Al-Qaeda e Estado Islâmico, a globalização do jihadismo no pós-Guerra Fria
Na lógica de actuação das organizações terroristas jihadistas destes novos tempos, tudo e todos são potenciais alvos e não, necessariamente, só o Ocidente
Quando, a 7 de Agosto de 1998, as embaixadas dos Estados Unidos em Nairobi (Quénia) e em Dar es Salaam (Tanzânia) foram alvo de dois atentados simultâneos com viaturas armadilhadas, provocando mais de 230 mortos e 4000 feridos, as agências de “intelligence” e de segurança norte-americanas passaram a olhar com toda a atenção para Osama bin Laden e para a Al-Qaeda. Não é que fossem desconhecidos dos serviços de informação, porque não o eram (tal como não o eram alguns dos terroristas que agora atacaram em Paris), a questão é que havia uma percepção distorcida da real ameaça que representavam para os interesses americanos.
Nesse dia, os Estados Unidos, mais concretamente, as agências que lidavam com matérias de terrorismo internacional e contra-terrorismo, foram confrontadas, pela primeira vez de uma forma brutal, com a emergência de um fenómeno novo nas Relações Internacionais do pós-Guerra Fria: o fundamentalismo islâmico corporizado numa rede terrorista internacional, com ramificações em diferentes partes do globo e que tinha um novo modus operandi, com vários jihadistas nas suas fileiras dispostos a dar vida por uma causa (até então, essa filosofia era apenas praticada pelos terroristas palestinianos). No fundo, era o início de uma espécie de “franchising” do terrorismo, que, além do Médio Oriente, chegou a ter ligações com grupos islâmicos em África, Europa, Ásia e Próximo Oriente.
Apesar da gravidade dos ataques, a verdade é que para a opinião pública ocidental, não se tratou mais do que um acontecimento trágico na longínqua África entre muitos outros apontamentos noticiosos que passaram nos telejornais. Embora a partir desse momento os serviços americanos de informação tenham passado a estar mais atentos (não tanto como deviam) a essa nova realidade, a verdade é que Bin Laden e a Al-Qaeda mantiveram-se praticamente desconhecidos do público em geral… até aos atentados de 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque e Washington.
Quase 3000 vítimas e a desfiguração da cidade de Nova Iorque com a queda das duas Torres Gémeas de Nova Iorque meteram o mundo em estado de choque. As autoridades americanas não demoraram muito a perceber quem tinha cometido tal barbárie e também rapidamente se começou a perceber as muitas falhas ao nível de “intelligence”, da coordenação e partilha de informação entre diferentes agências federais. Infelizmente, também se concluiu que após os atentados do Quénia e da Tanzânia a lição não fora bem estudada.
O então Presidente George W. Bush declarou “guerra ao terrorismo” e não foi preciso muito tempo para que essa mesma guerra chegasse à Europa, na manhã de 11 de Março de 2004, com os atentados simultâneos de Madrid perpetrados por um ramo da Al-Qaeda naquele país a fazerem quase 300 mortos e mais de 2000 feridos. Um ano depois, foi a vez de Londres ser o alvo novamente da organização terrorista de Bin Laden: quatro atentados suicidas fizeram 56 mortos e mais de 700 feridos. Pelo meio, o caos já estava instalado no Afeganistão, no Iraque e, numa outra escala, no Paquistão.
Anos depois – após os falhanços militares e políticos no Afeganistão e no Iraque e depois do esmorecimento sangrento da ingénua “Primavera Árabe”, que resultou, entre outras coisas, nos “caldeirões” da Síria e da Líbia – o terrorismo islâmico regressou à Europa de uma forma violenta, no passado dia 13 de Novembro.
Desta vez não foi a Al-Queda, mas sim o Estado Islâmico (EI), uma criação recente ainda mais radical (se é que isso fosse possível), que veio preencher o vazio de poder nalgumas regiões do Iraque e da Síria e que se foi instalando no território, perante a passividade das potências internacionais e pela oportunidade que se abriu com os alinhamentos geoestratégicos e geopolíticos que se fazem sentir naquela região.
A velha ambição da reposição do califado move o Estado Islâmico, tal como já movia a Al-Qaeda, sendo que essa determinação se afirma contra qualquer inimigo à sua causa, seja ele qual for. Na concepção do Estado Islâmico, tanto a França (que bombardeia há várias semanas posições do EI na Síria), como os xiitas do Hezbollah (que ajudam os rebeldes sírios a combater o EI) são alvos a abater.
Veja-se que na Quinta-feira, 12, um dia antes dos atentados em Paris, uma zona de Beirute onde vivem sobretudo xiitas sofreu um duplo atentado, perpetrado pelo mesmo Estado Islâmico, fazendo mais de 40 mortos. Aqui o alvo era um suposto reduto do Hezbollah libanês. Podemos recuar alguns meses, até 20 de Julho de 2015, e relembrar o primeiro atentado do EI em solo turco, mais concretamente em Suruc, a 10 quilómetros da cidade síria de Kobani. Morreram mais de 30 pessoas, provavelmente na sua maioria muçulmanos, embora as razões por detrás deste ataque ainda não sejam totalmente claras: se foi por causa do esforço de Ancara na perseguição aos recrutadores do EI em solo turco; ou se foi como resposta às movimentações das milícias curdas sírias do YPG, que têm combatido o EI perto de Kobani. Seja qual for a razão, facto é que a Turquia (também ela um país muçulmano, note-se) foi arrastada para a guerra do Estado Islâmico. Já mais recentemente, a 10 de Outubro, a Turquia, desta vez bem no coração do país, era novamente alvo da ira do Estado Islâmico, num atentado bombista em Ancara, fazendo mais de 100 mortos.
Esta ideia entronca naquilo que Álvaro Vasconcelos, director de Projectos no Arab Reform Initiative, escreveu há dias nas páginas deste jornal: “Os monstruosos atentados em Paris não são um ataque contra a civilização ocidental, perpetrados por um grupo que a decidiu combater, confirmando assim a teoria do choque das civilizações. Estes ataques são a dimensão europeia, nomeadamente francesa, da guerra do Médio Oriente.”
E de facto, os casos concretos acima mencionados e aquilo a que Álvaro Vasconcelos se refere contrariam as ideias preconcebidas e distorcidas que muitas analistas e comentadores não hesitam em propagar nestas alturas trágicas, dando a entender que pelo facto dos atentados de Paris terem sido em locais de lazer ou de convívio social se pressupõe um ataque ao modo de vida e costumes ocidentais, como se em Nairobi, Dar es Salaam, Ancara, Suruc ou Beirute as pessoas não gostassem de assistir a concertos, ir jantar fora ou beber um copo à noite entre amigos.
A questão essencial é que a França sofreu uma represália por estar a ser um dos actores mais activos na guerra ao Estado Islâmico em território sírio. E aqui François Hollande tem toda a razão, quando diz que a França foi alvo de um “acto de guerra”. E como alguns especialistas militares o referiram, os alvos dos ataques de Paris tiveram, provavelmente, em consideração locais de maior concentração de pessoas, com menor vigilância policial e onde o número de vítimas pudesse ser o maior possível. Porque, a verdade, é que desde 1998, os vários atentados perpetrados pela Al-Qaeda e, mais recentemente, pelo Estado Islâmico têm acontecido em diferentes zonas do mundo e resultam de um processo de globalização das suas organizações e, nalguns casos, com reivindicações muito específicas. E já não estamos sequer a falar de um terrorismo islâmico mais regional, circunscrito a determinadas realidades sociais e políticas, como são os exemplos de Bali (2002 e 2005), Casablanca (2003) ou Mumbai (2008) e de tantos outros sítios que vão da Palestina até ao Paquistão, passando pelo Cáucaso.
Além dos casos mais acima mencionados, veja-se a Rússia, de quem um dia o escritor russo Dostoievski disse que “aquilo que é verdadeiramente nosso é estranho à Europa”, para dizer que o seu país não faz propriamente parte do mundo Ocidental. Apesar disso, foi também vítima do Estado Islâmico no atentado terrorista do passado dia 31 de Outubro que fez explodir o avião A321 sobre o deserto do Sinai, matando 224 pessoas a bordo, na sua maioria cidadãos russos. Ora, o Estado Islâmico foi muito claro nas razões deste ataque: represália aos bombardeamentos que a Rússia tem feito contra as posições do EI na Síria.
Como ainda esta semana o professor Adriano Moreira referia numa entrevista à SICN, o Estado Islâmico, que é na prática um autêntico Estado dotado de um Governo, Território, Povo (elementos clássicos constitutivos de um Estado) e até “cobra impostos”, tem “objectivos estratégicos e tácticos concretos” e “aprendeu com a Al-Qaeda” a desenvolver atentados terroristas de grande impacto mediático.
É inegável que existe uma doutrina mais abrangente e até, se quisermos, mais romântica, que foi desenvolvida, sobretudo, por alguns ideólogos islamitas egípcios, sauditas, paquistaneses, entre outros, a partir do século XIX. Uma ideia que passou a ser disseminada nas madrassas, mesquitas e outros fóruns de formação islâmica e que foi alimentando a ideia de luta radical contra o “infiel” materializada no Ocidente, nomeadamente nos Estados Unidos, remontando ao espírito da jihad original dos tempos de Maomé. Porém, na lógica de actuação das organizações terroristas jihadistas destes novos tempos, tudo e todos são potenciais alvos e não, necessariamente, só o Ocidente. Até porque, com um mundo cada vez mais “igual”, fruto da globalização, essa noção de Ocidentalismo (o Ocidente desumanizado e desvirtuado visto pelos teóricos islamitas mais radicais) tende a esbater-se. Qualquer muçulmano radical, seja ele saudita, sírio, iemenita ou indonésio, que veja, por exemplo, na música pop/rock, na utilização de um iPhone ou num comportamento social tido como cosmopolita, uma violação aos preceitos do Corão, provavelmente, terá que começar a sua jihad na porta ao lado de sua casa. Porque, é logo aí, na origem, que o “choque” entre diferentes visões e formas de estar em sociedade se dá.
Licenciado em Relações Internacionais, Mestre em Ciência Política e especialista em Assuntos Palestinianos pela Universidade de Bir Zeit