segundo Maajid, foi determinante para essa viragem.

As televisões mostravam todos os dias bósnios louros de olhos azuis a ser massacrados, o que mostrava que não era a raça ou a nacionalidade que fazia deles vítimas, mas o simples facto de serem muçulmanos. Entre as comunidades de imigrantes no Reino Unido, o efeito foi o exacerbar das identidades religiosas. Os jovens passaram a definir-se como muçulmanos, em detrimento das origens nacionais. E os que sentiam mais preocupações com o que se passava no mundo globalizado passaram a definir-se como politicamente muçulmanos, admitindo que havia uma condição comum e interesses comuns às populações islâmicas de todo o planeta.

Esta ideia surgiu e disseminou-se com os grupos islamistas do Médio Oriente e Ásia do Sul pós-coloniais. Adoptaram uma visão política do islão, perceberam que essa abordagem seria muito mais poderosa do que o socialismo árabe e espalharam as suas ideias pela Europa, através de árabes que pediam asilo político e dos imigrantes do Sul da Ásia.

Foi neste ambiente, em que o islamismo político aparecia como uma ameaça em vários cenários internacionais, que Maajid viveu o seu “momento mochila verde”. Estava em frente da sua casa, com o irmão, Osman, e outro amigo, de ascendência grega, quando se aproximou o bando de Mickey. Os nazis, que os tomavam todos por paquistaneses, incluindo o grego, devido à tez morena, mostravam as facas e batiam com os tacos de basebol nos pilares da beira da estrada. Estavam em superioridade numérica e iam massacrar os pobres imigrantes hip-hop, mas, de repente, Mickey hesitou. Avançou um pouco e pediu uma trégua, para falar. Ele, que nunca tinha dirigido a palavra a nenhum “paki”. Osman, que trazia uma grande mochila verde às costas, fez-lhe sinal para atravessar a rua e dirigiu-se a ele.

Maajid ficou a observá-los durante uns dez minutos, enquanto conversavam, até apertarem as mãos e se afastarem em direcção aos respectivos grupos. “Já chega, rapazes”, disse Mickey aos amigos. “Não vamos armar mais confusão aqui.”

Maajid quis saber qual fora a táctica do irmão em relação ao nazi. “Disse-lhe que somos muçulmanos e não temos medo da morte”, respondeu Osman. “Somos como aqueles terroristas palestinianos que ele vê na televisão a fazer explodir aviões. Somos bombistas suicidas. Aprendemos a fazer bombas e eu tenho uma na minha mochila. Se tentares alguma coisa, faço-a explodir. Acredita, não me custa nada. Se tivermos de morrer para acabar convosco, é o que faremos. Se tivéssemos medo da morte, estaríamos a fugir de vocês. Porque é que estaríamos aqui parados, quando vocês são muitos mais do que nós?”

A mochila de Osman estava obviamente vazia, mas o bluff resultou, porque se alimentou do próprio racismo de Mickey. A propaganda do Combat 18 retratava os muçulmanos como terroristas e assassinos. As ameaças de Osman confirmaram portanto os preconceitos do outro. “Se ele se tivesse dado ao trabalho de questionar a propaganda racista que engolira, talvez não se tivesse deixado enganar”, escreveu Maajid, que, após o incidente, decidiu assumir a sua nova identidade e tornar-se islamista. “Esta identidade tinha feito o que anos de lutas com facas não tinham conseguido. Ganhou a guerra psicológica e derrotou o nosso inimigo. Foi aquela tarde no parque e o medo que vi nos olhos de Mickey que me fizeram decidir a levar as coisas mais longe (…) Numa conversa, o islamismo fez o que o hip-hop nunca conseguira fazer.”

Maajid, como muitos outros jovens filhos de imigrantes de religião muçulmana, juntou-se a uma organização islamista. No seu caso, escolheu o Hizb al-Tahrir (HT), um grupo em expansão no Reino Unido, chefiado pelo clérigo Omar Bakri Mohamed, e que tinha por objectivo unificar todos os países de maioria muçulmana e criar um Estado Islâmico ou Califado. A tese era a de que os muçulmanos eram oprimidos e massacrados em todo o mundo, vítimas da agressão do Ocidente, contra o qual era preciso unirem-se, criando um Estado muçulmano.

Este discurso era altamente apelativo para os jovens, porque lhes falava de política, de problemas concretos, dos dramas que se viam na televisão e apontava um caminho, uma solução, conta agora Maajid Nawaz à Revista 2 numa entrevista telefónica, de Londres.

O hip-hop, que passou a só falar de carros, sexo e drogas, já não correspondia às expectativas dos jovens imigrantes. O islamismo fazia-os sentirem-se parte de um todo solidário, temido e respeitado pelos poderosos do mundo. “Era uma narrativa constituída por meias verdades”, diz Maajid. “Apontava situações injustas herdadas do colonialismo e situações concretas e pontuais de opressão, que são reais. Mas explicava tudo como uma guerra global que estaria em curso contra os muçulmanos, o que é um absurdo.”

A formação das ideias islamistas tem pouco que ver com o Corão, explica Maajid, mas antes com uma imitação das concepções fascistas e nazis, que surgiram na Europa. “Alguma base teórica foi repescada nos textos islâmicos, mas misturada com noções de Estado e de preocupações sociais próprias, por exemplo, do regime de Mussolini. É uma herança que tem portanto mais que ver com o colonialismo do que com os ensinamentos do profeta.”

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Simpatizantes do Estado Islâmico celebram a tomada da base área síria de Tabqa em Agosto de 2014 reuters

Na altura fazia sentido para os milhares de jovens que frequentavam os cursos e reuniões do HT e organizações afins. Tratava-se porém, explica Maajid, de uma ideologia do islão político, que nada tinha de fundamentalismo religioso. Os integristas têm a sua genealogia no salafismo e na visão literalista do Corão dos sauditas e em grupos como a Irmandade Muçulmana do Egipto. A estes não interessava a política, mas apenas a pureza religiosa. E os primeiros islamistas eram bastante relapsos em relação à prática religiosa. A fusão entre estas duas correntes (integrismo e islamismo) só se dará muito mais tarde, para originar o jihadismo que existe hoje.

No islão tradicional, a corrente secularista sempre foi muito forte, explica Maajid. Mas foi ficando para trás, porque era preciso apresentar aos modelos ocidentais uma alternativa que tivesse legitimidade. O salafismo e o fundamentalismo da Irmandade Muçulmana foi a fonte que encontraram. “O facto de alguns dos defensores mais sólidos deste secularismo não serem democratas, mas sim déspotas árabes não ajudou em nada”, diz Maajid.

O próprio Hizb al-Tahrir fez uma viragem, por determinação do seu líder, Omar Bakri Mohamad, que se tornou um fervoroso salafista (ver entrevista na revista Pública, 18 de Abril de 2004). Ramificações deste grupo e de outros, salafistas ligados à Arábia Saudita, dariam origem à Al-Qaeda e afins.

Ao serviço do HT, Maajid acabou por partir para o Paquistão, e depois para o Egipto, para conspirar no sentido de provocar golpes de Estado nesses países. O plano era tomar o poder no Paquistão, Afeganistão e Uzbequistão, após o que os taliban funcionariam como ponte para criar o primeiro Estado Islâmico moderno, beneficiando do armamento nuclear detido pelo Paquistão.

Segundo Maajid, estava tudo bem encaminhado, e foram os ataques de 11 de Setembro que destruíram o sonho de um califado na Ásia Central. Constituíram um erro, que provocou a ocupação do Afeganistão pela NATO.

Maajid, que se tornara um quadro importante do HT, acabou por ser preso pela polícia secreta do Egipto. Seria levado para as masmorras dos presos políticos e apenas conseguiu escapar à tortura e ter direito a um julgamento graças à intervenção das autoridades britânicas, o que o fez pensar.

Cumpriu cinco anos de pena, mas a sua perspectiva começou a mudar. Regressado ao Reino Unido, reparou por exemplo que a maior manifestação contra a invasão do Iraque ocorreu, não em alguma capital do mundo muçulmano, mas em Londres.

Não foi fácil afastar-se do HT. “Eles controlam a narrativa”, explica agora. “Em todas as comunidades muçulmanas no Reino Unido e na Europa, domina a ideia de que está em curso uma guerra de civilizações, do Ocidente contra o islão. E quem colocar isto em causa está a trair os seus irmãos muçulmanos, é um traidor.”

Desde que abandonou o HT, Maajid tem sido ameaçado e insultado, vítima de difamações e tentativas de agressão, mesmo por parte de antigos companheiros. Compreende que a mensagem do actual ISIS continue a ser apelativa para os jovens das comunidades imigrantes, apesar das imagens de terror divulgadas pelas televisões.

“As atrocidades, as violações aos direitos humanos não afectam a simpatia que muitos sentem pelo Estado Islâmico, porque, segundo a sua narrativa, isso é apenas uma resposta às atrocidades cometidas pelo Ocidente contra os muçulmanos. E o Estado Islâmico surge como uma entidade a apoiar, porque, em todas as comunidades muçulmanas se divulgou a propaganda segundo a qual a criação de um Estado Islâmico seria a única solução para as injustiças de que os muçulmanos são vítimas. Há 20 anos que nos vendem a utopia do Estado Islâmico. É o que fazem todos esses imãs e líderes de bairro. Não há outra utopia.”

Maajid criou uma fundação, a Quilliam, para combater o extremismo e espalhar ideais alternativos entre os jovens muçulmanos, que incluam a democracia, a liberdade e a defesa dos direitos humanos. “A ideia de democracia é a base que temos de convencer as pessoas a aceitar. É preciso explicarmos a necessidade de um novo tipo de contrato social, em que as pessoas se sintam integradas nas sociedades onde vivem. A democracia é o ponto de partida. A estrutura política, de governo secular, com liberdade de expressão. Depois temos de trabalhar na criação de novas utopias, novas políticas de identidade, por parte da União Europeia.”

Maajid tem tido a colaboração de organizações políticas, de universidades, foi recebido pelo primeiro-ministro britânico e pelo Presidente americano. Está empenhado na luta contra o terrorismo e contra o extremismo, mas a sua acção incide nas estruturas de base das comunidades, onde a narrativa sobre o Estado Islâmico é construída.

“Temos de intervir nas organizações aparentemente pacíficas, onde se veiculam estas ideias. Proliferam os grupos não violentos que defendem a ideia da teocracia. Eles não cometem actos terroristas, mas promovem as ideias que levam a que os jovens se entreguem ao terrorismo. Na Europa, não se organizam células, ou milícias, para ir combater ao lado do ISIS. O que se faz é doutrinar os jovens, que depois decidem largar tudo e partir para o Iraque ou a Síria. Vão até à Turquia, sozinhos, ou com alguns amigos, e dirigem-se à fronteira, onde há recrutadores à sua espera.”

A partir daí, tudo está bem organizado, no território controlado pelo Estado Islâmico, para encaminhar e atribuir funções aos jovens que chegam da Europa. Mas não antes. No Reino Unido ou em França, o trabalho é essencialmente ideológico.

“É muito bem feito, muito completo. Fornecem uma ideologia, símbolos, líderes e um sonho: o califado. E as pessoas nem se apercebem de como a ideia em si é ridícula. É como dizer que a Europa deveria reconstituir o Império Romano ou o sacro império romano-germânico, só para cristãos. Também é absurdo idealizar o que foi o império otomano, como última versão do califado, quando se tratava de um império belicoso e expansionista, como foram os dos cristãos. Toda a ideia de uma guerra de civilizações dos cristãos contra os muçulmanos é hoje anacrónica e ridícula. É pois errado falar do que deve o Ocidente fazer para deter o Estado Islâmico. Não é o Ocidente, é a comunidade internacional que tem de agir.”

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