Ayad decidiu receber os seus familiares sírios, vieram 170

Dos mais de 600 mil refugiados da Síria que a Jordânia deixou entrar, a esmagadora maioria vive onde pode e isso pode ser o quintal de um tio.

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A maior parte dos familiares de Ayad Saiar veio de Homs AFP

Quando quase três milhões de pessoas fogem do seu país para os países fronteiriços o que se espera nem sempre é o que se encontra. Na vila de Zaatari viviam 15 mil pessoas e a vida era tranquila, diz Nidal al-Kahly, oficial do Exército jordano na reforma. Havia um centro de saúde, e chegava; havia duas escolas, e não era preciso mais; havia um carro a recolher o lixo, e o lixo era todo recolhido.

Entretanto, a população da vila de Zaatari cresceu. A menos de 15 quilómetros a sul da fronteira, muita gente aqui tinha família na Síria. E assim, a vila ganhou mais sete mil habitantes, todos sírios, muitos familiares de pessoas que aqui vivem desde sempre.

Há famílias grandes por estes lados. Ayad Saiar, empresário da construção, tem 50 anos e sete filhos, o mais novo com oito anos, a mais velha com 23, trabalha no campo ali ao lado; netos ainda não há. Sete filhos, Ayad e a mulher, e chegava para a casa da família, das melhores que por aqui se encontram, já estar bem ocupada. Só que a mãe de Ayad casou duas vezes, primeiro com um sírio, depois com um jordano, pai de Ayad. E as famílias todas juntas que formam a sua família têm mesmo muitas pessoas.

“Há 170 refugiados sírios em Zaatari que são da minha família”, diz Ayad, sem se engasgar. 170? “Sim, alguns são afastados, mas são primos da minha mãe, meus tios, os filhos deles, cada um com a sua família.”

E é assim que no quintal da casa de Ayad vive agora o sobrinho, Mohamed (filho de um irmão sírio), a sua mulher, Khadija, e os cinco filhos do casal. A casa original foi aumentada e dividida em duas: no novo anexo, vive uma irmã da mãe de Ayad com uma adolescente que adoptou depois da morte dos pais, ainda na Síria não havia revolta nem guerra. Há mais. “Aluguei a casa em frente”, diz Ayad. E lá vivem mais doze familiares. Não acaba aqui. Ayad tem outras duas propriedades na vila, pedaços de terra grandes de tamanho mas sem qualquer construção. Em tendas ou caravanas, grande parte dos seus 170 familiares sírios a viver em Zaatari encontram-se agora por lá espalhados.

Comecemos pelo quintal. Há uma tenda, do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR), igualzinha às do campo de Zaatari, uma caravana como as 22500 que há no campo, uma tenda mais pequenina que é uma espécie de quarto dos brinquedos, e a unir estas várias divisões um caminho de pedras que o sobrinho Mohamed quis fazer para manter mais limpa a tenda grande, que serve de sala e quarto aos sete membros da família. Também há dois reservatórios de água, a água distribuída pela rede nacional já não chegava para dar de beber a tenta gente.

Em família

“Não podia fazer outra coisa. São família, não é?”, diz Ayad. “Toda a gente em Zaatari abriu as suas portas, alguns cobram um valor simbólico pelas rendas, mas à família não se pode pedir dinheiro, não é?”

Ayad conhecia muitos destes 170 familiares, são todos de Homs, cidade muito castigada pelo regime de Bashar al-Assad, a 300 quilómetros da Jordânia, a mesma cidade do marido sírio da mãe, e onde ele próprio costumava ir em passeio, “três ou quatro vezes por ano”. Mas nem todos. “Alguns primos nunca tinha visto, mas sabia que existiam. É bom ter uma família grande.”

Mohamed, de 38 anos, e a mulher, Khadija, de 35, não podiam concordar mais com Ayad. “Todos são família, aqui sentimo-nos bem”, diz Mohammed. Quando chegaram à fronteira, em Setembro do ano passado, foram levados para o campo de Zaatari e ali se registaram como refugiados. “Senti que não podia ficar lá uma hora”, diz Khadija. “Ficámos três dias.” O casal fala do pouco espaço entre tendas e caravanas, dos miúdos que passam o dia a brincar na terra e com pedras… “Tive medo que os meus filhos apanhassem doenças”, explica a mãe.

Foi então que Mohamed ligou ao primo Ayad e este teve de se responsabilizar por eles para poderem sair do campo. É um sistema, através do qual um jordano que cumpra determinados critérios, como ter emprego e um valor mínimo no banco, funciona como garantia de que aqueles sírios terão como tratar de si no mundo fora do campo. Ayad já nem sabe dizer por quantos familiares se responsabilizou para poderem sair do campo de Zaatari.

No caminho entre a casa de Ayad e um enorme descampado que é a sua maior propriedade, num dos extremos da vila, há crianças a brincar no lixo. Ayad segue à frente. Atrás, a jogar à bola, resolvem vir os miúdos que vivem na casa em frente e as crianças do lixo aproveitam a passagem da bola e juntam-se ao grupo. É um grupo grande e as mulheres que vivem nas tendas espalhadas pelo descampado juntam-se para o receber.

Umm Mohamed, Umm Hannas, Umm Anwar, Umm Mahmoud… Todas vieram da província de Homs, de terras diferentes, mais ou menos pelos mesmos motivos.

“Viemos há sete meses, as vilas à volta da nossa estavam a ser bombardeadas”, diz Umm Mohamed. “Comprámos a tenda em Mafraq. Deixam-nos ficar aqui de graça”, diz Umm Hannas, que nem conhece Ayad – foi o marido, um primo muito distante do jordano, que tratou de tudo quando chegaram. “Temos colchões e cobertores, a comida que trocamos com os cupões da ONU”, conta Umm Anwar, a falar dos vouchers de 24 dinares jordanos que o Programa Alimentar Mundial (PAM) distribui todos os meses a cada sírio registado como refugiado. “De resto, falta quase tudo”, diz, a apontar para dentro de uma tenda quase vazia.

Umm Mahmoud insiste para que entremos na sua tenda. Às perguntas sobre a vida no descampado de Zaatari responde sempre a falar do seu “walad”, o seu rapaz, o filho mais velho, Mahmoud, de 39 anos. “O meu walad está preso”, repete. Umm Mahmoud e o marido dizem ter “uns 60 anos”, ela curvada, ele a precisar de um andarilho para se movimentar. Receberam 300 dinares do ACNUR quando chegaram e agora têm os 24 por mês do PAM. “Só em pão gastamos 15”, diz Abdullah. “Deixámos de comer todos os dias”, explica a mulher.

Mas é mesmo do filho que querem falar. “Foi há um ano e cinco meses. Foi preso sem razão. Estava na rua com o seu carro de vender iogurtes, era o que ele fazia. Vieram os militares e levaram-nos”, diz Umm Mahmoud, no rosto o cansaço absoluto, as palmas da mão viradas para cima, como a sublinhar o sofrimento. “Vimos um advogado que nos pediu dinheiro, e depois mais dinheiro. Mas nunca o encontrámos.”

Às tantas, Abdullah ficou pior da perna e os outros filhos, há anos a viver na Arábia Saudita, convenceram os pais a fugir para a Jordânia, com medo do que podia vir aí, depois do que tinha acontecido a Mahmoud. Quem não se convenceu a deixar a Síria foi Salma, a mulher de Mahmoud. “Ela espera ainda encontrar o marido, saber alguma coisa”, diz Umm Mahmoud. “Ficou com um dos irmãos. Às vezes, os meus filhos mandam algum dinheiro para a ajudar.”

Antes, Salma e Mahmoud viviam com Abdullah e Umm Mahmoud. “Tinha uma casa grande, com loiça, com tudo. Uma cozinha simpática, uma boa casa de banho. E à volta 800 metros quadrados de terra. Não precisámos de água, tínhamos verde, tínhamos tudo”, recorda Umm Mahmoud. “O meu marido era pastor. Comprava e vendia ovelhas.” Nem sempre. “Quando era novo e tinha saúde trabalhei na construção, no Líbano, na Jordânia.”

Abdullah e Umm Mahmoud nunca se imaginaram a viver numa tenda no meio de uma terra seca. Uma vez passada a fronteira, a única opção a esta tenda era o campo de refugiados. “O campo estava muito cheio. O barulho era terrível, aqui pelo menos há alguma paz”, diz Umm Mahmoud. Abdullah é primo do marido sírio do pai de Ayad e isso chegou para saber que ali havia espaço sem terem de pegar renda.

O clube de futebol

Parte da vida actual de Ayad faz-se agora de tratar da sua grande família e de tentar que a vida dos recém-chegados e dos jordanos de Zaatari não seja demasiado afectada pelo boom na população. Com o militar na reforma, Nidal, formou um grupo de voluntários que tenta reivindicar melhores condições para todos, junto do Governo e de todas as organizações que consigam contactar.

“Tenho tentado que aumentem a quantidade de água que o Governo distribui na vila”, diz Nidal. “Isso é o mais importante. Mas também fazem falta professores. O segundo turno, quando vão as crianças sírias, tem mais de 50 por aula e nem as cadeiras chegam”, explica. Mas Nidal também tenta chegar às agências da ONU e às organizações não governamentais (ONG) que operam no campo de refugiados vizinhos. “Eu sei que ali estão cem mil pessoas, mas nós também precisamos e não há ONG fora do campo”, diz.

Já conseguiu alguns resultados. A Save the Children tem dado apoio às recém mamãs e a Mercy Corps está a financiar espaços desportivos – há um clube de futebol novo em Zaatari, Ayad é o presidente. Nidal queria mais. “Eu sei que os sírios não podem trabalhar legalmente. Mas dentro do campo há empregos para eles. Estou a tentar convencer as ONG a abrirem umas pequenas lojas na vila, onde alguns pudessem trabalhar.”

O filho mais velho de Mohammed e de Khadija tem 15 anos e já joga no clube da terra. “Fico contente, assim está mais ocupado. Não tenho queixas, só acho que a escola não é muito boa. Mas pelo menos aqui eles vão todos os dias. Na Síria, era raro o dia em que sentíamos que era seguro deixá-los ir.” Khadija diz que não se importa nada de viver numa tenda no quintal de Aymad. “Estamos bem. E eu ainda digo que estamos de visita. Mas às vezes tenho medo. Penso nos palestinianos da Síria. Alguns pensaram que iam por dois dias e ficaram lá a vida toda.”
 

   

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