Larry Diamond: A recessão democrática é real mas não é severa
Nos últimos 15 anos, mais de 20% das democracias do mundo falharam, e as mais maduras "não estão em boas condições", diz o analista norte-americano Larry Diamond.
Há menos de duas décadas o Ocidente acreditou que a democracia se expandiria pelo mundo. Hoje vemos exactamente o contrário. Tem falado em “recessão democrática”. Estávamos errados antes?
Em primeiro lugar, temos de avaliar as tendências negativas de forma proporcionada. Antes de perguntarmos porquê, temos de perguntar o quê. É verdade que vivemos uma recessão democrática, que reúne vários elementos distintos. O primeiro é que estamos a viver uma estagnação desde há alguns anos, em matéria de expansão democrática no mundo. Nasceram algumas democracias; houve também algumas democracias que falharam mas retomaram o seu caminho, e houve bastantes democracias que, pura e simplesmente, falharam. Nos últimos 15 anos, mais de 20 % das democracias existentes nesse período falharam.
É muito.
É muito. Por outro lado, a percentagem de Estados que são democracias, mesmo que apenas democracias electivas, manteve-se. Representam um pouco menos de 60% dos países. O que é praticamente o mesmo que antes deste período de estagnação. A questão é que houve regressões em alguns Estados importantes: Venezuela, Rússia, Nigéria etc. E devemos preocupar-nos com os retrocessos em Estados grandes e estratégicos.
Em primeiro lugar, na Rússia.
Sim. Não que a Rússia tenha chegado a funcionar muito bem em termos democráticos, mas no tempo de Boris Ieltsin tivemos um nível elevado de pluralismo político e eleitoral. Agora, sob Vladimir Putin, temos um poder extremamente hegemónico e autoritário.
Apesar disto, e para pôr as coisas na sua devida proporção, se olharmos para os níveis de liberdade no mundo, incluindo os direitos políticos e as liberdades cívicas, há um retrocesso em relação ao que tínhamos há 8 ou 10 anos. Mas não por uma grande diferença. Por isso digo que há uma recessão democrática que não é severa. Não é uma débacle, mas é sentida como muito pior do que aquilo que os dados nos dizem.
E porquê?
Creio que por duas razões. Em primeiro lugar, é cada vez mais evidente que as democracias mais maduras e mais desenvolvidas não estão em boas condições.
Em termos económicos?
Não apenas em termos económicos. A maioria das pessoas sente-se frustrada e desapontada com as performances das suas democracias. Na Europa, sente-se isso sobretudo em termos económicos. E ainda mais em Portugal, Grécia ou Espanha. E há, de facto, condições económicas muito sérias em grande parte da União Europeia. Se olharmos para os números do desemprego jovem, que parecem corresponder a uma verdadeira depressão, é um forte sinal de alarme.
Mas não se trata apenas da performance económica. Há um sentimento nessas democracias de que as instituições políticas não estão a funcionar como deve ser. Há uma crescente desconfiança na capacidade das instituições democráticas de conseguirem encontrar as soluções para os seus problemas.
Mas há também a sensação de que não temos escolha, que as decisões são tomadas em Bruxelas e em Berlim e que as temos de aceitar.
Mas esse é problema distintivo da União Europeia. Os europeus sentem que perderam parte do escrutínio sobre a política. Que as decisões tomadas pela União Europeia não são escrutinadas pelas pessoas e que perderam uma boa parte da sua soberania. Mas creio que os académicos e os políticos europeus andam a dizer isso já há algum tempo. Provavelmente, vão ter de avançar para uma integração completa ou, então, as pessoas podem abandonar o projecto europeu por frustração ou por desespero.
A consequência tem sido a emergência de partidos radicais, populistas, nacionalistas.
Isso é um facto e estou muito preocupado com o que pode vir a acontecer na Grécia, em particular. Vemos esse fenómeno a espalhar-se na Europa e vemos também o Tea Party nos Estados Unidos, uma espécie de partido “semi-anti-sistema”. É um partido dentro de um partido Mas também é preciso lembrar que a sua ascensão foi extremamente facilitada por uma única e cada vez mais disfuncional característica do sistema político americano, que está a precisar de uma reforma urgente, e que é o nosso sistema das primárias. Temos a regra do first pass the post nos círculos unipessoais. E, para escolher os candidatos dos partidos, realizamos eleições primárias meses antes das eleições gerais. O problema é que a afluência às urnas destas primárias tende a ser muito baixa e quem vai votar são os eleitores mais comprometidos ideologicamente. Esta é uma das razões pelas quais o sistema partidário está tão polarizado: as primárias pressionam os dois partidos para os extremos e deixaram de representar o eleitorado moderado.
Voltando à Europa, em que medida é que esta sensação das pessoas de que não controlam as decisões e de que estão condenadas à austeridade pode erodir a democracia?
Uma forte recessão económica coloca sempre a democracia em stress e os votantes num estado de espírito muito negativo. Os níveis de confiança nos políticos e nos governos declinam e as pessoas olham para alternativas políticas mais extremadas. Mas sabemos, por muita experiência acumulada, que estas alternativas não têm capacidade para dar respostas credíveis aos problemas no longo prazo. São problemas que radicam em políticas orçamentais insustentáveis. Mas creio que seria boa ideia colocar a ênfase não apenas na educação cívica mas também na educação financeira. Os líderes políticos têm de encontrar uma linguagem para explicar às sociedades os dilemas que elas enfrentam. Incluindo as leis fundamentais da economia, que não podem ser ignoradas permanentemente. As sociedades não podem gastar mais do que produzem indefinidamente.
É possível em democracia não haver alternativas políticas que as pessoas possam escolher?
Há sempre escolha. Portugal pode exercer a opção nuclear, em termos económicos e financeiros: sair do euro. Pode regressar à sua moeda, desvalorizá-la e entrar num período de hiperinflacção. E se vocês não querem essa alternativa é porque sabem que as consequências seriam desastrosas. A situação económica é muito, muito má. E torna, por isso, as alternativas em desastres. A única saída, para Portugal ou Grécia ou Irlanda, é que tem de haver um reconhecimento franco e aberto da realidade e como chegaram aqui, quando o dinheiro barato lhes era enfiado pela boca abaixo pelos bancos, mas tem de haver também alguma partilha das dificuldades na União Europeia como um todo.
Vimos com grande entusiasmos os ditadores caírem no Norte de África para dar lugar à Primavera Árabe. Hoje, a Primavera está a tornar-se Inverno. Como olha para isto?
Sobre a Primavera Árabe, a história ainda não chegou ao fim. Há uma enorme frustração no mundo árabe com regimes que não respondem às aspirações dos seus cidadãos, que são injustos e bastante ineficazes. Este sentimento está longe de ter desaparecido e a razão da Primavera não desapareceu. Quatro líderes foram derrubados: na Tunísia, Egipto, Líbia e Iémen. A Síria é um país devastado onde metade da população foi deslocada. O Bahrein viu um rude esmagamento dos protestos da maioria xiita, alimentado pela Arábia Saudita e por outros países do Golfo. A Líbia derrotou o ditador mas aparece agora mergulhada na instabilidade. Não é um Estado, é um conjunto de milícias, até que a autoridade política central consiga estabelecer ordem em todo o território. O Egipto está a cair numa ordem política extremamente repressiva e nacionalista – quase fascista –, sob o domínio dos militares. A causa da democracia foi derrotada durante algum tempo. No entanto, a Tunísia está num caminho democrático e vai emergir como a primeira democracia árabe. Ainda tem problemas económicos, mas tem uma real oportunidade de criar e estabilizar instituições democráticas. Vimos um compromisso político histórico entre o partido islâmico moderado e a coligação secular. O Iémen, que continua a alimentar o terrorismo, conseguiu um importante compromisso no ano passado e a sua Conferência para o Diálogo Nacional, a que ninguém está a prestar atenção, é um bom sinal. Por isso, a Primavera Árabe não é um caso encerrado: um caso bem-sucedido é um a mais do que existia antes. Creio que, no Egipto, quando as pessoas descobrirem que os militares não têm qualquer solução para os problemas económicos ou da corrupção, vão voltar às exigências anteriores.
O que se está a passar na Rússia e na Ucrânia constitui um desafio muito complexo para a Europa, porque a economia é hoje muito mais interdependente e dificilmente compatível com o nacionalismo.
Há duas faces da mesma moeda. Uma das coisas que está a alimentar o nacionalismo é justamente a reacção à interdependência e a perda de soberania. Não é a única, mas é importante. A direita nacionalista e o populismo em alguns países europeus é também uma reacção ao sentimento de perda de soberania. No caso da Rússia, uma parte considerável das razões para o que se está a passar – e temos de manter no espírito o que aconteceu na Alemanha depois da I Guerra -, é um sentimento de humilhação nacional. Era uma grande nação que foi ao chão por causa do Ocidente. Vladimir Putin quer restaurar a dignidade e a honra da Rússia e reunificar e recuperar partes do antigo país. Não quero comparar Putin com Hitler, que ele não é com certeza, mas há esta dinâmica similar entre a Rússia de hoje e a Alemanha naquela altura. Temos de lidar com esta situação com muito cuidado. Por um lado, vamos ter de desenhar linhas vermelhas perfeitamente claras, porque creio que tudo está agora posto em questão, incluindo os Bálticos. São países da NATO e é preciso deixar claro a Putin que qualquer agressão militar contra um destes três países significaria uma guerra com a NATO. Até porque, se não fosse assim, a NATO acabaria.
Os países europeus estão demasiado apegados ao seu bem-estar ou aos seus problemas económicos e não parecem preparados para enfrentar um mundo que mudou completamente. É também um problema de democracia?
De democracia, de prosperidade, de apatia, de muitas coisas. Penso que vamos de ter de questionar todas as nossas certezas actuais. Seria extremamente imprudente para os EUA reduzir a sua capacidade militar no grau que o Presidente Obama está a propor. Sobretudo face ao que acaba de acontecer com a agressão russa para engolir a Crimeia e o perigo que corre a periferia europeia: os Bálticos, Polónia, Roménia… Qualquer sítio onde a Rússia tenha uma fronteira está no pensamento de Putin, incluindo a Transnístria e já para não falar da parte oriental da Ucrânia. Putin é muito popular e está a apelar aos sentimentos mais profundos da psicologia russa. De alguma maneira vamos ter de desviar a Rússia desta trajectória que é de soma zero, para uma trajectória de partilha da prosperidade.
Esta crise financeira abalou a relação entre democracia e crescimento económico, que fazia das democracias ocidentais o modelo mais aliciante para os países que queriam desenvolver-se. Esta ligação não é hoje tão óbvia e o modelo chinês parece mais atractivo.
Agora tocou na outra dimensão da recessão democrática. Há a sensação de que as democracias mais ricas do mundo estagnaram, estão a funcionar mal, são incapazes de enfrentar os seus problemas e que, por outro lado, existe uma China autoritária que é capaz de tomar decisões, que cresce a grande velocidade e que apresenta um modelo dinâmico. Creio que esta é a questão que está a alimentar a desilusão democrática. Mas precisamos de considerar tudo isto numa forma mais profunda. Em primeiro lugar, há vários regimes autoritários no mundo, e muitos deles não estão a sair-se bem do ponto de vista económico. O segundo mais poderoso regime autoritário, depois da China, é Rússia, que está a crescer a 1 % ao ano, menos do que a própria Europa. Não há muito mais na economia russa do que gás e petróleo. Putin, neste aspecto, é parecido com os militares egípcios: não tem qualquer resposta para os problemas económicos do país e para a aspiração correspondente das pessoas. Para isso é preciso tecnologia, investimento estrangeiro nos sectores mais desenvolvidos da economia e não apenas na energia. Putin não está a fazer isso. Os militares egípcios não estão a fazer isso.
A China está a fazer isso.
Está. Mas tem alguns problemas económicos e sociais vulcânicos. Tal como a Rússia, enfrenta uma corrupção generalizada, de proporções quase cleptocráticas. Muitos dos membros dirigentes [do PCC] tornaram-se milionários, têm o dinheiro em contas no estrangeiro e isso torna mais evidente a desigualdade. O índice de Gini, que mede a distribuição do rendimento, é um dos mais altos do mundo e isso está a gerar um grande ressentimento entre os que têm e os que não têm. Para seu crédito, o novo Presidente reconheceu que é um problema potencialmente explosivo e deixou claro aos seus parceiros políticos que têm de libertar-se dos luxos e adoptar uma vida mais modesta. Mas o problema vai continuar. Em segundo lugar, há um problema com o sistema bancário e com o imobiliário. Há cidades inteiras na China em que os apartamentos estão vendidos mas ninguém vive neles. Foram comprados para a especulação imobiliária e não há ninguém para os comprar porque os preços estão enormemente inflacionados. É uma bolha gigantesca que tem por baixo o próprio sistema bancário. O governo tem consciência disso mas ainda não é claro se vão conseguir gerir estes problemas sem algum tipo de crash que desencadeará uma crise económica.
O crescimento está a desacelerar justamente porque o modelo precisa de revisão?
O crescimento será provavelmente de menos de 7 % este ano. E não pode baixar muito mais sob pena de desafiar as expectativas das pessoas, criadas por um boom contínuo. O problema é que não há mais nada para legitimar o poder comunista na China a não ser o crescimento. Já ninguém acredita no comunismo, muita gente jovem trata-o como uma piada. As pessoas que estão a aderir ao Partido Comunista são empresários e profissionais que não acreditam no comunismo mas que querem ser ricos. Se muita gente vir que o sistema já não está a funcionar, dirá: então dêem-nos pelo menos a liberdade política. A China não pode transformar-se numa sociedade de classe média sem ter adquirido alguns valores da classe média ou, pelo menos, mover-se nessa direcção. Espero que a China consiga mover-se nesse sentido numa forma gradual, como Taiwan o fez. O que me preocupa é que, se o regime comunista colapsar de repente numa grande crise económica, o que vamos ver na China não será um novo avanço para a democracia mas uma espécie de poder militar que quererá apoderar-se de Taiwan, das ilhas do Mar da China do Sul e do Mar da China Oriental, num caminho nacionalista para distrair as pessoas da crise económica.
Está hoje a discutir-se essa ligação dinâmica entre democracia e classe média em todo o mundo, sobretudo por causa da nova classe média que a globalização permitiu. Na Europa é ao contrário: o declínio da classe média ou, como dizem os britânicos, o “meio espremido".
Creio que é importante para a democracia, mas não creio que a classe média esteja a desaparecer. Está apenas, como disse, a ser espremida. E aí a questão passa a ser qual é a estratégia para revitalizar a economia e reconfigurar o que significa ser da classe média. Antes, a classe média ia para uma fábrica ou para um serviço, trabalhava 40 horas por semana durante 30 anos e obtinha uma pensão. Isso despareceu no mundo globalizado em que vivemos hoje, em que o capital muda de sítio rapidamente através das fronteiras graças às novas tecnologias, que estão também a progredir rapidamente, com o aumento da concorrência. As democracias vão ter de conseguir uma estratégia para um equilíbrio sustentável entre rendimentos e compromissos orçamentais. E isso vai exigir uma reconfiguração dolorosa da negociação social. Em segundo lugar, é preciso investir na educação e nas capacidades da gente nova, de forma a que seja competitiva à escala da economia global, porque, de outra maneira, não haverá esperança para eles.
Quando países como a Coreia, Tailândia, Singapura já ultrapassaram parte da Europa e os EUA em matéria de aprendizagem, como mostram estudos recentes, mais os nossos rendimentos irão para lá. A chave para crescimento é a educação e o domínio tecnológico.
De que modo a internet alterou as regras de funcionamento da política, nas democracias e fora delas?
O seu papel foi muito importante na economia global, como já disse. Mas também tem contribuído para a democratização de muitos aspectos da nossa vida. Hoje, cada um pode ser um jornalista, um colunista de um blogue ou um fotojornalista mesmo que não tão bom como ele. Cada um pode ser também um repórter de investigação: as injustiças podem espalhar-se muito rapidamente. É difícil manter segredos e é mais fácil transformar as pessoas em agentes do escrutínio dos seus governantes. É, em geral, uma coisa boa porque contribuiu para a transparência e a democratização dos fluxos de informação.
Mas também pode ser uma coisa má na medida em que fomenta o curto prazo.
Põe uma grande pressão na resposta dos media, pode desvirtuar o profissionalismo e espalhar informação fictícia ou pouco verdadeira, desgasta a imprensa escrita, mesmo que esta tenha novas oportunidades nos media digitais. Mas há estas tendências para a transparência e o acesso à informação que dá poder às pessoas. Além disso, as novas tecnologias revelam-se um instrumento fundamental de mobilização e de organização, como vimos na Praça Tahrir ou na Maidan, em Kiev. Estes instrumentos são extremamente corrosivos para o autoritarismo na Rússia, China ou Irão, que tentam desesperadamente controlá-los.
Há algum momento da história europeia que possamos comparar com este que estamos a viver? Antes da I Guerra ou antes da II Guerra?
Há sempre a possibilidade de fazer comparações e analogias. Mas desconfio delas, porque o mundo de hoje é totalmente diferente daquele que existia nessa altura. As pessoas estão conectadas digitalmente, são muito mais educadas e tiveram as lições de duas guerras mundiais. Tirar desta recessão económica alguma espécie de inevitabilidade – se isto continua, vai conduzir-nos ao fascismo ou a uma calamidade política - é um salto demasiado grande. Mas também não podemos ignorar as lições da História, até porque podem ser um sinal de aviso sobre o que pode acontecer quando pessoas habituadas a uma existência próspera são confrontadas com a inevitabilidade de declínio. As nossas democracias estão muito mais consolidadas do que no tempo da República de Weimar. Não há comparação possível. Temos a União Europeia e a Internet. Devemos lembrar-nos dessas experiências da História mas não cair numa espécie de desespero fatalista de que vamos repetir tudo de novo.