Os generais nos seus labirintos

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Os amigos de Petraeus notam que, sendo director da CIA, o general sentia a falta da vida militar TOBY MELVILLE/REUTERS

Um mundo escondido que orbita à volta do Exército americano, histórias de grande ambição - a queda em desgraça do general Petraeus é uma novela que promete sempre mais

O general David Petraeus foi apanhado num labirinto de muitas curvas e talvez becos sem saída, quando se descobriu que teve um caso extraconjugal com Paula Broadwell, a sua biógrafa 20 anos mais nova, enquanto ele era director da CIA. Após o escândalo da revelação, os protagonistas da história que abalou o coração da segurança nacional americana - sem que haja indícios de crime ou de que o país tenha sido colocado em perigo - estão a contratar os advogados mais caros e experientes de Washington, e os melhores especialistas em controlar grandes escândalos.

Vernon Loeb é jornalista do Washington Post, especialista em temas de Defesa, e foi o "escritor fantasma" da biografia muito laudatória do general Petraeus assinada por Broadwell e publicada em Janeiro de 2012. Ao longo dos 16 meses que trabalhou com a amante do general, nunca desconfiou de nada - mas confessa, num artigo no seu jornal, que a sua mulher lhe diz que ele é "a pessoa mais despistada da América".

Tal como outras pessoas que conhecem o general Petraeus, e o seu autocontrolo, ficou chocado por saber da relação, e recordou algo que toda a gente diz do comandante do Iraque e do Afeganistão: "Ele estava sempre a pregar aos seus protegidos que o carácter se definia pelo comportamento que se tinha quando ninguém nos estava a ver. E apressava-se a acrescentar: "Há sempre alguém a observar-nos"".

Petraeus era alguém habituado a ter uma assistência. Habituado a cultivar os jornalistas e os políticos, o general de quatro estrelas distinguia-se porque a equipa que o rodeava o idolatrava quase como um culto, escreve a Time. Tinha um séquito de protegidos - Petraeus é um general intelectual, com doutoramento em Política Externa tirado em Princeton -, onde se incluía Paula Broadwell.

Broadwell encontrou-se com o general em 2006, e pensou incluí-lo com um estudo de caso aprofundado na sua tese de doutoramento sobre liderança militar. Mas acabou por fazer um livro sobre ele, com um nível de acesso inédito ao general, que lhe rendeu um contrato milionário - com um valor nos seis dígitos. À força de persistência nos contactos com o general, várias viagens ao Afeganistão em 2010 e capacidade de o acompanhar no jogging - Petraeus tem a reputação de correr uma milha (cerca de 1500 metros) em seis minutos, aos 60 anos -, Paula Broadwell conseguiu o seu livro.

Ambos são o tipo de pessoa que competem sempre para serem os melhores, para ganharem todos os prémios, para se excederem, relatam os que os conhecem bem. A relação deles começou a construir-se nesse traço de personalidade.

Ela também se formou na Academia Militar de West Point (classe de 1995, enquanto Petraeus é de 1974), esteve vários anos no activo e nos serviços de inteligência militar, colocada na Europa, mas sonhava com uma carreira na diplomacia ou na política. Ambição nunca lhe faltou, relatam os media norte-americanos - o que pode ser um traço positivo ou negativo, consoante o retrato que dela se quer traçar. Petraeus disse a amigos que admirava a "combinação de capacidade intelectual e potência física de Broadwell", disse ao Washington Post o coronel na reforma Peter Mansoor. "Em alguns aspectos, ela é uma versão feminina dele".

Um truque da Al-Qaeda

O affair começou só quando Petraeus regressou aos EUA e não conseguiu do Presidente Obama, já a planear a reeleição, a nomeação que desejava: a de comandante conjunto dos chefes de Estado-Maior, a posição militar de topo. "A Casa Branca suspeitava de Petraeus, acreditava que era um potencial candidato à presidência", escreveram os jornalistas Daniel Klaidman e Gail Sheehy na Newsweek. Foi Petraeus que sugeriu a ideia de ir para director da CIA.

Mas a CIA é uma agência civil - por isso teve de se reformar do Exército, e abandonar o seu staff adorador. Seguiu o conselho do ex-secretário da Defesa Robert Gates, que fez a transição de George W. Bush para Barack Obama, escreveu a Time. O prático Gates disse-lhe para não fazer o erro de outros directores que nunca foram bem aceites na CIA, por terem levado a sua própria equipa, marcando-os para sempre como corpos estranhos à agência, como John Deutch e Porter Goss.

O resultado, sublinha a revista, é que Petraeus ficou sem alguém de confiança para o aconselhar na direcção da CIA. E fez erros de palmatória no seu romance com Broadwell - usar o e-mail é, simplesmente, um erro, dizem especialistas em privacidade. Mesmo sem chegarem a enviar as mensagens, como ele e Broadwell faziam: partilhavam uma única conta de Gmail, e deixavam mensagens na caixa dos rascunhos, que só podiam ser lidas tendo uma password. Só que este truque já é velho, usado por operativos da Al-Qaeda, e já desmontado pelos serviços de segurança nacional e inteligência norte-americanos...

Mas nenhum deles fez nada para esconder o endereço IP dos computadores que usou - uma medida de segurança básica para apagar os seus passos online, uma vez que todos os fornecedores de e-mail, como o Google ou o Yahoo, mantêm os registos de acesso dos utilizadores durante 18 meses, e estes podem ser apreendidos pelas autoridades.

Na CIA, como chefe dos espiões, estava sozinho, e não podia ter o reconhecimento público que tinha como um general-estrela. Os amigos notam que sentia a falta disso - por vezes apresentou-se em público com as medalhas sobre o fato civil. O caso com Broadwell começou neste contexto de uma certa dificuldade de adaptação à vida civil, uns dois meses depois de ter tomado posse, em Setembro de 2011.

As amigas de Tampa

Para trás não ficaram as relações que o general tinha estabelecido no passado - e que talvez nesta altura em que Petraeus sentia falta da adulação a que estava habituado lhe tenham parecido mais importantes ainda. É aqui que entra na história, dando-lhe verdadeiros contornos de soap opera, Jill Kelley, a senhora da sociedade de Tampa, a cidade na Florida onde está a sede do Comando Central dos Estados Unidos (CENTCOM), que Petraeus chefiou de 2008 a 2010.

Kelley especializou-se em dar animadas festas para os militares de altas patentes da Base McDill, onde está o CENTCOM, e tornou-se amiga do casal Petraeus, juntamente com a sua irmã gémea Natalie Khawam, de 37 anos. "Ela encontrou um nicho único que funcionou muito bem para ela", disse ao siteThe Daily Beast Aaron Fodiman, director do Tampa Bay Magazine, e uma figura da cena social local. "Quando os novos comandantes chegam com as respectivas famílias, ela está lá, diz às esposas onde podem cortar o cabelo e onde comprar um bom bolo de aniversário". Mas os generais parecem ser o principal foco da atenção de Kelley.

Quanto se tornou amante de Petraeus, Broadwell terá sentido ciúmes da proximidade de Kelley com o general, e começou a enviar-lhe mensagens anónimas ameaçadoras, em que revelava ter conhecimento da agenda do então já director da CIA - e também do comandante das forças aliadas no Afeganistão, o general John Allen, que foi "vice" de Petraeus durante o seu tempo no CENTCOM.

Receosa das mensagens que recebeu, Kelley entregou o seu computador ao FBI e desencadeou a investigação e vigilância online que permitiram chegar até aos pecadilhos de duas grandes figuras militares, dois homens no coração da máquina de segurança nacional dos EUA. É que no computador de Kelley havia e-mails trocados com Allen de teor que parece ser "indevido e impróprio", embora o general negue o adultério.

Seguindo as regras de formatação do FBI, que implicam por exemplo uma pagina para cada cabeçalho, há cerca de 30 mil páginas desta correspondência "namoradeira" para analisar antes de Allen saber se poderá avançar para o posto que lhe estava destinado, o comando das forças americanas na Europa.

Os media norte-americanos vasculharam a história e as finanças de Kelley e do marido - há nove processos abertos contra eles por vários credores, e o casal deve cerca de 2,2 milhões de dólares. Há suspeitas de que a fundação por eles criada, para promover a investigação sobre o cancro e satisfazer os últimos desejos de doentes terminais, é uma fraude. E, no entanto, têm a confiança dos Petraeus e também de Allen.

Tanto assim é que ambos os generais escreveram ao juiz encarregue de decidir sobre a custódia do filho da irmã gémea de Kelley, testemunhando a seu favor - embora o juiz tenha considerado existirem "sérias dúvidas sobre a falta de integridade e o comportamento alienante de Natalie Khawam".

Agora que todas estas histórias escabrosas saíram para a luz do dia, é tempo de tentar minimizar os danos. Uma sondagem The Washington Post/ABC mostra que um terço dos americanos passou a ter uma opinião negativa de David Petraeus, quando antes era extramamente popular. Mas ainda não perdeu tudo: 45% ainda têm boa opinião dele.

É pouco provável que Petraeus venha a ser acusado de alguma coisa, mas contratou um advogado famoso, Robert Barnett. O seu papel será o de delinear uma nova carreira para o general - já tem ofertas de várias editoras, de empresas que o querem nos seus conselhos de administração, universidades que o desejam como professor. Ser comentador televisivo é outra possibilidade.

A hora dos guionistas

Mas todos os intervenientes neste psicodrama contrataram grandes nomes da advocacia ou das relações públicas, com vasta experiência em gerir escândalos deste tipo. Paula Broadwell, por exemplo, cujas simpatias vão para os republicanos, cruzou fronteiras ideológicas para contratar Dee De Myers, que foi assessora de imprensa da Casa Branca de Bill Clinton.

Jill Kelley, apesar de falida, fez grandes contratações: é representada pelo advogado Abbe D. Lowell, que defendeu o ex-candidato democrata às presidenciais John Edwards, desacreditado por ter usado fundos da campanha para tentar esconder as suas aventuras extraconjugais, e também Judy Smith, uma especialista em "gestão de crises", que geriu a "crise Monica Lewinsky", a estagiária da Casa Branca que quase fez perder o mandato presidencial a Bill Clinton.

Até a irmã gémea de Kelley, Natalie Khawam, fez uma contratação de peso para gerir a versão pública da sua história: Gloria Allred, advogada feminista que gosta de apresentar casos contra celebridades. Levou a bela morena, vestida e maquilhada para arrasar, até uma sala apinhada de jornalistas no Ritz Carlton de Washington para ler um depoimento escrito, meio em lágrimas, em que não disse nada.

"Eu e a minha irmã Jill não somos só gémeas, somos as melhores amigas, literalmente inseparáveis", disse Khawan, que levava um vestido azul-escuro recatado. "Anseio pelo dia em que possa responder às perguntas de todos e explicar o que realmente aconteceu", disse, antes de se recusar a responder a uma única questão.

A novela dos generais americanos e das mulheres que gravitam à sua volta promete continuar, pois, agora com um guião cuidadosamente manipulado.

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