A balança
O que devia suceder, sucedeu: não o regresso à guerra fria, o regresso à velha balança das potências do século XIX.
Como império continental, o império russo sempre teve o problema de estabelecer para si, e sob seu domínio, uma saída para o mar. Pedro, o Grande, construiu Petersburgo, julgando que ficava mais perto da Europa. Mas só parcialmente conseguiu o que queria; durante muitos meses por ano o Báltico oriental gelava e não permitia qualquer espécie de navegação. O verdadeiro ministro dos Negócios Estrangeiros do império, por exemplo, acabava por ser o embaixador em Londres. Catarina, a Grande, resolveu parcialmente o problema quando conquistou a Crimeia e construiu Sebastopol. Agora, sim, adquirira um porto de águas quentes, que estava aberto o ano inteiro e, por isso mesmo, se tornou a via principal da influência russa no Ocidente. Militar e comercialmente, era insubstituível.
Não foi por acaso que a única invasão triunfante da Rússia nos tempos modernos (1853-1856), pela Inglaterra e a França de Napoleão III, se pôs como objectivo principal conquistar a Crimeia. Toda a gente sabia que, sem Sebastopol, a Rússia voltaria ao seu isolamento e pouco a pouco perderia o seu peso na Europa. Como não foi por acaso que na I Guerra a Alemanha trouxe a Turquia para o seu lado e na II Hitler aturou (com dificuldade) a sua neutralidade e tomou Sebastopol logo que pôde (von Manstein). A ajuda aliada veio pelo Pacífico, com o prejuízo que implicava transportar o material para a frente de combate, e pelo mar Branco, transitável poucas semanas por ano e sujeito ao ataque dos submarinos da Alemanha. Sem Sebastopol, o império enfraquecia.
Claro que com o advento do comboio, e a seguir do avião de carga, as coisas mudaram. Sucede que tanto o comboio como o avião custavam muito mais do que o navio de mercadorias. E, além disso, a Rússia continuava impedida de construir no Ocidente uma marinha de guerra, capaz de agir a qualquer momento (supondo que a Turquia a deixava passar para o Mediterrâneo). Não admira que Sebastopol se tornasse num emblema do nacionalismo russo e da sua “porta aberta” para a Europa e para o Atlântico. A UE e a América não perceberam a tempo que o renascimento do império, com Putin ou sem ele, iria levar ao programa primário de recuperar a Crimeia. E encorajaram a Ucrânia, a que a Crimeia pertencia por uma extravagância de Khrutchov, a criar uma dependência, se não uma “aliança”, com a Europa. O que devia suceder, sucedeu: não o regresso à guerra fria, o regresso à velha balança das potências do século XIX.