A perigosa memória de Tiananmen
Vinte cinco anos depois da violenta e sangrenta repressão do movimento pró-democracia na China, esquecer é a opção mais fácil
Mantive-me fiel às minhas regras. Quando decidi deitar fora toda a estrutura do livro que tinha delineado na minha proposta e avançar para uma coisa totalmente diferente, esperei até sair da China, meses depois, para informar a minha paciente editora. Não contei a nenhum dos meus colegas no que estava a trabalhar fora das minhas horas de trabalho. Durante semanas, nem os meus filhos — então com sete e cinco anos — souberam, por medo que pudessem fazer algum comentário fora de casa. Mais tarde, quando começaram a perguntar porque não tinha tempo para brincar com eles, obriguei-os a jurar segredo.
Eles conseguiram cumprir o prometido. Só percebi o peso que tinha posto sobre os seus ombros depois de deixarmos a China, no Verão passado, graças a uma bolsa da Universidade de Michigan. Ali, como que inebriados com a súbita liberdade de dizerem o que queriam, os meus pequenos começaram a abordar pessoas nas ruas de Ann Harbour e a dizer-lhes “A minha mamã está a escrever um livro!”.
Talvez estas precauções fossem desnecessárias. Afinal de contas, tinha uma posição privilegiada como jornalista, com um cartão de imprensa e um passaporte estrangeiros, que me ofereciam uma saída que nenhum dos meus entrevistados tinha.
O regime previne-se
Para eles, a decisão de falar foi tomada com a consciência de que não podiam antecipar os riscos. Ao mesmo tempo, eles acreditavam que o silêncio significava serem coniventes com a tentativa do Governo controlar a memória. Como escreveu um opinativo professor de cinema, Cui Weiping, se as pessoas continuarem em silêncio, “o 4 de Junho deixará de ser um crime cometido por um pequeno grupo de pessoas para passar a ser um crime em que todos participámos”.
Este ano, o pré-aniversário chegou mais cedo, revelando como, 25 anos depois, os acontecimentos de 4 de Junho de 1989 ainda são relevantes para o Partido Comunista da China.
A primeira vaga de prisões teve como alvo um grupo de activistas, dissidentes e advogados, que realizaram um “seminário comemorativo do 4 de Junho” numa casa particular de Pequim, no dia 3 de Maio. Pousaram para uma fotografia de grupo e as suas expressões não eram nem desafiadoras nem festivas, eram solenes — como se se estivessem a preparar para o que estava para vir. Poucos dias depois, cinco dos 15 participantes foram presos e acusados de “provocarem distúrbios públicos”.
Um jornalista veterano, Gao Yu, nem chegou ao seminário, foi preso antes, sob a acusação de divulgar segredos de estado. Nove outros, incluindo Zhang Xianling, que perdeu o filho de 19 anos, morto por uma bala em 1989 e de quem faço um perfil no meu livro, foram detidos para interrogatório e depois libertados.
Sobre o seminário, o jornal estatal Global Times escreveu: “É óbvio que um acontecimento destes, relacionado com os assuntos políticos mais sensíveis da China, pisou a linha vermelha da legalidade”. Saber a posição exacta dessa linha é praticamente impossível, uma vez que a lei permanece subserviente à política.
O artista Chen Guang não esperava arranjar qualquer problema quando aceitou o convite de uma dúzia de amigos para, num edifício vazio nos arredores de Pequim, fazer uma performance em Abril. Chen, sobre quem também escrevo no meu livro, era soldado em 1989 e foi um dos mobilizados para esvaziar Tiannamen — essa experiência transparece na sua arte. Mas a sua performance foi bastante inócua. Abria com uma rapariga que agitava uma lanterna numa sala escura, iluminando datas pintadas na parede que iam de 1989 a 2014. Quando as luzes se acenderam, apareceu Chen, com uma máscara na boca, para pintar as paredes de branco, obliterando os anos. Por isto, foi detido a 7 de Maio.
Como um amigo de Chen disse ao New York Times, “as pessoas querem lembrar o que se passou a 4 de Junho, mas não podem fazê-lo em espaços públicos e, agora, parece que também não podem fazê-lo em privado”.
Perante este estrangulamento, esquecer é a opção mais fácil, e a melhor escolha talvez seja mesmo a omissão. Como escreveu o artista Ai Weiwei no 20.ºaniversário do massacre, “Não tendo o direito de lembrar, escolhemos esquecer”.
Lembrar o que aconteceu é lembrar o alcance do protesto. Não foram apenas milhares de estudantes que protestaram em Tiananmen, foram centenas de milhares, de todas as profissões, que se manifestaram e paralisaram dezenas de cidades em toda a China.
No curso das minhas pesquisas, descobri novos dados sobre a violenta repressão dos protestos na cidade de Chengdu (Sul), onde os dados do governo local admitem que oito pessoas morreram e 1800 ficaram feridas nos três dias de combates caóticos nas ruas. As testemunhas acreditam que o número de mortos foi muito maior. Lembrar as histórias não contadas é um exercício perigoso, porque nos faz perguntar quantas histórias haverá por contar num país com 1,3 mil milhões de pessoas.
Uma mãe não esquece
Lembrar os objectivos de 1989 — as frases que eram gritadas pediam mais democracia, combate à corrupção, menos enriquecimento ilícito dos governantes, menos concentração de poderes nas mãos de tão poucos — é reconhecer que não foram alcançados.
Há registos que dizem que há bens no valor de 2,7 mil milhões de dólares nas mãos da família do antigo primeiro-ministro Wen Jiabao. Porém, os activistas anti-corrupção que exigiram ao Governo a divulgação dos bens dos líderes foram presos e acusados de incitamento à subversão.
Os contornos da impetuosa e poderosa China de hoje foram moldados por decisões tomadas no rescaldo da repressão de Tiananmen. Foi nessa altura que Deng Xiaoping, um líder determinante, decidiu aplicar a liberalização económica sem reformas políticas, um padrão que continua a ser usado na actualidade. Pôs em prática uma ciclópica campanha de educação patriótica que gerou uma geração de jovens nacionalistas. Também abriu caminho ao crescimento do aparato de segurança que tem como missão prevenir (e travar) o alastramento de protestos, vigiando os que podem causar dano à população — como as mães que se recusam a esquecer que o Estado matou os seus filhos.
Quando Zhang, de 76 anos, vai ao cemitério chorar o filho, dezenas de polícias à paisana seguem-lhe os movimentos. Houve um ano em que ela conseguiu fazer uma oferenda no local onde o filho, Qang Nan, foi morto, o passeio da avenida da Paz Celestial. No ano seguinte foi proibida de sair de casa nas semanas que antecederam o aniversário do massacre. Hoje está uma câmara apontada ao local, à espera que ela volte.
Os líderes chineses estão bastante vulneráveis porque as suas linhagens começam nos vencedores da luta pelo poder que se travou no partido em 1989. Quando a actual geração de líderes chegou ao poder, há 18 meses, os mais optimistas disseram que poderiam estar suficientemente afastados dos acontecimentos de 1989 para começarem a admitir o que se passou. Aconteceu o contrário, e o líder do partido, Xi Jinping, travou qualquer reavaliação histórica dos actos de Mao Tsetung. O grande objectivo do partido é garantir a sua própria sobrevivência, e decidiu que tem que manter em rédea curta qualquer debate sobre Tiananmen, em público, em privado ou no ciberespaço.
Os censores do ciberespaço estão ocupados a apagar qualquer alusão, por mais elíptica que seja, ao 4 de Junho. À medida que o aniversário se aproxima, e tendo em conta o que aconteceu em anos anteriores, a lista de palavra banidas vai crescer para incluir “64”, “hoje”, “aquele ano” e outras “palavras sensíveis”. A História é tão perigosa que a versão chinesa da Wikipedia, a Baidu Baike, não tem uma entrada para o ano de 1989.
Há dias, cruzei-me com Tiananmen escrito pelo poeta britânico James Fenton menos de duas semanas depois da sangrenta repressão. Um quarto de século depois, as suas palavras continuam verdadeiras, talvez até mais agora do que então.
“Tiananmen
Is broad and clean
And you can’t tell
Where the dead have been
And you can’t tell
What happened then
And you can’t speak
Of Tiananmen.”
(“Tiananmen
É ampla e limpa
E não sabemos dizer
Onde estiveram os mortos
E não podemos dizer
O que aconteceu então
E não podemos falar
De Tiananmen”.)
Louisa Lim é jornalista da NPR e escreveu “The People’s Republic of Amnesia: Tiananmen Revisited”, que estará à venda a 4 de Junho
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post