A social-democracia do medo
António Costa dizia na última Quadratura do Círculo que as coisas só mudariam quando, em França, a Frente Nacional de Marine Le Pen ganhasse as eleições europeias, no próximo mês de Maio. Toda a gente levaria um grande susto. Levaria?
Nessa altura, a questão da reforma inevitável do Estado de bem-estar europeu não se ecolocava ainda nos termos em que hoje a colocamos. A globalização ainda não tinha feito o seu caminho, a Guerra Fria ainda não tinha acabado e a revolução das novas tecnologias ainda não reduzia a distância ao tempo de um clique. Os “trinta gloriosos” que se seguiram ao pós-guerra tinham chegado ao fim, na sequência dos dois choques petrolíferos do início e do fim da década de 70. O crescimento desacelerava. As democracias europeias começavam a perceber que o modelo social que criaram depois da guerra teria, mais tarde ou mais cedo, de ser reformado. Nessa altura, não tanto por causa da sustentabilidade, mas pela necessidade de rever alguns excessos que tinham levado as pessoas a uma atitude passiva perante a responsabilidade sobre as suas próprias vidas.
Foi Bill Clinton quem deu o pontapé de saída para esta transformação com o programa dos “Novos Democratas”, que tirava as conclusões certas da revolução liberal de Reagan e de Thatcher. A ideia resumia-se numa frase: “From the welfare to the workfare.” Era preciso “libertar” as pessoas da armadilha dos subsídios, levando-as a assumir mais responsabilidades e criando incentivos para que entrassem no mercado de trabalho. A “terceira via” de Blair, hoje tão desprezada, foi a continuação deste movimento, que depois se alargou ao continente europeu, incluindo a Alemanha ou Portugal. A ideia era que os países europeus se tinham de adaptar ao desafio da globalização económica, tornando as suas economias mais amigas dos mercados e mais ágeis na adaptação às novas circunstâncias da concorrência mundial. A questão central da igualdade de oportunidades só podia ser resolvida, dizia-se então, através da qualificação das pessoas, ou seja, da educação.
O problema já era diferente: tratava-se de garantir a sustentabilidade a prazo dos sistemas de Segurança Social europeus por via da capacitação dos cidadãos e da aposta na inovação científica e tecnológica, capaz de sustentar uma “economia do conhecimento”. Na década de 90 e nos anos iniciais deste século, esta fórmula parecia possível. A Europa passou a última década a tentar adaptar-se a esta nova realidade. Começou em 2000 com a “estratégia de Lisboa”, uma iniciativa de Blair e de Guterres para adaptar a economia europeia à era da Internet e da globalização dos mercados, tentando tirar de ambas os mesmos benefícios que, na altura, os Estados Unidos tiravam. Ninguém ainda apensava na China. Mas não foi preciso muito tempo para se perceber que a principal consequência da era da globalização era a entrada das economias emergentes nos mercados mundiais, alterando profundamente os termos de troca internacionais, ao mesmo tempo que permitia tirar da miséria centenas de milhões de pessoas.
2. A crise financeira de 2008 acabou por expor em toda a sua extensão as debilidades das economias europeias (e americana) para competirem nesse novo mundo. Alguns países europeus (os nórdicos ou a Alemanha) foram mais rápidos a adaptar-se às novas circunstâncias. A “terceira via” teve o seu papel, não apenas no Reino Unido mas também na Alemanha, onde o chanceler Gerhard Schroeder levou a cabo um conjunto de reformas do mercado de trabalho e da Segurança Social que lhe permitiram passar de “doente da Europa” a uma das economias mais competitivas.
Sobrou um problema que a social-democracia ainda não conseguiu resolver: como travar o aumento brutal das desigualdades sociais, sem recorrer a um aumento acentuado dos impostos? Esta desigualdade não ocorreu apenas ou em maior grau nas democracias ricas, mas também nas economias “emergentes”. Podemos dizer que Portugal está hoje muito mais desigual do que no início da crise. Nada se compara com a desigualdade em que vivem países como a China ou o Brasil. Mas é este o maior problema que o centro-esquerda europeu enfrenta, sem grande capacidade de conseguir uma resposta que não seja a defesa acrítica e impossível do Estado social tal como existiu nas últimas décadas. Até à crise financeira, a estagnação dos rendimentos das classes médias foi politicamente sustentada pelo acesso ao crédito fácil. Hoje, o problema ficou à vista desarmada. A questão central da esquerda é esta. Quando está na oposição, grita pela defesa do Estado social. Quando está no governo, faz mais ou menos o mesmo que o centro-direita. Acresce que a almofada que lhe restava, o projecto de integração europeu, está em vias de mudar profundamente a sua natureza.
3. Regressando a Rosanvallon, as suas últimas obras são dedicadas à questão da desigualdade e da sua compatibilidade com a democracia. É possível que um CEO de uma grande empresa ganhe 500 vezes mais do que os trabalhadores menos bem pagos? Foi essa a herança dos trinta anos de “capitalismo de casino”. O neoliberalismo de Thatcher e de Reagan não nasceu por acaso. Nasceu dos excessos do estatismo económico e do Estado-providência. Como é que se faz o pêndulo virar agora na direcção contrária, quando a globalização dita regras de concorrência muito mais apertadas?
Há já alguns anos entrevistei o sociólogo alemão Wolfgang Merkel (conselheiro de Schroeder, Blair e Zapatero) sobre esta questão da sobrevivência dos partidos de centro-esquerda. As respostas não são simples, disse ele, e a sobrevivência nem sequer está assegurada. Chamou a atenção para uma nova clivagem, decorrente da globalização, entre as pessoas muito educadas e cosmopolitas (os “viajantes frequentes”) e as que chamou “comunitários nacionais”, os perdedores da globalização, concluindo que sobrava pouca coisa para o centro-esquerda, que estava a perder aceleradamente a sua base popular para os partidos de extrema-direita. É o que vemos hoje, com um problema novo e preocupante: o da “geração perdida”. Merkel lembrava o último livro de Tony Judt, no qual o grande historiador dizia que só restava a “social-democracia do medo”. Medo de perder tudo.
Hoje, a social-democracia europeia está mais preocupada com o passado do que com o futuro. O SPD quer fazer “esquecer” Schroeder. O Labour quer fazer “esquecer” Blair. O PS quer fazer “esquecer” Sócrates. E, já agora, também Guterres. Os Estados Gerais que organizou em 1995 já iam muito mais longe na necessidade de reformar o Estado social.
Muita gente acreditou que a chegada de François Hollande ao Eliseu alteraria os desequilíbrios políticos na Europa, claramente a favor da Alemanha e da sua receita para a crise. Vemos como está hoje Hollande. Depois, acreditou-se que a entrada dos sociais-democratas alemães no Governo de Merkel podia significar alguma coisa. Quem ouviu Peer Steinbrueck apelar a um Plano Marshall para os países do Sul, cujo sofrimento era inadmissível, não acredita que o SPD tenha assinado de cruz a política europeia da chanceler. O chefe do Eurogrupo é um trabalhista holandês que consegue ser mais radical do que Berlim. A clivagem aqui não é ideológica, é geográfica e cultural – atravessa a Europa a meio. É, portanto, bastante mais perigosa.
António Costa dizia na última Quadratura do Círculo que as coisas só mudariam quando, em França, a Frente Nacional de Marine Le Pen ganhasse as eleições europeias, no próximo mês de Maio. Toda a gente levaria um grande susto. Levaria?
Jornalista