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A marcha que também foi uma cimeira global

Europa discute os próximos passos, que poderão incluir um aumento da vigilância nas fronteiras ou uma alteração nos acordos de Schengen sobre a livre circulação.

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Líderes mundiais durante a marcha em Paris Philippe Wojazer / Reuters

Praticamente ninguém quis faltar ao apelo lançado pelo Presidente francês, François Hollande, para a marcha de homenagem às vítimas do ataque ao semanário satírico Charlie Hebdo e do assalto a uma mercearia judaica em Paris. Cerca de 50 chefes de Estado e de Governo – incluindo o primeiro-ministro português, Pedro Passos Coelho, – desfilaram em silêncio em Paris, atrás de uma faixa que dizia “Somos Charlie”, num dia forte em termos emocionais. No The Guardian, a jornalista Kim Willsher descrevia a presença de um tão grande número de líderes como algo “extraordinário” e sem precedentes. Como termo de comparação, Willsher referiu que para as celebrações do 70.º aniversário do desembarque na Normandia durante a II Guerra Mundial, no ano passado, foram convidados 19 chefes de Estado.

Da Europa, praticamente não faltou nenhum representante, com destaque para a presença da chanceler alemã, Angela Merkel, que marchou ao lado de Hollande, do primeiro-ministro britânico, David Cameron, e dos líderes das instituições europeias. Durante os vinte minutos em que circularam numa avenida de Paris, o ambiente entre os dirigentes foi de quase informalidade, onde foi possível ver, por exemplo, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, a poucos metros do presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas.

“Paris é a capital do mundo. O país inteiro vai levantar-se à altura do que tem de melhor”, declarou Hollande, ainda antes de se juntar à marcha. David Cameron saudou uma “manifestação de solidariedade”. “Pessoas por todo este país, novas e velhas, brancas e negras, dizendo que estamos com as vítimas, que não vamos permitir isto apenas porque somos um país livre, aberto e tolerante. Como britânico eu teria sentido precisamente o mesmo”, disse Cameron à BBC.

Mas houve também espaço para ausências, sobretudo da parte dos Estados Unidos. Nem o Presidente, Barack Obama, nem o secretário de Estado, John Kerry, se deslocaram a Paris, com a representação do Governo norte-americano a ser desempenhada pela embaixadora Jane Hartley. O procurador-geral, Eric Holder, também esteve na capital francesa para participar num encontro internacional com outros responsáveis pela segurança em que se discutiram as formas de travar o terrorismo. Vários países muçulmanos, como Marrocos, não se fizeram representar, apesar de se mostrarem solidários, por causa da presença de imagens consideradas “blasfémias” durante a marcha.

A participação de alguns líderes na marcha foi criticada pela organização Repórteres Sem Fronteiras. O grupo que defende a liberdade de expressão disse estar “chocado pela presença de líderes de países onde os jornalistas e bloggers são sistematicamente perseguidos, como o Egipto (que aparece no 159.º lugar na lista de 180 países do índice dos RSF sobre liberdade de imprensa, a Rússia (148.º), a Turquia (154.º) e os Emirados Árabes Unidos (118.º). “Não podemos deixar que os predadores da liberdade de imprensa cuspam nas campas do Charlie Hebdo”, afirmou o secretário-geral dos RSF, Christophe Deloire. No mesmo sentido, Andrew Strohlein, da Human Rights Watch, denunciou uma “hipocrisia incoerente”, através do Twitter.

Num dos momentos mais emotivos da tarde, Hollande encontrou-se com os familiares das vítimas dos ataques dos últimos dias e com alguns membros do semanário. O Presidente francês visitou igualmente os familiares de Ahmed Merabet, o polícia de origem argelina que foi abatido pelos autores do atentado ao Charlie Hebdo.

Ao fim da tarde, Hollande fez-se acompanhar por Netanyahu numa visita à Grande Sinagoga de Paris, como forma de homenagear as vítimas do ataque a uma mercearia kosher na sexta-feira em que morreram quatro pessoas. A visita do primeiro-ministro israelita ficou envolta em polémica devido às suas declarações de encorajamento à população judaica em França para irem para Israel, face ao clima de insegurança. “A todos os judeus de França e a todos os judeus da Europa, eu quero dizer: o Estado de Israel não é apenas o lugar onde rezam, o Estado de Israel é também a vossa casa”, disse Benjamin Netanyahu, que também anunciou que o seu Governo está a tomar medidas para facilitar a imigração dos membros da diáspora em França e noutros países europeus “que estão a ser atingidos por um terrível anti-semitismo”. As relações franco-israelitas atravessam um momento conturbado, com o governo de Netanyahu a acusar Paris de ter uma política cada vez mais pró-palestiniana. Em causa está o voto favorável da França no Conselho de Segurança da ONU a uma resolução que exigia o fim da ocupação dos territórios palestinianos.

Fronteiras mais controladas
A Europa começou também este domingo a olhar para o futuro após o choque dos últimos dias em Paris. E esse futuro deverá passar pelo aumento da vigilância nas fronteiras dos Estados-membros e até por uma alteração aos acordos de Schengen, que estabelece a liberdade de circulação na Europa.

Após uma reunião ainda antes da marcha parisiense, o ministro francês do Interior, Bernard Cazeneuve, referiu a discussão sobre o reforço dos controlos às deslocações dos cidadãos europeus que queiram transpor as fronteiras exteriores da União Europeia como um dos debates “a ter muito rapidamente”. Outra das medidas discutidas está relacionada com a implementação de redes de cooperação entre os Estados e as grandes empresas da Internet para impedir a difusão da propaganda dos grupos terroristas. Cazeneuve sublinhou, todavia, que qualquer mudança será feita “em respeito das regras da liberdade de movimentos e da privacidade”.

No encontro, que juntou vários ministros do Interior e da Administração Interna da União Europeia, o responsável espanhol, Jorge Fernandez Diaz, falou, de acordo com a AFP, na necessidade de se rever os acordos de Schengen com o objectivo de travar a mobilidade dos combatentes islamitas de regresso à Europa. Em cima da mesa está também a criação de uma base de dados sobre suspeitos a partir de informações fornecidas pelas companhias aéreas, o chamado PNR (Passenger Name Record) que está bloqueado no Parlamento Europeu desde 2011. Para 12 de Fevereiro está marcada uma cimeira europeia em que a luta contra o terrorismo está no topo da agenda.

Seis dias depois terá lugar uma cimeira nos EUA para “debater formas de contra-atacar o extremismo violento que existe em todo o mundo”, revelou igualmente Eric Holder, após um encontro com responsáveis europeus. “Apenas se trabalharmos juntos, através da partilha de informação, unindo os nossos recursos, é que poderemos conseguir derrotar aqueles que nos combatem pelos nossos valores fundamentais”, afirmou Holder.

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