A Grécia entre a democracia, a demagogia e o colapso financeiro

Um referendo, com estes fortíssimos constrangimentos, não se irá transformar num plebiscito?

A isto poderia acrescentar-se a intransigência negocial dos credores, sobretudo do FMI, face a uma economia e população já sujeita a enormes sacrifícios. Apesar dos seus muitos méritos, a União Europeia, pela própria forma como foi construída, não é um exemplo das melhores virtudes democráticas. A tecnocracia na Comissão e no Banco Central Europeu são dominantes. Estão impregnadas de uma visão (neo)liberal da economia, quase imune às preferências dos eleitores.

Para além disso, os processos de ratificação dos Tratados – e os contorcionismos para evitar os referendos, ou obrigar à sua repetição –, mostram o problema desde os anos 1990. Na Dinamarca, no referendo para ratificação do Tratado de Maastricht em 1992, ganhou inicialmente o “não”, embora por escassa margem; depois, por pressão europeia, fez-se novo referendo em 1993, chegando-se a um “sim”. Na Irlanda, houve similar ocorrência com Tratado de Lisboa. Em 2008, num primeiro referendo, a votação foi “não”; a seguir veio a pressão europeia para um segundo referendo, efectuado em 2009, que deu uma votação “sim”. Nessa altura o processo parou, depois de se chegar ao “bom” resultado. Ironia: o “não” ao referendo em França (e Holanda) em 2005, ao Tratado Constitucional Europeu, não levou à repetição da consulta ao eleitorado. A solução foi negociar novo Tratado. Aparentemente, nos grandes Estados, essas coisas são impensáveis.

2. Independentemente das boas razões apontadas, há sucessivos erros na estratégia negocial do governo grego. À chegada ao poder sobreavaliou os apoios que dispunha na União Europeia, especialmente no caso da França e da Itália. Subestimou a oposição dos governos de direita dos “bons alunos” do Sul (Portugal e Espanha), envolvidos em processos eleitorais internos e a lutar pela sua sobrevivência política. Mostra uma confrangedora falta de experiência em negociações internacionais desta envergadura. Não estão em causa os eventuais méritos políticos internos. (Alexis Tsipras conhecia apenas superficialmente as complexidades da política europeia. Yanis Varoufakis é um académico sem peso político, interno e externo.) Acrescem outros erros. Excessiva loquacidade em momentos inadequados e com efeitos contraproducentes das negociações, como a dispensável troca de acusações com o FMI em público. Deficiente calculo estratégico na aproximação à Rússia: Alexis Tsipras trouxe uma promessa de acordo que poderá, num futuro mais ou menos distante, valer 2 mil milhões de Euros se o gasoduto passar pela Grécia. No imediato – e a sua necessidade financeira é imediata –, ganhou uma adicional animosidade dos governos dos Estados Bálticos e da Polónia, dentro da União Europeia. Estes vêm a Rússia como uma ameaça existencial.

A isto provavelmente vai juntar-se outro erro: avançar, numa fase especialmente crítica de prazos de pagamento aos credores, para a convocatória de um referendo, a 5 de Julho. Vista do lado dos restantes governos europeus, é um “remake” da atitude de Georgios Papandreou, do PASOK, em finais de 2011, quando confrontado com similar pressão negocial. Predispõe, de forma negativa, a não transigir em eventuais concessões. Para além estratégia, há questões importantes em termos de democracia que aqui se levantam. Foi uma defesa da democracia directa e do interesse nacional que levou Tsipras a avançar por esta via? Ou foi um frio e egoísta cálculo político, de sobreviver à contestação do seu próprio partido e consolidar a sua liderança?

Outra questão: em oito dias é possível organizar um referendo e fazer uma campanha esclarecedora para responder à pergunta: “Deverá ser aceite o projeto de acordo que foi apresentado pela Comissão Europeia, o BCE e o FMI na reunião do Eurogrupo de 25/06/2015 e que consiste em duas partes, as quais constituem a sua proposta unificada? O primeiro documento intitula-se ‘Reformas para a Conclusão do Presente Programa e Mais Além’ e o segundo ‘Análise Preliminar à Sustentabilidade da Dívida’.” Será possível debater e esclarecer, neste curtíssimo espaço de tempo, de forma séria, o objecto do referendo? Será possível divulgá-lo em massa a tempo de os eleitores votarem, conscientemente, num assunto de tão grande importância para o seu futuro colectivo? Mas não estará já o projecto de acordo ultrapassado pelos próprios acontecimentos, a 5 de Julho? Não há, neste ambiente de pré-colapso financeiro, um sério risco de prevalecer a manipulação do sentimento nacional, o medo e a demagogia? Um referendo, com estes fortíssimos constrangimentos, não se irá transformar num plebiscito, historicamente demasiadas vezes usado para legitimações artificiosas dos governantes? A democracia nada ganha com isso.

3. No actual contexto pode o referendo resolver a situação política na Grécia e ajudar a encontrar uma saída para a crise? Dificilmente. Se ganhar o “não” ao acordo proposto pela União Europeia e FMI, o actual governo terá de encontrar uma alternativa de financiamento – não se percebendo, nesta altura, onde e como a poderá encontrar. Se pensa voltar à mesa das negociações em condições mais favoráveis, devido ao voto de confiança do eleitorado (e aos receios de danos do lado europeu), pode enganar-se no cálculo estratégico. E se o resultado for tornar ainda mais duras as condições do empréstimo, seja pela continuada intransigência dos credores, seja pela própria deterioração da situação económico-financeira grega? A outra alternativa é entrar em incumprimento, com todas as consequências que daí resultam. Se a situação evoluir por aí, vai ter muita dificuldade em resistir ao previsível tumulto político e social, que será ainda mais intenso do que hoje.

A coligação Syriza/Gregos Independentes (ANEL), é basicamente uma coligação de protesto, não de governo. Não tem suficiente coerência ideológica, nem consistência política. Se vencer o “sim” o governo não terá condições políticas para governar. Posicionando-se o Syriza contra os termos do acordo, será visto como desautorizado pelo eleitorado. A solução, nessa hipótese, será provavelmente a demissão. Em qualquer dos cenários de votação do referendo há grande probabilidade de terem de ser feitas novas eleições legislativas.

Entretanto, a situação do cidadão comum – já muito difícil pelos enormes constrangimentos financeiros da Grécia e medidas de austeridade –, vai melhorar? Mas como? Para além do risco de agravar a catástrofe social e financeira na Grécia, o resultado pode ser ainda pior. Alexis Tsipras arrisca-se a fazer o jogo dos conservadores britânicos de David Cameron – que já lhe terá sugerido abandonar a Zona Euro. Este vê uma boa oportunidade de renegociação dos Tratados, ligada a uma eventual saída da Grécia do Euro. Arrisca-se, também, a dar argumentos adicionais a todos aqueles que, como o ministro das finanças alemão, Wolfgang Schäuble, vêem a Grécia como um caso perdido e uma ameaça ao projecto europeu.

Por último, mesmo ao nível de funcionamento da democracia, há uma preocupação séria, se daí resultar a ingovernabilidade: a descredibilização dos referendos, especialmente sobre as questões europeias. Certamente haverá quem retire satisfação e ganhos políticos se a situação evoluir nesse sentido. Para além dos adeptos do caos, os partidários da governação tecnocrática irão aí buscar renovados argumentos. Democracia e demagogia. Ambas são palavras gregas. Ambas são conhecidas dos gregos da Antiguidade. Ambas são um legado que ficou para a cultura política moderna, da Grécia e da Europa. Não deixemos que a democracia resvale perigosamente para a demagogia e alimente a engrenagem da catástrofe financeira. A bem de gregos e europeus.

Investigador, jptfernandes@gmail.com

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