A morte saiu à rua num dia de tréguas

Os confrontos na Ucrânia vão batendo recordes trágicos. Dezenas de mortos põem a nu a violência da repressão e Ianukovich vê-se cada vez mais isolado, apenas com a demissão no horizonte.

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As ruas recusaram qualquer trégua e o protesto permanece na Praça da Independência em Kiev, Ucránia LOUISA GOULIAMAKI/AFP
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Na véspera, tudo parecia encaminhar-se para um cessar-fogo. O Presidente Viktor Ianukovich e os líderes da oposição saíram de uma reunião em que tinham concordado com uma trégua nos confrontos dos últimos dois dias e que já tinham feito mais de 20 vítimas mortais. Mas como tem sido habitual no desenrolar desta crise, tudo mudou num curto espaço de tempo. E mudou para o pior cenário possível.

As ruas recusaram qualquer trégua e o protesto permaneceu na Praça da Independência. Os manifestantes avançaram sobre as forças de segurança que rodeavam a Maidan e a polícia, apanhada de surpresa pelo ímpeto dos opositores, segundo jornalistas no local, respondeu com munições reais. O caos instalou-se no centro da cidade.

Dos telhados viam-se atiradores furtivos da polícia que com uma precisão profissional, iam abatendo manifestantes. Imagens televisivas mostravam grupos de pessoas que, sem aviso, iam caindo baleadas. Do outro lado, guerrilhas urbanas bem equipadas iam capturando polícias e encaminhavam-os, em fila indiana, para o edifício do Ministério da Energia, entretanto ocupado. Muitos eram jovens de 18 e 19 anos que, diziam, estavam há mais de 24 horas sem comer. O destino dos cerca de 60 agentes capturados seria decidido conforme o desfecho das negociações entre Ianukovich e a oposição.

Carnificina precipita conversações
A caminho de Bruxelas, para a cimeira dos ministros dos Negócios Estrangeiros da UE, que decretou sanções contra Kiev, os chefes da diplomacia da França, da Alemanha e da Polónia deslocaram-se à capital ucraniana para se reunir com Ianukovich e com a oposição. A carnificina da manhã precipitou as conversações. É incerto qual o tipo de acordo que os mediadores europeus podem conseguir, mas ficou patente que, mesmo em clima de urgência, o caminho não é fácil. Laurent Fabius falava de negociações “muito difíceis”.

A primeira reunião com Ianukovich demorou mais de cinco horas. No final, o pouco que se sabia foi avançado pelo primeiro-ministro polaco, Donald Tusk, que falou na “vontade” do Presidente em convocar eleições presidenciais e parlamentares ainda este ano e em rever a Constituição. A marcação de eleições parece ser um ponto indisputável neste momento. Trata-se da reivindicação central dos manifestantes e pela qual já morreu demasiada gente. Mas a simples convocação de eleições pode, por si só, já não ser suficiente. Sem a garantia de que Ianukovich não irá ser candidato, é muito provável que os protestos não parem.

A manhã sangrenta trouxe, uma vez mais, os receios de que uma guerra civil estivesse agora à beira de deflagrar. Notícias de que comboios com militares estariam a caminho de Kiev fizeram soar os alarmes. Na quarta-feira, os serviços de segurança puseram em marcha uma operação “antiterrorista” – que abriu possibilidade à polícia de usar armas de fogo – e que podia incluir uma intervenção do Exército. Em Dnipropetrovsk, no Leste, dezenas de manifestantes impediram que um comboio com 500 soldados seguisse até Kiev.

Enquanto os confrontos dominavam a capital ucraniana e os encontros diplomáticos se prolongavam, o resto do país reflectia as profundas divisões que vieram ao de cima nos últimos meses. Na Crimeia, região autónoma na costa do mar Negro de maioria russófona, falava-se na possibilidade séria de o país se desmembrar. Numa zona onde o discurso separatista é tradicionalmente forte, a Crimeia poderia ser uma das primeiras regiões a afastar-se.

No extremo ocidental da Ucrânia, as autoridades da região da Transcarpátia, com pouco mais de um milhão de habitantes, proclamaram-se “livres do poder de Ianukovich”, segundo a agência UNIAN. Mais a norte, em Rivne, o conselho regional votou a perda dos poderes da administração local, composta por membros do Partido das Regiões, de Ianukovich. “Vamos assumir a responsabilidade de gerir a região de Rivne”, afirmou à agência UNIAN o presidente do Conselho, Mikhailo Kirilov.

A correspondente da BBC dizia que as autoridades “perderam o controlo” sobre a região ocidental. Mais um sinal de alarme num país em que o desmembramento é cada vez mais referido de forma aberta.

Ianukovich perde apoio
A violência da repressão parece ter impressionado até os membros do partido de Ianukovich. Só nesta quinta-feira, dez deputados do Partido das Regiões abandonaram a defesa do Presidente e convocaram uma reunião urgente do Parlamento, para defenderem o regresso à Constituição de 2004, que previa um maior equilíbrio entre os poderes legislativo e presidencial, contrariando as pretensões de Ianukovich.

Os deputados do partido do poder usaram expressões de forte condenação da violência das forças de segurança, afirmando que “rejeitam quaisquer acções que tenham como objectivo agravar o conflito armado”. Dirigiram-se ainda aos militares, lembrando-lhes “o juramento que prestaram perante o povo ucraniano”, para que “não cumpram ordens criminosas no sentido de usarem armas de fogo”.

As cisões dentro do Partido das Regiões – e, sobretudo, a retórica de condenação das acções de repressão policial – indicam que Ianukovich irá estar cada vez mais isolado na sua luta pela manutenção do poder.

O Parlamento acabou por reunir-se, conseguindo um quórum mínimo, mas não votou a revisão constitucional. Depois de um longo debate, os deputados reprovaram a operação “antiterrorista” e aprovaram resoluções para impedir os militares de actuarem nos protestos e para libertar incondicionalmente todos os detidos desde 30 de Novembro. Apesar da pouca presença de deputados do Partido das Regiões, a esmagadora maioria votou favoravelmente, segundo as agências.

O ponto de partida para a resolução da crise poderá  sido alcançado. Mas para isso teve de se esperar pela morte de dezenas, talvez centenas de pessoas. Tudo num dia de tréguas.

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