A história de Zany, a baronesa cabo-verdiana da droga

Coordenava a saída da cocaína de Cabo Verde para diversos países europeus, Portugal incluído. Por causa dela, outros membros de topo da organização estão presos e um irmão do primeiro-ministro chegou a ser detido. A história de Zany é um percurso pelo tráfico internacional de cocaína.

Foto
Vitor Ferreira (ilustração)

Era um entre tantos. Vestia umas calças de ganga de um azul acinzentado e uma camisola azul-celeste com o número 29 estampado nas costas. Calçava umas sapatilhas pretas como a maleta que trazia na mão. Gelou ao ouvir um polícia, na sala de trânsito do Amílcar Cabral, então o único aeroporto internacional de Cabo Verde, pedir-lhe para a abrir.

— Não tenho a chave do cadeado.

Disse isto, em crioulo, ao pousar a bagagem em cima da mesa. O subinspector julgou que ele trataria de descobrir a chave, enquanto examinava a bagagem de outro passageiro do voo VR 630; mas o atlético rapaz precipitou-se para o autocarro prestes a arrancar. Retirou a etiqueta manual, numerada, que identificava a maleta. Escondeu-a no bolso. Encolheu-se atrás de um banco, como a criança que tapa os olhos e acredita que ninguém a vê.

— Saia da viatura e traga a sua bagagem!

Ao ouvir a ordem gritada de arma em riste, o futebolista de 24 anos ergueu-se com os braços no ar.

— Não tenho bagagem de mão. A minha bagagem está no avião.

O subinspector não tinha paciência para aquele jogo infantil. Desmontou-o de imediato. Ordenou aos outros passageiros que pegassem na bagagem e que regressassem à sala de trânsito. Dentro do autocarro, apenas três homens: o português, um espanhol e um francês. Perto deles, três malas de cabine. E ninguém que as reclamasse.

O francês era um pedreiro ligeiramente mais velho do que o pouco talentoso futebolista — 27 anos. O espanhol, que afiançava ser mestre de indústria, já completara 60. E que importava isso naquele instante? A existência suspendera-se na ilha achatada, árida.

Tocou um telemóvel.

Pedro quis atendê-lo.

— Entregue-me o telemóvel!

Foram conduzidos ao posto de fronteira. Revistados. Na maleta de Pedro, 18 pacotes revestidos com fita adesiva castanha e transparente: 19,598 quilos de cocaína. Na mala de André, 19 pacotes: 21,732 quilos. Na mala de José, 18 pacotes: 20,421 quilos.

Não fora pura sorte. Havia três dias, alguém avisara a Polícia Judiciária. Zany, vistosa mulher residente no Palmarejo, a zona para a qual a Cidade da Praia, a capital de Cabo Verde, se estende em nome da classe média e média-alta, viajaria com cocaína. A droga sairia do Sal na mão de estrangeiros.

A polícia virou-se para o Amílcar Cabral. E apanhou aqueles três homens a tentar seguir no voo charter da TACV — Cabo Verde Airlines para Bérgamo. Não se conheciam — mas tinham maletas idênticas e bilhetes emitidos pela Agência Cabo Verde Time, com os números de série 56322, 56323, 56324.

A equipa de investigação criminal já ali vira muita cocaína — o aeroporto surgiu no Sal, por diligência de Itália, em 1939, a ambicionar ser ponto de escala de voos entre a Europa e a América do Sul; converteu-se, já nos anos 80, num ponto de trânsito de cocaína da América do Sul para a Europa. E não: 60 quilos de uma vez não lhe parecia coisa de traficantezito.

O primeiro interrogatório pouca verdade trouxe. Pedro inventou ter encontrado a maleta, o bilhete de avião e o telemóvel no quarto de hotel. José fabricou história semelhante. André, inquieto, disse ter encontrado o seu material no exterior do aeroporto.

A equipa de investigação criminal não depositava grande esperança naqueles homens: a experiência dizia-lhes que os correios pouco ou nada sabem sobre as organizações que os contratam para transportar estupefacientes de uma região para outra, de um país para outro, de um continente para outro. E a tal Zany? Onde estava essa mulher, por causa de quem anos mais tarde andaríamos pelo Sal e por Santiago a consultar acusações, actas de julgamentos e acórdãos de diversos processos e a entrevistar várias pessoas que a prudência manda não identificar?

A fuga

Zany refugiou-se no Hotel Atlântico, na vila de Espargos, no interior da ilha; não fosse alguém dar com a língua nos dentes. Pediu auxílio ao dono da droga - ausente, em Portugal. Zé afligiu-se e, aflito, recomendou-lhe calma. Zany teria de sair já dali; ele descobriria uma saída.

Era quase meio-dia de 24 de Julho de 2005. Cruzou a porta do hotel, fez sinal a um taxista trazido pelo acaso. O telefone tocou, estava ainda dentro do táxi, na estrada que une Espargos a Santa Maria e que passa mesmo rente ao Aeroporto Internacional Amílcar Cabral.

Um número de telefone.

Nenhum nome.

Encontrou-o num café tão discreto quanto discreto pode ser um café de um centro turístico como Santa Maria. Naiss levou-a para um restaurante modesto, com três ou quatro mesas de plástico e uma empregada gorda, vagarosa; procurou uma alternativa num amigo francês: uma pequena casa de férias, virada para o areal. Uma mulher magra, ágil, faria a limpeza e a comida.

Nem pôs o nariz fora de casa. Todo o cuidado era pouco. A polícia vigiava aeroportos e portos.

Ao quinto dia, o homem alto, forte, careca, reapareceu. Conduziu-a, num jipe, até Pedra de Lume, na costa leste. Aguardavam-na no porto, isolado, pacato, perto da mina de sal mineral que deu nome à ilha. Viajaria para outra ilha, para Santiago, num barco de pesca — de iate seria mais arriscado.

Dali, não se via a cratera do vulcão para a qual a água do mar se infiltra. Apenas uma estrutura de madeira que parece assombrar o porto. Era cedo. Zany sentou-se num canto, olhou aquele mar pérola a dar-se ares de infinito. E pediu a Deus que tivesse piedade dela.

A viagem esticou-se - o motor avariou e a avaria obrigou a umas horas de cuidados no caminho, na ilha do Maio. Desembarcou em Santiago já no breu do outro dia. Naiss esperava-a na baía do Tarrafal. Conduziu-a a Assomada, vila protegida pelas montanhas. E confiou-a a Jorge, o braço-direito do dono da droga - que a levou para um apartamento, no rés-do-chão de um prédio, e que lhe deu dinheiro vivo: 15 mil euros. Uma idosa baixinha, um pouco coxa, garantia limpeza e alimentação.

Naiss reapareceu dali a uns oito dias para, com ela, percorrer a estrada curvilínea, pelas montanhas altas e escarpadas, de volta ao Tarrafal. Foi naquela baía serena, protegida por coqueiros, que ela embarcou num iate. Destino: Dacar (Senegal). Preço: cinco mil euros.

O início

Fizera uma má aposta na compra e venda de pequenas quintas. Em Agosto de 2004, as dívidas ameaçavam asfixiá-la. Recorrera ao namorado e ele não se apressara a ajudá-la, queixara-se dos seus negócios, mencionara um problema com um barco; mencionara a sua amiga Lígia, assistente de bordo na TACV.

— Ela pode dar um jeito.

Zany sabia que ele traficava cocaína: "Tantas vezes, em Portugal, ele me entregou sacos de notas para eu guardar!" E ela guardara-os, a troco de algum, num cofre encoberto, numa parede da biblioteca da sua casa - em Vila Nova de Milfontes. Nunca antes ele a incentivara a traficar.

Daquela vez, ela falara-lhe em trabalho e ele lembrara-lhe que havia outras formas de ganhar dinheiro - acreditava que ela fora talhada para isso. "Sou bonita, ambiciosa, determinada, organizada, perfeccionista. Comigo ele conseguiria fazer uma sociedade de verdade. Fiquei curiosa. Já tinha ouvido falar em tráfico, mas sabia lá o que era tráfico."

Zany matutou. Por maior que fosse a amizade, seria estranho falar com Lígia sobre aquilo. A amiga nunca se metera em problemas.

Telefonou-lhe. Combinaram um café, na Praça do Palmarejo, às seis da tarde.

Nem sabia como desatar. Falou de pequenos nadas e de pequenos tudos. Até ganhar coragem.

— Tenho um assunto delicado para falar contigo.
— Que assunto?
— Um amigo falou-me em levar "assuntos para fora".
— Que assuntos?
— Droga.
— O quê?!
— Podes levar alguma droga para fora?

Lígia olhou-a bem nos olhos.

— Assunto muito delicado!
— Oh! Quando as coisas te interessam, tu dás sempre um jeito.
— Isso seria muito complicado, envolveria alguns perigos.
— Pensa nisso.

Não pensou muito tempo. Logo no dia seguinte, ligou a marcar um café na Achada de Santo António, a uns minutos do Palmarejo.

— Sou uma pessoa directa nos assuntos. Faço-o desde que o cachet compense.
— Eu sei que és cara.
— É preciso dar atenção aos voos e aos serviços de raio-X. Vou ver o que posso fazer para facilitar a passagem.
— Claro! Temos de ver qual a melhor maneira...
— Quem está por detrás disto?
— Avé! Para já, não posso dizer.
— Porque não?
— Ainda está tudo no ar. Ainda nada está assente.

Era uma mulher astuta, desenrascada. As ideias saltitavam, como pipocas em panela tapada, dentro da sua cabeça. Volvidos três dias, já abordara um polícia que controlava o serviço de raio-X no Aeroporto Internacional Amílcar Cabral. Ele deixaria passar a cocaína que tinha o dever de detectar, de apreender, sem deter o portador, sem levantar o auto de notícia.

— Isto vai ter custos!
— Estou consciente disso.
— Quem está por detrás disto?

Onde se esconder?

Esteve 15 dias na ex-colónia francesa e outros 15 dias em França antes de entrar em Portugal. Com o seu nome — o seu passaporte. Não havia ainda mandado de captura nacional ou internacional. Tinha a certeza disso. As suas fontes estavam muitíssimo bem colocadas.

Apetecia-lhe ficar. Vivera em Portugal alguns dos seus melhores momentos. Aterrara em 1996, sem papéis, com 21 anos e muita sede de conforto. Instalara-se na costa alentejana, em Vila Nova de Milfontes, e lá casara com um português — com uma próspera agência imobiliária.

A memória dela recuava, com alguma insistência, a esse tempo de quase candura: "Não havia africanos. Era eu, sozinha, naquela vila. Fui levando a vida. A minha força de vontade sempre foi muito grande. Sempre tive muita vontade de lutar pelo que queria. O que é que queria? Nasci numa família muito humilde, mas nunca aceitei a pobreza como destino. Queria viver bem, ter a minha casa, ter o meu carro, ajudar a minha família, dar uma vida digna ao meu filho."

Tivera um filho aos 16 anos: "A minha mãe era minha mãe e era mãe do meu filho. Ainda fui à escola depois de o ter, mas não dava. Saí aos 17 anos. Procurei em Portugal uma vida melhor."

Casou-se. Regularizou a estadia no país. O marido sucumbiu a um ataque cardíaco e ela foi buscar o filho - que deixara à mãe, em São Domingos, um dos mais desaventurados concelhos de Santiago. Tinha apartamento em Sintra, um dos mais bem-aventurados concelhos de Lisboa. De vez em quando, ia até lá, espairecer. Conheceu Zé — e o seu amigo Jorge, então emigrado na Holanda — num restaurante de uma comadre, na Amadora.

Sim: queria ficar ali — numa geografia que já era sua, a falar uma língua que também o é. Não: não devia ficar ali. Alguém podia reconhecê-la, ameaçá-la, denunciá-la. Amiúde, despertava a meio da noite, sobressaltada, como se houvesse alguém no seu encalço. Mudou-se para a Holanda — terra de muitos cabo-verdianos, mas aonde Cabo Verde pouco chega.

Esforçava-se para espantar os perigos. Confiara cem mil escudos cabo-verdianos a Naiss, para que os entregasse aos três estrangeiros detidos agora na ilha de São Vicente. Mesmo em fuga, de quando em quando, através do Western Union, enviava dinheiro à irmã, Loide, que o entregaria a um advogado, que o entregaria directamente ou através de Naiss aos três estrangeiros.

Não quis sujeitar o filho àquela vida de sobressalto. Um rapaz carece de estabilidade. E ela não queria perturbá-lo mais do que já o perturbava: "O meu filho não merecia isto. Não merece."

A presença de alguns amigos só atenuou a estranheza causada pela língua, pelo clima, pela distância. Ao fim de uns meses, voou para o Senegal. O Senegal parecia-lhe o ideal: "É perto de Cabo Verde — a família podia vir. E é grande - podia passar despercebida." Desagradou-lhe o temperamento do povo.

De repente, zás.

No Sal, o francês despedaçou o silêncio. Não confiava no advogado constituído: não o escolhera nem sabia quem o escolhera; não só não recebia, como lhe trazia dinheiro. Queria dizer a verdade. E a verdade era uma: a cocaína fora-lhe entregue por uma cabo-verdiana chamada Zany.

Mal soou aquele nome, na sala de audiências do Tribunal Judicial do Sal, houve uma reviravolta. Mesmo a medo, o espanhol e o português refizeram os seus depoimentos.

Zany alojara-se num hotel simples, amarelo, mesmo no centro de Espargos — a dois quilómetros do aeroporto. Entrara por volta das nove e meia, recebera a chave do quarto 310. Naquele dia, naquele hotel estilo motel, também dormiam os três correios estrangeiros. A cada um, ela entregara um bilhete de avião Sal/Bérgamo, um telemóvel com um cartão, um papel com o número e o endereço do Una Hotel Bérgamo. André e José receberam a maleta ali, da mão dela; Pedro recebera-a no parque de estacionamento do Aeroporto da Praia — da mão de uma tal Lígia, assistente de bordo da TACV.

Teriam de acordar bem cedo no dia seguinte. Impunha-se-lhes estar no aeroporto antes dos outros passageiros — antes das oito, antes da mudança de turno da Polícia Nacional. Fariam o check in sem apresentar a maleta. Não teriam qualquer problema ao passá-la pelo raio-X.

Tudo corria conforme o plano. José aproximou-se da máquina de raio-X. O agente olhou-o e levantou o polegar. Como se dissesse: "Caminho livre, podes passar." Passou José, passou André, passou Pedro. De rompante, quando o perigo já se calculava acabado, uma ordem:

— Polícia Judiciária! Abra a mala!

Os inspectores tinham entrado pelo lado da secção de cargas - surpreenderam os passageiros na sala de trânsito. Se tivessem entrado pelo sítio normal, talvez os cúmplices tivessem avisado a organização. Apesar do turbilhão interior, na fuga para o autocarro, Pedro ainda avisou Zany.

A organização

Eram amigas desde os tempos do Liceu Domingos Ramos, um dos mais impressivos edifícios do Plateau - o centro da Praia. Lígia sabia que Zany não era a dona da cocaína - queria conhecer o dono. Não o encontrou logo, porque voou para Roterdão; encontrou-o no regresso.

Zany passou por casa de Zé, na Achada de Santa António; Jorge já lá estava. Seguiram os três para o Palmarejo, para casa da assistente de bordo da TACV, num jipe Pajero, branco, conduzido por Zé.

— Qual é o cachet? — perguntou Lígia.
— Qual é a ideia? — perguntou Zé.
— Acho que o melhor é usar uma carry on. Os assistentes de bordo viajam sempre com uma carry on. É só pôr a droga e algumas peças de roupa lá dentro.

Uma ideia simples, genial — pensaram. O pó branco e cristalino iria em pacotes revestidos com fita adesiva castanha e transparente dentro da bagagem de mão da hospedeira.

— Quanto vou receber por cada quilo?
— Depende da quantidade — respondeu-lhe Jorge.
— Quanto leva cada carry on?
— Uns 15 a 18 quilos.
— Vinte quilos é demais; vai gerar desconfiança — advertiu Zé.
— Demais não! Eu posso carregar 20 quilos na mão. E quero 500 contos [cabo-verdianos] por cada quilo!
— Se levares dez a 20 quilos, o lucro fica todo para ti - cortou Zany, meio a sério, meio a brincar.

Houve alguma tensão dentro daquela casa até haver consenso em torno do cachet. Aquilo era uma espécie de convenção — a convenção refundadora da organização liderada por Zé: Lígia receberia 300 contos cabo-verdianos por quilo; o misterioso polícia receberia 400 por cada carry on.

Saíram já de noite. Apesar da insistência deles, a hospedeira recusara-se a revelar o nome do polícia. "O segredo é a alma do negócio. Não quero ser passada para trás", justificara.

Zany entrou no jipe desconfiada:

— Parece-me arriscado.
— Não! Ela não é burra, embora esteja a dar "pa" doido". Ela sabe em que mundo está a entrar — sossegou-a Jorge.

Lígia já tinha a sua primeira tarefa: recolher informação privilegiada — pegar na lista de voos de Cabo Verde para Portugal e para a Holanda e cruzá-la com os seus turnos e com os turnos do polícia.

Não sornou, que ela não é mulher para sornar. Despachou-se. Um dia, telefonou a Zany a acenar com um voo para Lisboa.

— Quantos quilos me vão dar para levar?

Zany ligou a Zé.

— Como é a primeira vez, é melhor levar só cinco quilos — respondeu ele.

Zany ligou a Lígia.

— Nem pensar! 1500 contos não merecem tanto risco! No mínimo 10! — replicou ela.

A coordenadora apanhou a cocaína em casa de Zé; levou-a para a casa de Lígia. Não sabe como diabo lá estava; ele não tinha por hábito guardá-la dentro de casa. No saco, além da cocaína, havia 400 contos cabo-verdianos — para adoçar o polícia — e um papel com um contacto telefónico rabiscado: ela telefonaria para aquele número à chegada e entregaria a encomenda a quem atendesse.

Lígia saiu do aeroporto da Praia para o aeroporto do Sal. E do aeroporto do Sal para o aeroporto de Lisboa. Zany ansiava — ansiavam todos. Ligou-lhe para o Sal: tudo bem. Ela ligou-lhe de Lisboa: tudo bem.

Uff!

Urra!

Ficaram contentes — muito. Por ela, por eles. Tinham encontrado uma rota para a fortuna.

Zé entregou os cachets a Zany, junto ao Hotel Praia Mar. Sem cerimónia. Um saco de plástico: 500 contos cabo-verdianos para Zany e três mil para Lígia. Não lhos podia entregar assim - "Ela é cheia de pormenores." Bastava olhar para ela na rua, para o seu modo altivo de caminhar, para perceber isso. Meteu-lhos num envelope, levou-lhos a casa. Ela ficou radiante:

— Já abracei a profissão!

No que toca a gosto pelo dinheiro, Lígia é como Zany. Queria mais: mais cocaína igual a mais dinheiro. Zé e Jorge que não se pusessem com esquisitices. E se lhe acontecesse algo? A sua liberdade valia mais do que três mil contos cabo-verdianos. Dali a uma semana, novo desígnio: 20 quilos para Amesterdão. Dali para a frente, tantos quilos, tantos voos. E se houvesse ainda mais quilos a apanhar boleia nos aviões da TACV? Ainda falou numa comissão para recrutar outros tripulantes; mas Zé e Jorge não foram em cantigas: receberia 300 contos cabo-verdianos por quilo e pagaria o que quisesse aos fatos azuis que recrutasse. Que pensava? Há muito gasto entre o continente-produtor e o continente-consumidor.

Produzida quase só na região andino-amazónica (Colômbia, Peru, Bolívia), a coca é usada na confecção de cocaína, em laboratórios clandestinos, quase sempre por lá mesmo. E sai (via Argentina, Chile, Colômbia, Equador, Suriname, Venezuela, Brasil) em direcção aos EUA ou à Europa.

Usavam uma das três rotas marítimas de cocaína da América do Sul para a Europa: há a rota do Norte, que vai pelos Açores; a rota central, que passa por Cabo Verde, pela Madeira ou pelas Canárias; e a rota africana, que se alonga até à Europa através da África Ocidental, sobretudo os países que se estendem ao largo do Golfo da Guiné e de Cabo Verde.

A cocaína entrava de barco na ilha de São Vicente e dali saía para a ilha de Santiago; depois, voava para a ilha do Sal. E de lá para a Europa, onde o consumo tem vindo a subir desde a década de 1990. Uma equipa, na chegada, encarregava-se de fazer seguir o produto, por terra, para o destino final.

Há dois núcleos fulcrais de redistribuição de cocaína: o sul/ocidental, com redes sediadas na Península Ibérica; e o norte/ocidental, com redes sediadas na Holanda, na Bélgica e zonas próximas. Pelo que revela a Europol, este último "serve de centro de distribuição para outros países europeus, principalmente da Europa Ocidental (Dinamarca, Alemanha, Áustria, Finlândia, Suécia e Reino Unido), tanto para a cocaína que se introduz através da Península Ibérica como para a que se descarrega nos portos da região".

Cada peça da engrenagem tem de ganhar a sua parte. Todos ali o sabiam. A questão era: que parte? Os preços praticados na Europa são até 60 vezes superiores aos praticados nos países de origem da cocaína. O último relatório do Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência atira para 13 milhões o número de adultos que já experimentou.

Apanhada

Zany Filomeno Soares Moreno —também conhecida por Verónica Tavares, Veronique Semedo, Zany Monteiro e Zany Soares de Carvalho — sentiu um calafrio. Pedro, Zé e André identificaram-na como a pessoa que organizara, coordenara e fiscalizara a operação de saída de cocaína do Sal para Bérgamo. A Polícia Judiciária não tardaria a perceber que viajava com frequência entre Santiago e Sal. Só no mês anterior à detenção deles, fizera-o uma, duas, três vezes. Três vezes. Uma, duas, três vezes que coincidiam com voos charter da TACV para Bérgamo.

A Guiné-Bissau pareceu-lhe um bom país para desaparecer. Instalou-se numa zona nobre. Tornou-se vizinha do então Presidente da República Nino Vieira. Mudou de identidade: comprou um passaporte falso. Contactos com Cabo Verde: mínimos. Telefonava apenas ao filho, à mãe, a um irmão — os outros irmãos já viviam nos Estados Unidos.

Lidava com a farsa com naturalidade. Fizera um bom estágio. Já antes de escapar usava diversos nomes e telemóveis. Tinha um telemóvel em seu nome, um em nome do pai do padrasto, um em nome de um irmão de criação - e tantos outros cujo número já nem recordava. A organização dava-lhe cartões só com chip: pagava a várias pessoas só para registarem telemóveis em nome delas.

Já depois do Natal, deu um salto a São Tomé e Príncipe. Um rapaz devia-lhe 300 mil euros. E ela fora lá, de propósito, para o ver. De propósito para recuperar a massa. Não era um rapaz qualquer. Era um rapaz com quem ela namorava. Um rapaz que sabia que ela era uma fugitiva com passaporte falso.

Estava num restaurante construído junto ao Atlântico. Ao seu lado, um jovem galante, bonito - que conhecera poucas horas antes no hotel, entre o aeroporto e a cidade. Pedira um peixe fresco, grelhado, e ansiava por saboreá-lo. De súbito, entraram dois agentes, aproximaram-se dela.

— Zany Filomeno Soares Moreno?
— Não.
— Você não é Zany Filomeno Soares Moreno?
— Não. O meu nome é Verónica Tavares.

A notícia do seu paradeiro chegara ao Sal. E o procurador de turno, Vital Moeda, fizera uma maratona — a ler o processo de 2005, a redigir o mandado, que remetera por fax para S? o Tomé. Eles traziam um mandado em nome dela, com o aviso de que ela também usava os nomes Verónica e Veronique.

Levaram-na para a esquadra. A detida encenou ares indignados, insistiu na mentira. Nascera na Guiné-Bissau. Não, não tinha nacionalidade cabo-verdiana — nunca tivera. Não, não estivera em Cabo Verde em 2005.

Enfiaram-na na prisão Central de São Tomé. Suportou três dias aquele lugar quase irrespirável.

Havia, na ilha, apenas um estabelecimento prisional. Fora pensado para acolher 250 pessoas em duas alas. Por força da degradação do edifício, os 200 homens e as três mulheres que ali penavam estavam concentrados numa ala. Aperto, sujidade, tensão, violência. Zany simulou uma crise de diabetes.

Talvez houvesse uma saída: São Tomé não tinha acordo de extradição com Cabo Verde; nem sequer tinha uma lei de extradição. E ela tinha três pesos-pesados para a defenderem - dois ex-conselheiros e um ex-bastonário. Mas valeria a pena arriscar? Esteve no hospital oito dias. A organização alugou um avião particular em Libreville, no Gabão, para a resgatar.

Ainda chegou ao Aeroporto Internacional de São Tomé, a cinco quilómetros da cidade. O aparelho percorria a pista 11/29, preparava-se para descolar. Até que: da torre de controlo, surgiu a ordem taxativa, directa: "Pare!" O piloto olhou para Zany, a única passageira. E ela pensou: "É o fim."

Saiu algemada, ainda incrédula, do avião. Não abriu a boca até entrar na prisão. Recompôs-se. Fez de conta que estava a sofrer um ataque. Tinha de regressar ao hospital. A ver se de lá conseguia sair da ilha. O director da cadeia já não se fiou. "Essa prisão estava no meu destino!"

O amor

Definitivamente, não tinha sorte com homens. Tinha de admiti-lo. Fora um que a entregara à justiça. Fora um que a entregara ao crime. Zany cismava, sob escolta, dentro de um avião da TAAG Angola Airlines: como diabo uma viúva ansiosa por manter vivos os negócios de um morto se apaixonara por um traficante e acabara neste estado?

Nunca foi um namoro intenso, arrebatador. "Ele é um homem de trabalho. Gosta de desafios." Mas não. Não foi isso. Não foi tanto pela forma como ela o via; foi mais pela forma como ele a via. "Ele admirava a mulher lutadora que eu sou. Era muito carinhoso, muito amigo."

Nem o imaginava a traficar. "Fiz uma ligação com o meu trabalho. Eu comprava quintinhas, recuperava-as e vendia-as; ele tinha uma empresa de construção. Pensei que podíamos fazer sociedade. Não fizemos. Ele começou a ganhar confiança em mim. E desafiou-me para outras coisas." Primeiro, para guardar dinheiro. Depois, para integrar a organização.

Quando apanhara o avião de Portugal para Cabo Verde, só tinha férias em mente. Passara os primeiros 15 dias entre a casa da mãe e a casa do namorado. Tivera aquela conversa. Alugara um apartamento no Palmarejo, um lugar calmo, habitado por gente com algum status.

Habituada a vê-la fazer o que quer, a mãe nem procurou razões. Outros sim: "Então, porque voltaste?" Estava a analisar o mercado, ponderava investir, talvez abrir uma agência. É despachada. Se a chateavam muito, punha um ponto final: "Caramba, venho para trabalhar!"

O namoro implodiu: "Ele não queria uma família — queria fazer colecção de namoradas. Eu não estava para isso. Soube que estava grávida, percebi que a história se iria repetir. O pai do meu filho não foi um pai presente. Se voltasse a ter um filho, o meu filho teria de ter um pai de verdade."

Optou por interromper a gravidez. Zé reagiu mal: "Não queria. Ele não era o homem que eu queria, mas ele queria ter-me na mesma. Eu nunca aceitaria viver com um homem que andasse com outras. Ele achava que um filho seria uma corda que me ligaria para sempre a ele."

Um aborto, numa clínica privada, custava 20 mil a 25 mil escudos cabo-verdianos. Zany pediu-lhe dinheiro: "Ele deu-me cinco mil. Aquilo caiu-me muito mal. Para a mulher que ele conhecia, aquilo era uma ofensa. Ele disse: "Se queres, aceitas; se não queres, não aceitas".

Volvida com a raiva, a rapariga meteu-se no carro e foi à casa dele — era só descer em direcção ao oceano e subir na primeira estrada íngreme, um pouco antes da praia de Quebra-Canelas. Pegou numa mala com 250 mil euros, meteu-se no carro. Conduziu, ainda irada, estrada fora, até São Domingos. Em casa da mãe, no interior rural, telefonou-lhe:

— Como não tinhas dinheiro, tirei uma maleta da tua casa.
— O quê?!
— Tirei!
— Eu dou-te um tiro!
— Dás-me um tiro?! Vou apresentar queixa na PJ por ameaça de morte. Se me acontecer alguma coisa, as pessoas já sabem! E vais ter de explicar como é que tens tanto dinheiro dentro de casa!

Houve queixas cruzadas.

Ele apareceu furioso. Ela ouviu-o gritar, esbracejar. E percebeu que o assunto era sério: "Acabei por lhe devolver a mala. A mulher tem a mania que é forte, mas acaba por sensibilizar. Ele disse que tinha tido um problema com um brasileiro. Uma perda num negócio de cocaína."

Aquele episódio remonta a Julho de 2004 — poucos dias o separam da reunião em casa de Lígia. Os três estrangeiros foram apanhados em Julho do ano seguinte. E ela em Janeiro de 2007: "Sabia que isto, um dia, podia acontecer. Sabia que não tinha uma licença de importação e de exportação. Entrei para o tráfico porque quis. Não fui obrigada. O dinheiro convenceu-me."

O avião descolara do Aeroporto Internacional de São Tomé 120 minutos antes da hora marcada, não fosse a organização desviá-lo. Escoltavam-na dois homens e uma mulher: cada qual com os seus óculos escuros e o seu impecável fato preto. Ao vê-los, o coordenador da PJ do Sal, Paulo Rocha, disfarçou o sorriso trazido pela lembrança de uma qualquer série policial americana.

Ela fez o seu teatro: anunciou um imenso mal-estar, deitou-se no chão; levaram-na ao hospital, antes de a levarem ao juiz, sob apertadas medidas de segurança. O país inteiro estava de orelha levantada. A comunicação social só falava na "baronesa da droga", que julgava cabecilha de uma rede de tráfico de droga capaz de mandar 60 quilos de cocaína de uma vez para a Europa ou de fretar um avião para uma fuga. E ela a negar tudo. Tudo.

O vício da beleza

A compra e venda de imóveis não lhe cheirara a bom negócio nas ilhas com défice de habitação. E tinha de justificar o luxo. "As pessoas tinham de ver que estava a fazer alguma coisa." Comprou o trespasse do LX, um bar que a clientela haveria de arrumar: problemas com repatriados dos EUA, um ajuste de contas, a morte de um rapaz chamado Hermínio.

Cada qual mantinha os seus negócios legais. Zé e Jorge apresentavam-se como ditosos empresários da construção; Lígia, além de assistente de bordo, tinha uma loja, na Achada de Santo António. Zany era cliente: grande — chegava a gastar ali cem contos cabo-verdianos num mês.

A beleza, nela, é um vício: "Sou muito vaidosa. Tem de se gostar de ser bonita e eu gosto. Gosto de ser bonita e luto por isso. A Lígia é uma senhora com muito bom gosto, apostava na diferença, trazia peças de roupa do estrangeiro — uma peça de cada; ninguém podia ter igual."

Cuidar demasiado da aparência era descuidar a aparência. Jorge fizera um casarão. Zé circulava em carros topo de gama. Lígia também fora tomada por uma vontade imensa de satisfazer os seus mais chamativos caprichos: não resistiu ao apelo de um jipe Tuareg.

— Hoje, estou viva; amanhã, poderei estar morta.

A compra despertou a atenção das autoridades, já tomadas pela desconfiança. No final de 2004, um funcionário da TACV fora apanhado com drogas no Amílcar Cabral. O medo apoderara-se dos assistentes de bordo. Com o flagrante, o risco escalara: alguns desistiram.

A organização reinventou-se. Passou a angariar, noutras paragens, correios transvestidos de turistas. Lígia mantinha-se atenta aos aeroportos - continuava a viajar. E Zany a coordenar e a fiscalizar a saída do produto. Uma vez, ia havendo barraca com um alemão que viajava do Sal para Amesterdão, via Madrid. Deu-lhe indicações para levar a mala na mão e ele despachou-a. Ela ligou a Tigana.

Lígia acabara por revelar o nome do polícia. Ela é que costumava pagar-lhe, mas acontecia estar em trânsito. Zany nem sabe quantas vezes levou dinheiro à mulher dele - uma rapariga baixa, magra, de cabelo curtinho. Entregava-lho no trabalho, numa papelaria, ou em casa, uma habitação térrea, simples — na Achada Grande Trás, com vista para o cais da Cidade da Praia.

Não era o único polícia a trabalhar com a organização - um não daria para as encomendas. Tigana coordenava-os. Até ser afastado do aeroporto por, sobre si, recaírem algumas suspeitas. Um deles, Evandro, não tardaria a sentar-se no banco dos réus com Zany.

A reflexão na cadeia

Encarceraram-na na Cadeia Regional do Sal, atrás do edifício da Polícia Nacional: portão pesado, cor de tijolo, com um postigo gradeado, o átrio de terra batida. De cada um dos lados, tijolos — uns revestidos, outros por revestir; entre eles, cordas com roupas a secar.

Ficou esmagada com a hiperlotação da ala masculina: dormiam por turnos. Ficou aliviada com a sublotação da ala feminina: nos dois beliches de cimento, apenas outras três mulheres.

Seis dias permaneceu ali dentro — entre aquela cela exígua e aquele átrio com cadeiras na napa rasgada. Uma noite, despertaram-na, arrancaram-na à cama, levaram-na para a cela da PJ: havia um plano para a matar ao nascer do dia. Transferiram-na para a Cadeia Central de São Martinho — num terreno semidesértico, nos arredores da cidade da Praia.

A prisão preventiva ofereceu-lhe tempo de sobra para pensar. Quanto tempo traficara? "Para aí uma dúzia de meses. Foram meses terríveis, de muito trabalho. Estava sempre a correr de um lado para outro. Era muito stressante." Ajudara-se, ajudara familiares, ajudara amigos. "Sei que traficar é pecado. Sei que esse negócio prejudica muitas pessoas. Ajudar os outros ajudava-me a acreditar que Deus, de algum modo, me perdoava."

Viu uma cocainómana ressacar, ouviu-a falar numa tormenta chamada toxicodependência. E reconheceu: "Uma pessoa para estar numa organização daquele gabarito tem de limitar o pensamento sobre o assunto. Se a pessoa pensa no assunto, pára em doida. Às vezes, vinha-me à cabeça, mas afastava-o. Aqui, estava à minha frente."

Sentia-se doente, fragilizada: "Quando entramos na cadeia, perdemos quase tudo. Queremos alguém que se preocupe connosco." Tinha um telemóvel, que comprara a uma guarda. "O que me diziam era: "Se disseres alguma coisa, morres, o filho morre, a mãe morre, todo o mundo morre." Detesto ser ameaçada. Detesto que pensem que estou com medo. Fico revoltada."

Sentia-se roubada. Para escapar à Lei de Lavagem de Capitais, que vai aos familiares directos, pusera bens em nome de familiares de membros da rede. Uns 98 mil contos cabo-verdianos em vivendas, terrenos, lojas; e uns 350 mil euros em dinheiro. "Passaram tudo para nome deles."

Não lhe digam que foi ingénua por agir como a aconselharam: "Acreditei que estava a lidar com pessoas sérias. Não existem papéis, mas existe palavra. Não podes roubar. Se roubas, morres." Denunciá-los seria tirar-lhes o que era seu: "Perdido por perdido, prefiro que seja o Estado a ficar com aquilo."

Tudo lhe parecia desmedido: "Eu ia ser julgada e ia apanhar 20 ou 25 anos de cadeia. Eles ficavam com tudo o que conseguiram e ainda me faziam ameaças. Se não ficasse calada, morria. Era muita desigualdade! Calada não fico! Se morrer, morro com a minha dignidade!"

Contactou a PJ: desejava revelar toda a verdade no julgamento. Mas havia um problema: para revelar toda a verdade no julgamento não podia ter o advogado constituído — o tribunal teria de lhe nomear um oficioso, de confiança. Chamou a família. Disse-lhes que só falaria a verdade. E que a verdade iria doer.

Toda a verdade

O julgamento arrancou com a confissão espontânea: Zany admitiu a entrega das malas. Explicou com detalhe o modus operandi da organização a que pertencera. O polícia, depois de contraditado, não tinha qualquer hipótese: confirmou ter recebido 300 mil escudos cabo-verdianos da mão de Lígia.

Ela abriu o livro: referiu sítios, nomes, contactos. Para o procurador Vital Moeda, tudo aquilo fazia sentido: extraiu matéria para um novo julgamento; emitiu mandados de buscas e mandados de captura para Zé, Jorge, Lígia, Tigana, Naiss — e para outros, que fugiram a tempo.

A 13 de Fevereiro de 2008, a sentença: seis anos de prisão por tráfico de droga e dez por associação criminosa; o cúmulo jurídico de dez encolheu para oito e meio, "tendo em conta a colaboração decisiva, sem a qual não seria possível a detenção de mais pessoas envolvidas".

Aguentou-se — firme.

Nunca a sala de audiências do Tribunal do Sal cheirara tão bem como durante o julgamento iniciado a 8 de Junho de 2009. Zany e Lígia pareciam competir — nos perfumes, nas roupas. Traziam uma toilette de manhã e outra à tarde — malas a condizer com os sapatos de salto. E os presentes observaram-nas, num misto de incredulidade e deleite.

Zany foi a primeira a testemunhar. Esteve 22 dias na ilha, debaixo de olho da PJ - respondeu até à exaustão a cinco advogados, um procurador, um juiz. Os meios de comunicação social captavam cada frase - a Rádio Nacional fazia relatos de hora a hora. Até a RTP-África ali estava. A sala parecia suspensa. Cada sessão era uma espécie de bomba.

O procurador começou por lhe perguntar como conhecera Zé, como com ele iniciara namoro, o que fazia.

— O que sempre fez na vida!
— O que quer dizer com essa frase?
— Tráfico de droga.

Falava como se nada houvesse a temer. E essa ausência de medo, quando havia tudo a temer, fascinava quem a ouvia. Quem já a imaginava a morrer num qualquer recanto da prisão. Um dia, atingiu um limite inimaginável: incriminou o advogado do réu Tigana, Manuel Barbosa, conhecido por Fuça — irmão do primeiro-ministro de Cabo Verde, José Maria das Neves.

Fora contratado para defender os três correios estrangeiros — o português, o espanhol e o francês. E fazia-lhes chegar dinheiro enviado por ela. Fuça não o negou: tantas vezes lhe pedem para levar a reclusos dinheiro, produtos de higiene, até feitiços para os proteger no dia do julgamento.

Mas não era tudo. Ela acusava-o de ter aparecido na cadeia a perguntar qual a possibilidade de mudar o seu depoimento. "Zé e Jorge ofereciam-me cem mil contos para eu mudar o meu depoimento: 25 por cento antes da acusação, 25 por cento antes do julgamento, 50 por cento depois do julgamento." Fuça desmentiu-a ao ser indiciado e detido por colaboração com associação criminosa. Afirmou que fora falar com um cliente, aproveitara para a visitar e ela é que lhe dissera que denunciaria Zé e Jorge, a menos que lhe pagassem 50 mil contos. O tribunal superior libertou-o, mas proibiu-o de sair do país. O Ministério Público está ainda a investigar o caso.

O que ecoava naquela sala era a versão dela. E, na versão dela, ela temeu estar perante uma cilada. Pediu ao director da prisão para chamar a PJ: contou-lhe tudo. Mas ainda tentou ganhar uns dinheiros: falou com Zé, através do telemóvel de um homem que estaria na Cadeia Central da Ribeirinha.

— Nunca esperava que fosses capaz de fazer isto!
— Não fiz nada. Apenas contei a verdade.
— Vais mudar o depoimento?
— Vou, conforme a proposta.
—Seria chato, bai desflá.
— Pode dar-se um jeito.
— Estou com um problema no pé.
— Também estou doente. Temos de "djunta e aguenta junto no sofrimento".

O companheiro de reclusão seria o homem dos recados. E o homem dos recados não tardou a trazer um recado: podia Zany fazer uma carta para substituir o depoimento que prestara em tribunal? Um mês e meio volvido, visitou-a uma amiga - ansiosa por saber se ela já recebera o suborno. Não. O dinheiro teria sido entregue ao homem dos recados. E o homem dos recados ter-se-ia apoderado dele.

Os outros negam tudo

A sentença ditada pelo juiz Hélder Lopes abateu-se sobre os cinco réus a 23 de Outubro de 2009: 25 anos de prisão para Zé, pena máxima prevista pela legislação de Cabo Verde; 24 para Jorge; 23 para Lígia; 22 para Tigana; 12 para Naiss.

O magistrado crê que Zany falou de forma "clara, objectiva". Sentiu-a "muito serena, bastante firme e convicta nas respostas". Gesticulava, como se os seus meneios conferissem mais rigor ao seu relato. Dava pormenores. Transmitia até as emoções das conversas. Ele não tem dúvidas de que ela dizia a verdade. Até por alguns lapsos de memória, quanto a datas, próprios de quem tenta recordar algo. Via "na expressão do seu rosto, nas pausas que fazia, bem como nos olhos que frequentemente colocava no tecto da sala de audiência que estava a fazer um esforço grande de memória para relatar ponto por ponto".

Os réus negaram tudo. Demarcaram-se de Zany — Lígia jurou a pés juntos que Zany era uma mera cliente; e Naiss até disse que não sabia quem ela era. O juiz reparou. Reparou que usavam e abusavam de expressões como "não" e "nunca". E tudo aquilo lhe pareceu "ilógico" — comparadas com as declarações de Zany, as suas versões "esfumavam-se".

Até Zé falou nela com um certo desprezo:

— Devido a algumas informações, ká fica dreto, por conhecimento de algumas coisas, vi que não era pessoa para namoro. Entretanto, ela descobriu que estava grávida e propôs um aborto. Eu contestei, por ser católico. Mesmo depois de ter mostrado a Zany que não queria nada com ela, ela perseguia-se, mormente nas discotecas, quando conduzia para casa.
—- Quando é que acabaram de vez?
— "Quando é roban."
— Pode esclarecer por que lhe disse que nada queria com ela?
— Não tinha capacidade.
— O que quer dizer com isso?
— Não portava bem.

Insistiu na tese da distância.

— Ficámos inimigos. Nunca mais nos contactámos. Ela queixava-se às pessoas, dizendo que eu lhe tinha posto furto. Eu evitava frequentar lugares frequentados por ela. Tanto assim que deixei de frequentar o LX, porque ela começou a aparecer lá e tornou-se proprietária.

Agiam como quem nem sabe por que está a ser julgado. Como quem vive o encarceramento como uma enorme injustiça. Mas o juiz não acreditou. Não acreditou que o tráfico de cocaína lhes era alheio. Não acreditou que a fortuna juntada por eles resultava de trabalho honesto e legal e, por isso, também ditou perda, a favor do Estado, dos bens de Zé, Lígia e Jorge. A 2 de Julho de 2010, quando já só faltavam 14 para expirar o prazo de prenúncia, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a condenação e baixou as penas: Zé Pote ficou com 19 anos, Jorge com 18, Lígia com 17, Tigana com 11, Naiss com seis.

E agora?

Um muro branco com arame farpado no topo envolve a Cadeia Central de São Martinho. Faltam muitas horas para ser aberta para a visita — e já familiares e amigos de reclusos se amontoam junto ao portão verde. Os da "baronesa" sujeitam-se a um controlo mais apertado do que os de todos os outros.

Não perdeu a vaidade. A maquilhagem disfarça qualquer imperfeição da mulher de unhas vermelhas com desenhos nas pontas. Traz um vestido negro, comprido, com um decote em bico. Em volta do decote, folhos amarelos como os sapatos de salto alto. Tem o cabelo trançado, apanhado no topo da cabeça. Das orelhas caem-lhe uns brincos negros, compridos, redondos.

Desenha as suas roupas e manda-as fazer. Ali mesmo — na prisão. Mata horas no cabeleireiro, maquilhagem, manicure. Ali mesmo - na prisão. A mãe leva toilettes, traz toilettes, para que nunca falte espaço para os modelitos. Ali mesmo — na prisão. "Por razões de segurança, estou muito limitada à minha cela. Isto é uma maneira de ocupar o tempo. E de manter a auto-estima, de estar viva. Quando me sinto bem, fico bem. E transmito isso à família. Eles pensam. "Ela preocupa-se com ela." Ficam mais sossegados."

Se antes do julgamento queriam matá-la para a calar, depois do julgamento podem querer matá-la para dela se vingarem. Medo? "Medo é uma coisa que não sinto. Claro que tenho respeito pela vida. Sou coerente. Claro que sei que existe perigo. Já estive lá! Sei quais são as regras do jogo. Tenho de estar atenta. Mas não fico paralisada. Se começo a ter medo, fico paranóica."

Não seria a primeira vez que alguém perdia a vida na cadeia. O assistente de bordo Caló, detido no aeroporto da Praia, com dois quilos de cocaína, foi abatido na cela em Dezembro de 2007. E, em Março de 2009, Melindo, preso por causa de 172 quilos de cocaína encontrados num contentor destinado a Portugal, apareceu morto na cela — um dia depois de ter sido transferido da Cadeia Central de São Martinho para a Cadeia Central da Ribeirinha.

Melindo seria responsável pela entrada da cocaína em Cabo Verde — há quem jure que se matou, quem diga que foi morto, quem diga que simulou a morte e fugiu para bem longe. Zany conhecia-o. Fora ele que lhe propusera registar alguns bens em nome de familiares seus. E ele fora um dos que ameaçaram matá-la caso o denunciasse como membro da organização.

Este não-medo não é um "dia inteiro e limpo", como o poema de Sophia. Puxa-se por ela e, ao segundo dia de conversa, num vestido longo, cavado, pérola, já se a ouve dizer: "Claro que tenho medo — pelo meu filho, pela minha mãe. Sei que é um risco. O meu filho não pode estar aqui — está fora. A minha mãe não podia estar aqui — está aqui contra a minha vontade. Nunca mais poderei viver em Cabo Verde. Em qualquer parte do mundo onde vier a viver, nunca estarei tranquila. Mas eu acredito em Deus. Acredito que Deus me vai proteger."

Ninguém lhe tira da cabeça que foi Lígia quem a denunciou. Não fora ela que entregara a mala a Pedro, no parque de estacionamento do aeroporto da Praia. Outra pessoa a entregara em vez dela - ela nem estava no país nesse dia: viajara para a Holanda. "Há coisas que mais ninguém podia saber. Ela pensou que ia fazer a vida dela. Esqueceu-se que podia sobrar para ela." Sobrou para ela. E para os outros.

Sugerir correcção
Comentar