Stéphane Hessel: "A indignação é mais universal do que eu pensava"
Entrevista a Stéphane Hessel publicada no dia 5 de Maio de 2011 no PÚBLICO.
Stéphane Hessel (n. Berlim, 1917, naturalizado francês) é o autor de Indignai-vos!, o pequeno opúsculo que se transformou num inesperado fenómeno editorial, com mais de milhão e meio de exemplares vendidos em França, e traduções por todo o mundo. O ex-combatente da Resistência, colaborador do general De Gaulle e embaixador da França nas Nações Unidas, que acompanhou a redacção da Declaração Universal dos Direitos do Homem, deslocou-se agora a Lisboa para participar na apresentação do seu livro. Foi a quarta visita à capital portuguesa, depois duma primeira passagem em 1941, a caminho de Londres e das forças da Resistência ao nazismo.
Recorda que, nesse ano, arriscou ir ao Casino Estoril, apostou no n.º 5... e ganhou. Regressou agora para encontrar-se com Mário Soares, que conhece desde há muito, e que escreveu o prefácio para Indignai-vos! (edição Objectiva). O P2 falou com Hessel na véspera da sessão marcada para o final da tarde de ontem na Fundação Mário Soares.
O que é que o liga a Mário Soares?
Conhecemo-nos logo a seguir à Revolução dos Cravos, na UNESCO. Encontrei-o depois em Grenoble, numa sessão das Nações Unidas. Mais recentemente, estive com ele num encontro na Fundação Gulbenkian, em Paris.
No prefácio do seu livro, Soares considera-o a voz da sublevação das consciências, e alguém que indica o caminho para a renovação da política. Já o leu?
Mário Soares teve a grande gentileza de escrever um prefácio, que só agora acabei de receber, mas já percebi que é uma coisa a sério. De facto, tanto ele como eu estamos à procura de qualquer coisa a que chamamos a inventividade política. Não queremos descansar em conceitos já muito usados, como democracia e socialismo, que nos são caros. É preciso interpretar isso à luz do que vem acontecendo nos últimos dez anos no mundo, em que há uma forte dominação por parte do capital, e do capital sem regulação, da alta finança económica, que é algo bem diferente da economia e do mercado. Ambos vemos aí um perigo muito grande.
O que digo em Indignai-vos! não é senão uma maneira de chamar a atenção do leitor para o que se passa. Eu não dou a resposta; é preciso procurá-la. Penso partilhar com Soares o sentimento de que somos alguém que chama a atenção, neste ano de 2011, para a situação em que a economia aprisiona os estados, e em que as novas gerações, tanto no Norte de África como nos nossos países, querem um estado mais forte, e mais capaz de assegurar a satisfação das necessidades fundamentais da população.
Mas o que mais ouvimos dizer é que deve haver "menos Estado e melhor Estado". Conhece a actual situação portuguesa, com o pedido de ajuda à Europa e ao FMI, que é também uma forma de assumirmos o falhanço do Estado...
Justamente. Mas posso lembrar que, na última década do século XX, de 1990 até ao ano 2000, aconteceram coisas muito importantes e positivas. Houve grandes conferências internacionais, Rio, Pequim, Istambul, Copenhaga... Primeiro, fizemos cair o Muro de Berlim e, nos dez anos seguintes, procurámos encontrar solução para os grandes problemas do mundo.
Sem grande sucesso, tendo em vista a situação que estamos a viver.
Sem um sucesso total, mas, apesar de tudo, com alguns progressos. Não devemos exagerar o fracasso. Mas, em 2000, chega um Osama Bin Laden – que acabámos de matar. Antes, foi a era de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, depois George W. Bush, o que foi ainda pior. E tivemos, de seguida, os últimos dez anos, em que os governos se desculparam dizendo que a responsabilidade não era deles, era da economia. Justificavam não estarem a fazer nada porque era preciso deixar correr o mercado. O resultado foi esta crise grave, que está longe de estar terminada. Mas não podemos ficar parados; é preciso mudar as coisas radicalmente.
As manifestações e protestos a que ultimamente temos assistido em França, em Inglaterra, na Grécia... vê-os como expressão dessa indignação que propõe, ou apenas uma reacção à crise económica?
Acredito que há um risco, que é o de que as pessoas se indignem, protestem e depois tudo continue na mesma. É preciso que a indignação dê lugar a um comprometimento conjunto. Entre os jovens que tenho encontrado nos últimos 20, 30 anos, há claramente uma maioria que está farta da forma como é governada. O que, no Norte de África, levou à expulsão dos ditadores. E isto é um exemplo interessante. Nós, na Europa, não temos ditadores, mas temos dirigentes que não nos motivam grande entusiasmo. E temos necessidade de acreditar que há um novo caminho a seguir.
Como reage à morte de Bin Laden?
Fiquei muito feliz, naturalmente. Este homem era medonho. Causou horrores e continuava a promovê-los. Mas lamento muito que não se tenha conseguido capturá-lo vivo, e fazê-lo encarar a Justiça.
Acredita que isso foi impossível, ou que terá havido, da parte da administração americana, a intenção de o matar?
Acredito que os americanos, se pudessem, o teriam capturado, mas também sabiam que ele não se deixaria prender. Também fiquei triste que eles tivessem lançado o corpo ao mar. A única coisa que critico nos americanos – e com eles passa-se sempre a mesma coisa – é que eles fazem coisas normais, mas depois mentem. Quando dizem que trataram o corpo de acordo com os ritos muçulmanos, é mentira. É uma pena.
Mas a mentira faz parte da política, não só da norte-americana.
É verdade. Maquiavel ensinou-nos que a política é uma arte em que é preciso manipular a verdade e a mentira. Mas os americanos apresentam-se como uma espécie de povo de Deus. E quando falamos em nome de Deus, não é bonito mentir.
Acredita na possibilidade de renovação da forma de fazer política?
Sim, porque estou convencido que é preciso acreditar para não nos deixarmos desencorajar. Com a idade avançada que já tenho, estou a enviar uma mensagem de confiança, dizendo que os problemas têm solução. Eu conheci muitos problemas que pareciam insolúveis, e que foram resolvidos: o nacional-socialismo, o fascismo, o estalinismo, o colonialismo, o apartheid, a construção da Europa... Tudo coisas que se dizia que eram muito difíceis de resolver. Mas chegámos lá.
Há quem o critique, e o acuse, de idealismo e de estar fora do tempo presente. Como reage a estas críticas?
Eu digo: "Têm razão, dum certo ponto de vista." Mas, a mim, interessa-me mais uma visão a longo prazo – podemos chamar-lhe utopia, não me parece que seja o nome apropriado, prefiro visão – do que a regulação dos problemas imediatos. Sei que temos de os resolver, mas penso que o mais importante é projectar uma visão de mais longo prazo. Sou muito sensível à crítica daqueles que me dizem "Indignar-se não serve de nada; é preciso agir". E eu respondo-lhes: "Têm razão, mas antes de pedir às pessoas que ajam, é preciso fazer-lhes compreender que têm de agir, porque as coisas estão mal." Eis por que este pequeno livro não é nem um programa nem a resposta às questões filosóficas fundamentais; é um incitamento a que as pessoas não se mostrem satisfeitas, conformadas. Duas coisas que consideramos muito más, sobretudo nas gerações mais novas, é a indiferença e o desencorajamento.
Tentei fazer alguma coisa contra isso. E não tenho outras ilusões.
O grande sucesso do livro surpreendeu-o?
Muito. Em primeiro lugar, porque se trata de um livro muito pequeno, e que não dá nenhuma resposta às questões que se colocam. O facto de ele ter sido acolhido como algo que interessa toda a gente, pais e filhos, prova, parece-me, que vivemos um momento de inquietude nos espíritos. A era Reagan-Thatcher-Bush terminou, mas essas marcas ainda cá estão. Por outro lado, surpreendeu-me igualmente ele ter sido traduzido noutras línguas, porque, no início, tratava-se de um assunto muito francês, tratava-se de fazer a resistência em França. Mas, também aí, sou sensível – e encontrando-me em Portugal, sou sensível – ao facto de todos os nossos países terem experimentado a Resistência. No fundo, a Resistência tornou-se numa espécie de denominador comum do pensamento europeu. Agora que os japoneses tenham querido traduzir este livro na sua língua. e também os chineses – há três editores que estão a tratar de o publicar. Isso prova que o problema da indignação é, afinal, mais universal do que eu pensava. Isso significa que o século XXI representa todo um colocar em questão. E justifica o formidável sucesso do livro.
Esteve em Lisboa, pela primeira vez, em 1941, a caminho de Londres. Que memória guarda dessa passagem?
Eu vinha de Casablanca. Tinha conseguido sair de França, graças a um americano muito simpático, que tinha sido enviado pela Madame Roosevelt para ajudar a sair da Europa pessoas ilustres, como André Breton, o Marcel Duchamp, etc... Tornámo-nos amigos, e ele ajudou-me, arranjando-me documentos americanos, graças aos quais eu consegui atravessar o Mediterrâneo e chegar a Casablanca. Depois apanhei o barco para Lisboa, e aqui encontrei o representante do general De Gaulle, que tinha aqui o seu escritório.
Quantos dias esteve em Lisboa?
Menos de oito dias. A minha mulher já se encontrava em Lisboa, quando cheguei. Tinha conseguido vir de comboio, atravessando a Espanha. Decidimos, então, que eu iria para Inglaterra, e que ela se juntaria aos pais, na América. Estando aqui, à espera do avião que me ia levar para Bristol, não tendo muito dinheiro, e querendo ter mais algum, decidi ir ao Casino do Estoril. Joguei no n.º 5, e ganhei! Era jovem, tinha 24 anos, e nunca mais me esqueci. Para mim, Lisboa, depois da França derrotada pelo nazismo, era um luxo de beleza. Fiquei muito impressionado com a cidade, e muito contente por ter ganho algum dinheiro no Estoril. Depois fui para Londres.
Regressei a Lisboa, há cinco anos, para uma reunião do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa. E conheci a Lisboa moderna. Voltei depois para uma nova reunião do Centro Norte-Sul. Gosto de Lisboa sob muitos aspectos. E sou muito sensível à forma como o povo português se desembaraçou da ditadura. Hoje temos o Mubarack, o Ben Ali... Mas vocês tiveram o Salazar. E a Revolução dos Cravos foi também feita com muito pouca violência e muito apoio popular. Desembaraçarmo-nos dos ditadores é essencial. Mas mudar a forma de sermos governados também é importante.
Há um grupo - os franceses Edgar Morin e Michel Rocard, o ex-Presidente alemão Richard von Weizsäcker e o filósofo seu compatriota Peter Sloterdijk - que já anunciou a intenção de o candidatar a Prémio Nobel da Paz. Sonha com isso?
Eles são muito gentis, mas isso é completamente quimérico. Eu não fiz nada na vida para o justificar. Tenho uma vida extremamente modesta. O que é que eu fiz? Assisti a muitas coisas: à Declaração Universal dos Direitos do Homem, à Resistência em França, mas não fui um grande líder da Resistência. Estive com o general De Gaulle, mas na qualidade, apenas, de um pequeno funcionário nos serviços secretos... Não há nada na minha biografia que justifique o Nobel. Fala-se disso como uma graça, uma espécie de blague.
Continua a escrever e a publicar?
Sim. Saiu já um segundo pequeno livro, mas que foi escrito antes, a que decidimos chamar Engagez Vous! [edição L'Aube, Paris]. Foi uma entrevista feita por Gilles Vanderpooten, especialista em movimentos da juventude. É mais longo que este, tem 100 páginas, mas retoma e desenvolve os mesmos temas – a terra, a pobreza, o terrorismo, a não-violência... E continuo activo no pensamento, modestamente, participando no Collegium International – Ética, Ciência, Governance, dirigido por Michel Rocard e Milan Kuçan, o primeiro presidente da Eslovénia depois do fim da Jugoslávia. E também com Edgar Morin e Mary Robinson. Pessoas que têm experiência de governação e que possam dizer o que é possível e não é possível fazer. Mas também pensadores puros, como o Morin e outros. Isso interessa-me muito.
Uma vez por mês, tentamos fazer sair um texto novo. Ainda não abandonei a acção. Mas, bem entendido, tem de ser com calma.
Entrevista publicada no suplemento P2, do PÚBLICO, no dia 5 de Maio de 2011