A Europa face à desordem internacional
A NATO acaba de realizar uma cimeira histórica, vendo-se obrigada a voltar outra vez ao ponto de partida.
Mas a guerra entre nações talvez já não fosse possível num mundo globalizado e, aparentemente, mais amigo da democracia e da economia de mercado, que se desenvolveu com o fim do mundo bipolar. As coisas não correram exactamente assim. A globalização permitiu a rápida ascensão económica de grandes países e, em primeiro lugar, da China. A democracia perdeu o seu brilho, primeiro com as guerras de Bush e, depois, com a crise financeira. A NATO e as relações transatlânticas atravessaram várias crises, que foram sendo superadas, para enfrentar ameaças que já eram de outra natureza. A cimeira da NATO em Lisboa (Novembro de 2010), centrada na revisão do conceito estratégico, parecia marcar um novo tempo em que a Rússia poderia funcionar como parceira para enfrentar um vasto arco de crise, que vai desde o Afeganistão ao Norte de África, passando pelo Médio Oriente.
2. De repente, tudo mudou. Europeus e americanos vêem-se hoje confrontados com uma ameaça convencional vinda, não da potência emergente, mas da potência em declínio. A implosão da União Soviética foi mais pacífica do que todos os cenários antes considerados como possíveis. Durante quase 20 anos, os EUA e a Europa acreditaram que a integração da Rússia seria feita através da cooperação económica e da parceria estratégica. Vladimir Putin foi o primeiro líder mundial a telefonar a George W. Bush no dia 11 de Setembro. Nessa altura o terrorismo fustigava Moscovo. O seu objectivo era outro: restituir à Rússia o estatuto de grande potência. Nunca engoliu a forma como a Guerra Fria acabou. Viu a oportunidade chegar com a guerra no Iraque, para tentar dividir a aliança transatlântica e abrir espaço para uma “arquitectura de segurança pan-europeia” (sem a NATO), unindo-se aos países europeus que se opunham à invasão. Constituiu com Schroeder e Chirac o chamado “eixo da paz” para denunciar a guerra de Bush. Pela primeira vez, é bom recordar, a Alemanha virava-se contra o seu aliado americano, a quem devia a respeitabilidade e a segurança. A Europa olhava para os seus interesses com cada vez maior autonomia em relação aos interesses americanos. Não parecia seriamente ameaçada por ninguém. De crise em crise, a NATO andava à procura de uma nova missão que justificasse a sua existência. Quando foi chamada a intervir nos Balcãs em missões de natureza humanitária, os mais cínicos diziam que não foi para salvar os bósnios muçulmanos, mas para se salvar a si própria. O dilema estava contido numa frase: “Out of area or out of job”. Criada para defender os seus membros, operações levadas a cabo fora do seu território não estavam na sua missão. O 11 de Setembro ofereceu-lhe outra oportunidade no Afeganistão. A crise do Iraque foi, talvez, a maior crise das relações transatlânticas desde o fim da Guerra Fria. Acabou por ser superada, mas alimentou, nalguns países, a começar pela Alemanha, a ideia de que as relações entre os dois lados do Atlântico deveriam ser mais “políticas e económicas” e menos militares. Sem se sentir ameaçada, a Europa acreditou que a geopolítica desaparecera da face da terra. Obama acabava com as guerras de Bush. O “pivô” para a Ásia deixou-a nervosa. A crise do euro abalou os seus fundamentos e esgotou a sua capacidade de olhar para um mundo novo que estava a emergir a uma velocidade vertiginosa.
Hoje, a ameaça vem de um Estado que pode estar em declínio mas que ainda tem força militar para alterar a ordem europeia. Que decidiu ignorar as regras internacionais para cumprir uma estratégia agressiva de expansão da sua influência e cuja única moeda que conhece é a do medo, escreve Jan Techau, do Carnegie Europe. A Europa acordou. Os Estados Unidos perceberam que esta era uma ameaça global num mundo que testa constantemente o seu poder e a sua vontade de se manter-se como o “polícia” do mundo. O ambiente de segurança alterou-se na Europa. Pouco interessa que os EUA e a União Europeia disponham de economias fortes e que o poder militar americano não tenha equivalente a mais nenhum, mesmo com o aumento enorme dos gastos militares na Rússia e na China. Obama tem pouca vontade de utilizá-lo. A Europa ainda menos. Putin tem a vontade política para recorrer a ela.
3. A NATO acaba de realizar uma cimeira histórica, vendo-se obrigada a voltar outra vez ao ponto de partida: garantir a defesa dos aliados perante a “paz quente” que Putin conseguiu instalar na Ucrânia. Quando os separatistas começavam a perder terreno, as tropas russas atravessaram a fronteira para inverter a relação de forças. Foi esta realidade que obrigou Petro Porochenko a aceitar um plano que permitirá a Putin manter um pé dentro da Ucrânia, controlando as suas escolhas e garantindo a sua neutralidade. Os aliados, que o receberam na cimeira de Newport, tê-lo-ão incentivado com uma mensagem muito clara: a força militar da Aliança serve para defender os seus membros, o que a Ucrânia não é. No curto prazo, a vantagem é de Moscovo. Pode não ter de ser a médio prazo. Não conseguiu dividir a Europa nem a frente transatlântica. Haverá medidas de dissuasão nos países da NATO que estão na linha de mira de Putin. E, sobretudo, acordou a Europa para uma realidade que não queria encarar. A mudança em Berlim foi fundamental. David Cameron, o anfitrião da cimeira, tentou devolver ao seu país o estatuto de “fiel aliado” dos EUA, que estava a perder em todas as frentes, incluindo na europeia. François Hollande manteve a reputação da França. Disse o mesmo que Hillary Clinton sobre o erro cometido por Obama ao ter recuado na Síria. A França estava preparada. Ao longo da cimeira, o discurso foi convincente e convergente. A questão é saber se a Europa apenas quer resolver esta crise para poder regressar ao business as usual. Se o fizer, Putin ganhará também no médio prazo. Só tem uma alternativa: definir a sério o seu próprio interesse estratégico e actuar em conformidade. Terá de gastar mais com a defesa, se quer manter a superioridade tecnológica que é a grande força americana e se quer que os EUA se mantenham numa NATO cuja despesa suportam em larguíssima medida. Será capaz de o fazer? Muita gente acha que não. O problema é que, como escreveu Joschka Fischer, a Pax Americana, que nos serviu bem, só tem como alternativa o caos e a desordem internacional.
A Europa tem duas sérias ameaças a leste e a sul. O “Estado Islâmico” é uma ameaça directa. Diz Judy Dempsey, do Carnegie Europe, que, “com os dois grandes conflitos que a NATO tem de enfrentar, a Aliança está a caminhar devagar para uma percepção partilhada das ameaças”. Obama conseguiu uma coligação de países europeus, incluindo a Alemanha, para enfrentar a ameaça a sul. Pela primeira vez, Berlim anunciou que fornecerá material militar aos curdos iraquianos para fazerem frente aos jihadistas. Pode ser que os europeus acabem por perceber o que está em causa. Isso quer dizer que a NATO tem de manter duas missões paralelas: a defesa colectiva e a capacidade de intervir como produtor de segurança em conflitos que desafiam a segurança internacional. Isso custa dinheiro e pode não ser popular. Seria preciso que a Europa tivesse líderes à altura. Não sabemos se tem.
Entretanto, a superpotência ascendente “exerce os músculos” no Pacífico e começa a projectar a sua influência política na cena internacional.