A Europa é agora o destino dos refugiados sírios e a Turquia a placa giratória
A Europa, que até agora recebeu pouco mais de 40 mil sírios, seria sempre o destino de eleição. As dificuldades acrescidas nos países em redor da Síria só aumentaram a parada.
Os pais de Juana estão há mais de um ano em Istambul a tentar partir legalmente para a Suécia. A espera desespera mas não mata. A uma hora de distância da sua casa, no bairro central de Fatih, tantos sírios fazem tentativas diferentes com o mesmo objectivo. É por ali que se encontram muitos dos refugiados que se fizeram contrabandistas; nos últimos meses todos os outros parecem querer o mesmo: chegar à Europa, principalmente aos países do Norte, a Suécia antes de todos.
Mohamed, um enfermeiro de Damasco que o PÚBLICO conheceu em Outubro, minutos depois do fim de uma longa e nervosa viagem, “22 horas, sempre pela montanha”, tinha ele tinha acabado de chegar a Reyhanli, cidade de fronteira em Antakya, ia tentar a via ilegal. Um amigo esperava por ele em Istambul. O amigo conhecia um contrabandista, a viver em Fatih. Mohamed também queria chegar à Suécia.
A viagem para a Europa dos 74 sírios que na terça-feira aterraram em Lisboa passou com grande probabilidade por Fatih, bairro com tantos sírios que o turco deixou de se ouvir na rua. “Praticamente cada sírio parece saber como pôr-se em contacto com alguém que pode ajudar – ou estão a conseguir passaportes falsos ou são contrabandeados, dependendo do dinheiro que conseguem”, conta um jornalista que vive em Istambul e tem trabalhado o tema.
Há passaportes de várias nacionalidades à venda – e de qualidades diferentes. Deborah Amos, da emissora norte-americana National Public Radio, encontrou há dias um sírio que comprou um passaporte suíço onde a data de nascimento lhe dá 20 anos a mais. Abdel, técnico hospitalar do Norte da Síria, até deixou crescer a barba mas já foi mandado para trás no aeroporto de Istambul. “Tentaria 100 vezes”, diz, já a planear a próxima.
Sírios a tentarem refazer as suas vidas não são notícia por estes dias. Desde o início da revolta, faz em Março três anos, sete milhões abandonaram as suas casas, em fuga da guerra, das perseguições do regime ou dos radicais estrangeiros que entretanto inundaram o país, da fome, do frio, da falta de cuidados médicos e de escolas abertas. Mais de dois milhões estão nos países à volta: Líbano, Jordânia, Turquia, Iraque, Egipto. A vida de que se fugiu era má, a nova não é fácil. No Líbano, as crianças em idade escolar já são mais do que as libanesas. Na Turquia, vive-se em campos lotados. Na Jordânia, onde abriu o segundo maior campo de refugiados do mundo para os sírios, falta água para tanta gente e os hospitais públicos estão a rebentar. No Egipto, desde que os militares recuperaram o poder aos islamistas, em Julho, os sírios são perseguidos.
A Europa, que até agora recebeu pouco mais de 40 mil sírios, seria sempre o destino de eleição, as dificuldades acrescidas nestes países só aumentaram a parada. Os números começaram a crescer no Verão. Gente a morrer no Mediterrâneo também já quase deixou de ser notícia. Menos em Outubro, quando mais de 300 pessoas (a maioria eritreus) morreram num só naufrágio, ao largo da ilha italiana de Lampedusa.
Uma boleia perigosa
Todas as semanas morrem sírios no mar, vindos da Turquia e do Egipto. A rota egípcia pode custar 700 a 1500 euros por pessoa e a viagem, até às águas perto da Sicília, chega a demorar seis dias. Sair de Istambul ilegalmente com destino à Suécia custa actualmente 11 mil euros. “As rotas do centro do Mediterrâneo são as mais usadas, a caminho da Grécia, de Malta e de Itália. É uma boleia muito perigosa”, diz Judith Sunderland, membro da Human Rights Watch a trabalhar em Milão.
O jornalista de Istambul diz que a maioria dos que saem da Turquia (70 a 80% ilegalmente, estima) tentam fazer a travessia directamente para a Grécia. A ideia seria chegar à Europa por terra, mas “com a fronteira praticamente selada e fortemente patrulhada, o barco é a solução possível”, confirma a activista sedeada no Norte de Itália.
Sunderland conhece a realidade dos refugiados que tentam a porta italiana para a Europa, mas também a grega. “Há alguma vantagem dos sírios face aos restantes, que não podem ser expulsos de volta”, explica. “Mas o acesso ao pedido de asilo é muito demorado e não há sistema de recepção montado. Alguns estão detidos, outros vivem em campos com condições más, a maioria são deixados ao abandono, vivem na rua.”
Em teoria, a Grécia não expulsa sírios. Na prática, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), Grécia, Itália e Bulgária têm-no feito. “Não nos podemos esquecer que estas pessoas já sofreram enormemente e é totalmente inaceitável que continuem a sofrer depois de chegarem à União Europeia”, disse António Guterres, chefe do ACNUR, numa visita a Sófia no fim de Novembro. Ao longo deste ano, a Bulgária recebeu mais de 8000 pedidos de asilo (a média na última década foi de mil por ano), incluindo 5000 de sírios.
A mensagem errada
Depois das mortes de Outubro, os líderes europeus voltaram a dizer frases ouvidas noutras tragédias. Desta vez, o resultado foi a criação de uma task force que acaba de entregar o seu relatório – as conclusões serão debatidas na cimeira europeia de 19 e 20 de Dezembro. As medidas no topo da lista passam por reforçar as patrulhas no mar e no ar. Em discussão também está a criação de “canais de entrada protegida” e a recomendação do ACNUR para que se facilite a reunificação das famílias. No imediato, não mudará assim tanto para os sírios a caminho.
Os 74 sírios em Lisboa voaram da Turquia para Casablanca e daí para Bissau. Um grupo de 30 que aterrou em Março também passara pela Guiné. Nenhum ficou em Portugal, disse ao PÚBLICO Mónica Frechaut, do Conselho Português para os Refugiados. Também queriam ir para o Norte da Europa, a maioria para a Suécia, onde a comunidade é grande e há um prémio único da UE: autorizações de residência permanentes.
Como os sírios embarcaram com passaportes falsos, a TAP suspendeu a rota Lisboa-Bissau-Lisboa. “As companhias aéreas correm riscos, as multas por transportarem passageiros com documentação ilegal são enormes”, diz Sunderland, da Human Rights Watch. “Mas medidas dessas mandam a mensagem errada. É chocante, na verdade, que seja essa a reacção. Os sírios têm direito a chegar a um sítio seguro onde possam pedir asilo, e estas medidas afectam esse direito.”