Boko Haram: a Nigéria é uma nação em guerra?
O grupo usa metodicamente o terror: arrasa aldeias e extermina os habitantes quando suspeita da sua colaboração com o Exército. Na segunda-feira, o seu chefe, Abubakar Shekau, anunciou a intenção de vender as raparigas como escravas: foi o click que desencadeou a repulsa. Nos media mundiais, os massacres em África já só dão lugar a notícias banalizadas (ver Revista 2).
2. O Boko Haram é “um objecto mal identificado”, escreve um dos seus estudiosos, M. A. Pérouse de Montclos. O nome oficial, em árabe, pode ser traduzido por “Discípulos para a Propaganda dos Ensinamentos do Profeta e da Jihad”. Na língua haussa, Boko Haram significa “A educação ocidental é pecado”. Boko, do inglês book, é sinómimo de educação ou civilização ocidentais, mas também significa “mentira”.
A seita foi fundada em 2001 por Mohammed Yusuf, um jovem salafista que pregava a criação de uma república islâmica integrista no Norte da Nigéria e a ruptura completa com a cultura ocidental. Frisa Montclos que “Yusuf afirma que a escola ocidental destrói a cultura islâmica e ‘conquista’ os muçulmanos muito mais do que as cruzadas”. Considera heréticas todas as doutrinas científicas ocidentais que divergem das palavras do Profeta. “À sua maneira, a crítica de Boko Haram contra o mundo moderno está ligada a uma certa corrente do pensamento anticolonial e não apenas ao islamismo e ao obscurantismo.”
Yusuf criticava os dirigentes do Norte que participavam num Estado não-islâmico e “ilegítimo”. E reivindicava uma aplicação rigorosa da sharia (lei islâmica) – que em 1999 fora parcialmente introduzida na maioria dos estados do Norte.
O seu “feudo” era o estado de Borno, no Nordeste. Terá chegado a ter 500 mil seguidores e uma grande rede de escolas corânicas onde recrutava jovens. Depressa eclodiram confrontos com a polícia e os militares. Mas, ao início, o Boko Haram não era um movimento terrorista. “Não atacava os cristãos, atacava unicamente os representantes do Estado laico, a polícia, o Exército, as prisões”, anota Montclos.
3. A ruptura acontece em 2009. Os incidentes com a polícia redundam numa escalada e começa uma anárquica insurreição no Nordeste. O Exército faz uma repressão brutal numa cidade – 800 mortos. Yusuf é preso e sumariamente executado em público. Foi um erro estratégico do Exército que deu um mártir aos islamistas e fez entrar em cena um novo chefe, Abubakar Shekau, que vai optar pelo terrorismo.
Reorganiza o movimento na clandestinidade, adquire armamento moderno e sofisticado. Lança, a partir de 2010, campanhas de terror. Já não ataca apenas as forças de segurança. Ataca políticos, “maus muçulmanos” que não respeitam a sharia, faz atentados contra cristãos e contra igrejas, rapta ocidentais para obter resgates, assalta bancos e, em 2011, visa a própria representação das Nações Unidas em Abuja, com um sangrento atentado suicida.
Organizações de Direitos Humanos acusam o grupo de violações sistemáticas, forçando mulheres e raparigas a “casamentos temporários”. É raro o dia sem atentados e mortos. Entre vítimas do terrorismo e da repressão militar, contam-se 4000 mortos desde 2010.
O rapto de 14 de Abril, dizem analistas nigerianos, visou acentuar a mensagem antieducação, demonstrar a impotência do Exército, humilhar o Presidente, Goodluck Jonathan, e dar uma projecção internacional à rebelião. Terá sido a vez de Shekau cometer o seu erro estratégico: depois de ter tentado mostrar que era invencível, está a criar uma unanimidade contra o Boko Haram. O Governo, que tem procurado desvalorizar o terror, é agora internacionalmente pressionado a intervir seriamente.
4. A Nigéria, com os seus 170 milhões de habitantes e riquezas incalculáveis, acaba de se tornar na maior economia de África, ultrapassando a África do Sul. A unidade do país não está em causa. O conflito entre o Norte muçulmano e o Sul cristão não é uma ameaça, pois o Norte não pode passar sem o maná do petróleo do Sul. Também não é uma guerra contra cristãos: os muçulmanos são a maioria das vítimas.
No entanto, “a Nigéria é uma nação em guerra”, previne o jornalista Olusegun Adeniyi. “Os insurrectos islamistas venceram algumas batalhas estratégicas. E os sacos mortuários, não só de civis mas também de militares, amontoam-se dia após dia.”
“A partir do anos 1980, as tensões internas da Nigéria são em grande parte explicadas por um movimento geopolítico de envergadura mundial, a expansão dos partidos islâmicos”, escreveu o geógrafo Yves Lacoste. Note-se que o Boko Haram nunca se ligou à Al-Qaeda, ao contrário de um grupo cisionista denominado Ansaru.
Para lá da ascensão do islamismo, os nigerianos interrogam-se sobre o fenómeno Boko Haram. O politólogo Jideofor Adibe contesta as teses que remetem o terrorismo para a pobreza, a frustração social ou a corrupção – a chaga da política nigeriana. Se a brutalidade policial está na origem da viragem terrorista e se a maioria dos seguidores do Boko Haram são pobres, a universidade foi o grande viveiro do islamismo. A maioria dos autores dos atentados suicidas são jovens das classes médias e não camponeses iletrados.
A violência tornou-se banal: do banditismo aos políticos que contratam gangsters para assassinar rivais. É este clima que permite a Shekau fazer gala de um perfil de carniceiro. Diz num vídeo de 2012: “Dá-me gozo matar todos aqueles que Deus me manda matar, tal como gozo ao matar galinhas e carneiros.”
Wole Soyinka, Nobel da Literatura, tem uma opinião implacável. “Há mullahs com uma ideologia da morte. Para eles, é normalíssimo dizer: 'Não queremos que as escolas existam.' Para mostrar o que isso significa, entram nas salas de aula, chamam os alunos pelo nome e matam-nos. Isto é algo de novo na Nigéria. Foi preciso tempo para que o Presidente compreendesse que é uma situação absolutamente nova. Nesta matéria, o Governo falhou abissalmente.”
Conclui: “Encaro o Boko Haram não apenas como um grupo terrorista, mas também como um gang criminoso e um bando de psicopatas. Eu não dialogo com barões da droga nem com criminosos. O Boko Haram é uma máquina violenta, criada por pessoas que estão fora de controlo. De duas, uma: ou destruímos a máquina ou destrói-nos ela a nós.”
Jornalista