Pela primeira vez desde a Grande Guerra de 1914-18 há condições favoráveis para uma independência do Curdistão iraquiano, que se poderia alargar aos curdos sírios. A "questão curda" volta a ganhar proeminência internacional.

A realidade tribal
Uma nota prévia: a sociedade curda é marcadamente tribal. Os dois grandes partidos do Curdistão iraquiano, o Partido Democrático Curdo, de Massud Barzani, e a União Patriótica do Curdistão, de Jalal Talabani, apoiam-se em alianças tribais. O clã Barzani representa uma corrente mais rural e conservadora, o de Talabani uma corrente mais urbana e progressista. A sua ruptura remonta a 1975.

A rivalidade assenta em interesses e não em supostas divergências ideológicas. Em 1994, por razões de distribuição dos recursos, Barzani e Talabani envolveram-se numa guerra fratricida, com milhares de mortos, que os americanos só conseguiram resolver em 1998. Antes, uniam-se para combater Bagdad, mas também se aliavam a Bagdad para se guerrearem entre si. Em 1966, Talabani aliou-se ao Governo central contra Barzani. E, na guerra de 1994-98, Barzani pediu apoio militar a Saddam Hussein. Em 2003, após a invasão americana, decidiram partilhar o poder. Barzani preside ao Curdistão e, em 2005, Talabani foi eleito Presidente do Iraque e reeleito em 2010.

Para sobreviver, os curdos "aliam-se ao diabo de ontem para combater o diabo de hoje". O pai de Massud, lendário líder curdo durante meio século, foi amigo de russos e americanos.

De Sèvres às derrotas
No fim do Império Otomano, os ingleses prometeram um Estado curdo, reunindo as regiões onde predominavam. Foi-lhes concedido pelo Tratado de Sèvres (1920). Mas, após a vitória da Ataturk e a fundação da República Turca em 1923, as potências mudaram de opinião. O Tratado de Lausanne (1924) repartiu os territórios curdos pela Turquia, Iraque, Irão e Síria.

Sucederam-se as revoltas e, em 1937, a Turquia, o Iraque e o Irão fizeram um tratado para colaborarem na repressão da "subversão curda". Em 1946, no fim da II Guerra Mundial, a União Soviética ocupou parte do Norte do Irão e os curdos aproveitaram para proclamar uma República Curda com capital em Mahabad (Irão). Durou 10 meses. Quando os russos se retiraram, o Exército iraniano esmagou os curdos. Voltou o tempo das revoltas, sempre reprimidas. Em 1988, a aviação de Saddam Hussein massacrou 5000 curdos com armas químicas. Os curdos foram também um "joguete" entre as potências regionais: Damasco apoiou o terrorismo do PKK contra a Turquia, Saddam apoiou os curdos iranianos e o Irão armou os curdos iraquianos.

Depois da derrota de Saddam em 1991, os americanos criaram uma zona de exclusão aérea para proteger os curdos que puderam montar um proto-Estado, com administração e Exército próprios.

Requiem pelo Iraque
A nova oportunidade curda decorre de um vertiginoso encadeamento de factos, a partir da Síria. Escrevia um repórter em 2013: "A bandeira negra da jihad flutua em grande parte do Norte. No Centro, as forças governamentais e o Hezbollah [xiitas libaneses] combatem os que ameaçam as suas comunidades. No Nordeste, os curdos constroem uma zona autónoma ligada aos curdos do Iraque." É difícil imaginar como poderão estas regiões "voltar a fundir-se numa peça única".

No Iraque, o xiita Nouri al-Maliki assume a chefia do Governo em 2006 e depressa marginaliza sunitas e curdos. Entretanto, os jihadistas do ISIS passaram do Iraque para a Síria, onde dominam uma faixa de território, para depois voltarem ao Iraque e recolher os frutos dos erros de Maliki: aliados a forças tribais sunitas e a adeptos de Saddam, lançam uma ofensiva que culmina na conquista de Mossul, a 10 de Junho. Este dia mudou o Iraque. Os curdos ocupam Kirkuk e a sua bacia petrolífera. O Iraque está em risco de se desintegrar. "Por um capricho do destino, o ISIS prestou um relevante serviço à causa da independência do Curdistão", anotou o analista americano Steven A. Cook.

Enquanto Israel incita os curdos à independência, forma-se uma curiosa "aliança" para salvaguardar o Estado iraquiano: EUA, Rússia, Irão e, mais ambiguamente, a Turquia.

Os curdos do Iraque têm quase todos os trunfos na mão: uma independência de facto, com bandeira e instituições próprias; bons soldados, os peshmergas; muito dinheiro e a expectativa de se tornarem numa potência energética; e têm revelado inteligência política, evitando dar passos em falso.

O decisivo factor turco
Não basta, no entanto, reunir estes requisitos para proclamar a independência. O Curdistão iraquiano é um pequeno território com uma população exígua, seis a sete milhões de pessoas. Tem de ter em conta o poderio de vizinhos como a Turquia e o Irão. A integridade do Iraque continua a ser um princípio fundamental da política americana e por isso Washington condena o referendo de Barzani. Ancara e Teerão sempre temeram o reflexo de uma independência sobre os seus próprios curdos.

Mas algo se move. Barzani tem desde há anos boas relações com Erdogan e a instabilidade na Síria e no Iraque exige a sua cooperação. São fortes os laços económicos entre a Turquia e o Curdistão. Em várias ocasiões Barzani ajudou os turcos contra o PKK de Oçalan. E os turcos quebraram um tabu: já falam em "Curdistão iraquiano".

A ameaça do ISIS terá mudado a percepção turca: colocou Barzani numa posição de força e Erdogan poderá ser obrigado a apoiar-se nos curdos sírios e iraquianos, inimigos dos jihadistas. Ancara opunha-se à posse curda de Kirkuk, mas agora já a aprova – por causa do ISIS. Mas, frisa o analista turco Soner Cagaptay, a Turquia tem de resolver a sua própria "questão curda". E esta passa pelo PKK de Oçalan que, entretanto, foi reconhecido como um interlocutor oficioso. Analistas sugerem que Ancara pode abandonar a sua histórica oposição à independência dos curdos do Iraque.

Há outro argumento: Erdogan precisa do voto curdo nas presidenciais de Agosto. Ironiza Cook: "Barzani pode fazer de Erdogan o rei da Turquia e Erdogan pode fazer de Barzani o rei do Curdistão." Falta dizer uma coisa: Talabani opõe-se a "negócios políticos" com a Turquia.

São cenários em terreno escorregadio. E, na região, tudo muda muito depressa.