David Petraeus: a queda do bom soldado
Numa cidade habituada a escândalos, que por vezes tem prazer em ver homens ambiciosos cair, a demissão de David Petraeus da direcção da CIA, citando uma relação extra-conjugal, chocou genuinamente Washington. Nem mesmo no Exército americano, onde alguns rivais deploram a vaidade e o carreirismo de Petraeus, o general de quatro estrelas é tão venerado como na capital. Da esquerda à direita, a classe política reagiu com perplexidade, lamentando que um escândalo viesse reclamar um popular herói de guerra, e insistiu nos elogios mais do que nas recriminações. Muitos manifestaram confiança de que Petraeus iria sobreviver ao escândalo e encontraria uma forma de regressar à vida pública.
Talvez nenhum general americano depois de Eisenhower no fim da Segunda Guerra tenha sido alvo de tanta admiração como Petraeus, escreve Bob Woodward em Obama"s Wars. No ano passado, quando foi nomeado por Obama para dirigir a agência de espionagem americana, Petraeus foi unanimemente aprovado pelo Senado numa rara exibição de consenso. Na quarta-feira, dois dias antes de se demitir, o seu nome apareceu na lista de possíveis candidatos presidenciais para 2016. A ideia de que Petraeus, um republicano, iria um dia candidatar-se à Casa Branca era o rumor que se recusava a morrer.
A política americana tem a sua dose de vidas públicas impecáveis arruinadas por vícios privados, mas a carreira de David Petraeus, 60 anos, parece ser a própria imagem da disciplina e do rigor. O cadete que terminou a academia militar entre os melhores. O homem que mantém uma rotina brutal de exercício físico. Que concluiu o seu doutoramento numa das universidades de elite, Princeton, em metade do tempo. Que quase morreu com uma bala no peito, mas pouco depois estava a fazer flexões para convencer os médicos a darem-lhe alta. O homem de família que se casou há 38 anos com a filha do superintendente da academia militar, a quem agradecia frequentemente nos seus discursos. O soldado-modelo que faltou ao funeral do pai, em 2008, porque permaneceu no Iraque, para supervisionar a guerra. Petraeus liderou a sua primeira missão de combate em 2003 durante a invasão do Iraque. Ele e os seus homens capturaram Mossul.
David Petraeus, que obteve o seu doutoramento em Relações Internacionais com uma tese sobre o fiasco no Vietname intitulada O Exército Americano e as Lições do Vietname, entrou na guerra com cepticismo. Depois de George W. Bush o escolher para comandar a guerra no Iraque em 2007, o general liderou a estratégia e os esforços que produziram uma viragem no terreno, estabilizando o país e reduzindo drasticamente a violência. Isso resultou do incremento de 30 mil tropas no Iraque, sugerido por Petraeus, e considerado um êxito sem o qual a retirada militar em 2011 não teria sido possível.
O general praticamente "redefiniu o conceito de guerra", nota Bob Woodward em Obama"s Wars. Ele não é apenas o militar executante, mas o intelectual que escreveu o novo manual de operações contra-insurgentes das forças armadas americanas que foi aplicado no Iraque. Constatando que os EUA não poderiam vencer a guerra através da violência militar, Petraeus defendeu que tinham de conquistar a população iraquiana através de uma via mais diplomática. Neste novo quadro, caberia aos soldados americanos proteger as populações e garantir a sua segurança até que um governo estável pudesse operar, treinar forças de segurança locais, ajudar na organização de eleições e contribuir para a nation building, a consolidação de infra-estruturas e obras públicas. "Um novo tipo de soldado, moldado por Petraeus, tinha de ser um trabalhador social, urbanista, antropólogo e psicólogo", escreve Woodward. Alguns iraquianos deram a Petraeus a alcunha de "Rei David". Robert Gates, à época chefe do Pentágono, declarou que o general era responsável por algo próximo de um milagre.
O aparente êxito da sua estratégia no Iraque explica que em Junho de 2010 Obama o tenha chamado para comandar a guerra no Afeganistão depois de demitir o general Stanley McChrystal. Petraeus aconselhou Obama a replicar o incremento de tropas no Afeganistão e Obama, agindo contra a opinião do seu vice-presidente, acabou por concordar. Essa operação não foi tão eficaz como no Iraque, mas não impediu Petraeus de ser promovido a director da CIA no ano seguinte. Ele era agora um militar reformado, depois de quase 40 anos nas forças armadas. É apenas coincidência que tenha arriscado a sua reputação no momento em que ingressou na vida civil?