A Praça da Independência teve o dia do seu “Juízo Final”
O dia mais violento nos protestos na Ucrânia fez pelo menos 25 mortos, segundo os números mais actuais. A polícia anti-motim cercou e desmobilizou os ocupantes da Praça da Independência, pondo fim a três meses de ocupação.
A comparação entre o centro de Kiev e um campo de batalha foi utilizada por diversas vezes nos últimos meses, mas talvez nunca tenha sido tão certeira como na última noite. Durante o dia, a capital ucraniana assistiu ao auge da violência entre a oposição e as forças de segurança, com pelo menos 25 mortes confirmadas. À noite, a Praça da Independência, símbolo máximo da luta dos manifestantes, foi cercada pelas forças anti-motim e teve início uma batalha que ninguém queria travar, mas que ninguém conseguiu evitar.
Estava prevista uma concentração pacífica à frente do Parlamento com o objectivo de pressionar os deputados, que se reuniam para discutir a revisão constitucional, e que juntou cerca de 20 mil pessoas. No entanto, em poucos minutos o protesto tornou-se violento. Os manifestantes atiravam pedras, paus e cocktails molotov improvisados, e a polícia ripostava com gás lacrimogénio e balas de borracha. Várias fotografias de balas de metal circularam pelas redes sociais, que teriam sido utilizadas pela Berkut, a polícia anti-motim.
Os confrontos estalaram em vários locais do centro de Kiev. Um grupo de 200 a 300 pessoas chegou mesmo a invadir o edifício da sede do Partido das Regiões, no poder. A polícia conseguiu retirar os manifestantes do local ao fim de alguns minutos, mas um funcionário do edifício acabaria por morrer, segundo um comunicado do partido.
Pelo menos 25 pessoas morreram, incluindo nove polícias, e cerca de 300 ficaram feridas, entre manifestantes e agentes de segurança, segundo as agências. A linha vermelha da violência nas ruas de Kiev foi ultrapassada uma vez mais.
Ruas perderam a paciência
O caos deste dia do “Juízo Final” – como lhe chamou um jornalista ucraniano – que se juntou ao caos dos últimos três meses, surgiu depois de uma fase de negociação muito lenta, em que o Parlamento e o Presidente Viktor Ianukovich testaram a paciência das ruas.
As reivindicações da oposição eram conhecidas desde o início do processo negocial: o retorno à Constituição de 2004, com a consequente perda de poderes do Presidente, e a marcação de eleições antecipadas. A estratégia de Ianukovich também era conhecida: ganhar o máximo de tempo para tentar fortalecer o apoio de Moscovo e cansar os manifestantes.
Foi assim que foram feitas várias concessões à oposição, tais como a demissão do governo, o chumbo das leis anti-protestos e a concessão de uma amnistia condicional. Mas estas eram apenas cedências conjunturais para os manifestantes, que procuram nada menos do que a queda de Ianukovich e do actual sistema.
As sessões parlamentares foram-se sucedendo nas últimas semanas, sem que as verdadeiras reivindicações fossem atendidas. No início do mês, uma pequena multidão concentrou-se em frente ao Parlamento. Traziam consigo uma faixa que transparecia um alerta: “Estamos fartos de esperar.” Volodimir, um homem de 50 anos entrevistado pela AFP, reflectia precisamente esta fatiga. “As pessoas estão cansadas de esperar pelas emendas constitucionais, precisam de actos.”
Por trás dos receios dos manifestantes estava também a perspectiva de que Ianukovich fosse nomear uma personalidade da linha dura pró-russa para chefiar o governo. Na véspera, Moscovo anunciou que ia disponibilizar a segunda tranche (cerca de 1,5 mil milhões de euros) do empréstimo que tinha acordado com Ianukovich, de mais de 11 mil milhões. O anúncio foi visto como um estímulo para que o Presidente nomeasse um gabinete favorável aos olhos do Kremlin. A Rússia suspendeu o apoio económico à Ucrânia depois da queda do governo, afirmando querer aguardar pelo novo executivo. A linha de financiamento russa surgiu depois de Ianukovich ter rejeitado assinar um acordo comercial com a União Europeia, despertando um protesto generalizado em Novembro a favor de uma aproximação do país à Europa.
A oposição desdobrou-se nos últimos tempos em contactos internacionais para tentar obter um acordo semelhante do Ocidente, mas o máximo que conseguiu foram palavras de apoio e incentivo. Bruxelas faz depender uma possível ajuda financeira da implementação de um rigoroso programa de reformas económicas e já recusou entrar num “leilão” com Moscovo.
As cinzas da Maidan
O jogo da espera de Ianukovich terminou na noite desta terça-feira da pior forma possível. Ao dia mais violento seguiu-se a noite em que a Praça da Independência foi tomada pela polícia, numa operação “anti-terrorista”, como foi descrita pelos seus responsáveis.
A meio da batalha, o líder do partido da oposição Udar, Vitali Klitschko, dirigiu-se directamente aos “países democráticos”. “O poder desencadeou uma guerra contra o seu próprio povo, os responsáveis dos países democráticos não podem continuar inactivos”, disse. O pedido de sempre foi repetido, mesmo durante o caos: “O único homem que pode resolver este conflito deve convocar eleições presidenciais e parlamentares antecipadas.”
Do lado do poder, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Leonid Kozhara, apelou à comunidade internacional que condene “as forças radicais” que perpetraram “ataques armados a órgãos do governo, incendiaram edifícios e causaram danos pesados às forças de segurança”.
O futuro é agora incerto para a Ucrânia. A via negocial falhou, as ruas vão estar mais inflamadas do que nunca e parece ser difícil que as duas partes, cada vez mais polarizadas, consigam alcançar um acordo.
A violência levada a cabo pelos membros mais extremistas da oposição deu a Ianukovich a oportunidade de que estava à espera desde o início dos protestos – o desmantelamento dos acampamentos da Praça da Independência, a EuroMaidan.
Enquanto a polícia anti-motim dispersava a multidão da Praça da Independência, em várias cidades da parte ocidental da Ucrânia os edifícios da polícia eram invadidos, revelando, uma vez mais, um país dividido. Uma guerra civil seria o pior dos cenários, mas será uma ideia que poucos poderão afastar.
No espaço que simbolizou a luta da oposição nos últimos meses apenas irá ficar muita cinza. Em cinza parecem estar também as hipóteses de uma saída pacífica para a crise que engoliu o segundo maior país europeu.