Prática de tortura pela polícia mexicana está “fora de controlo”
Durante a última década, a luta contra o narcotráfico levou a um endurecimento das práticas policiais. No México, vive-se com medo das “detenções arbitrárias” e da tortura, alerta a Amnistia Internacional
Eram 22h30 de 7 de Março de 2011 quando a casa de Ramón Durán Muñoz, no Estado da Baja California (Noroeste), foi assaltada por dez homens armados. Ramón, um octogenário, a sua filha María Guadalupe, o genro e o filho de ambos, com doze anos, foram todos levados para uma base militar, onde foram sujeitos a choques eléctricos, espancados com bastões e ameaçados de morte. Os homens que os levaram pertenciam aos serviços militares e procuravam uma confissão quanto ao envolvimento da família de Ramón no crime organizado.
Ramón, que já sofria de diabetes e de problemas cardíacos, acabou por morrer depois de ter estado detido durante um mês em que não recebeu qualquer cuidado médico. Em Julho, as acusações de posse ilegal de armas e drogas e de tentativa de homicídio foram retiradas. Os familiares de Ramón conseguiram interpor uma acção contra os militares – que nunca se identificaram –, acusando-os de tortura e de terem plantado provas falsas. Receberam uma indemnização de 4500 dólares (3450 euros), mas ninguém foi acusado. Em Janeiro, a família recebeu a informação de que o inquérito interno ainda decorria.
O caso de Ramón demonstra a cegueira das forças de segurança do México, que procuram apresentar resultados na luta que travam há décadas contra o narcotráfico. O relatório da AI Fora de Controlo: Tortura e maus-tratos no México revela que entre 2003 e 2013 houve um aumento na ordem dos 600% das denúncias de tortura e maus-tratos pelas várias polícias e exército. Há “um medo real de detenções arbitrárias” entre os mexicanos, diz o documento.
Esta é uma realidade que já se tornou rotina na vida dos mexicanos em regiões como a Baja California, Chihuahua ou o Estado do México, onde a insegurança é mais elevada. Um inquérito recente dá conta que 64% dos mexicanos temem ser torturados pela polícia, uma percentagem coincidente com aqueles que não confiam nas forças de segurança.
Jorge González dirigia-se com mais dez jovens para uma manifestação na Cidade do México, em Outubro de 2013, quando o autocarro em que se deslocava foi mandado parar. A polícia – um contingente de 50 elementos – revistou Jorge e o grupo que estava com ele. Os jovens foram imobilizados e levados para uma esquadra onde foram acusados de “ataque à paz pública”, por terem, segundo os agentes policiais, atirado cocktails molotov através das janelas do autocarro. Jorge foi condenado a uma pena de cinco anos e nove meses, baseada apenas nas declarações dos agentes. A dramática ironia é que Jorge foi detido enquanto se dirigia para uma manifestação que marcava o aniversário do “massacre de Tlateloco”, quando em 1968 dezenas de estudantes foram mortos pela polícia, enquanto protestavam contra o governo.
A organização alerta para a existência de uma “presunção frequente de que as acções da polícia e dos militares são legais e que a negação do acusado não tem sustentação”, “tornando difícil desafiar a versão oficial da detenção”.
Em termos legais, o México está vinculado à maioria das disposições internacionais contra a tortura, como por exemplo a Convenção da ONU, e até o próprio texto constitucional proíbe expressamente esta prática. No entanto, não há como mascarar a tendência da última década: em 2003, o Centro Nacional de Direitos Humanos recebeu 219 queixas de tortura, enquanto no ano passado esse número ultrapassou as 1500.
Apesar da escala do número – considerado inferior àquilo que deve ser a magnitude real do problema, de acordo com a AI –, o pico terá sido atingido durante a administração do Presidente Felipe Calderón (2006-2012), que fez da luta contra o crime organizado a sua grande bandeira. Em 2007, Calderón começou a envolver o exército nas operações policiais, um factor que a Amnistia considera “crucial para o aumento dos casos de tortura”.
Com a eleição do actual Presidente, Enrique Peña Nieto, há uma diminuição da violência, com uma queda de 27% da taxa de homicídios nos primeiros sete meses de 2014, em comparação com igual período de 2012, segundo o El País. O relatório comprova a descida das queixas de tortura com a nova presidência, mas ainda assim lembra que estas continuam a ser “seis vezes superiores ao número contabilizado há uma década”.
No início do mês, Ernesto López Portillo, director do INSYDE, uma ONG da área da segurança, dizia ao El País que “ninguém sabe porque estão a baixar os homicídios”. “Apenas nos dizem que estão a ter êxito, mas não nos dizem como.”