Ela ainda é o epicentro do futuro da Ucrânia
Amanhã, um tribunal ucraniano vai apreciar mais um recurso da líder da oposição condenada num caso que a Europa classifica de "justiça selectiva". A prisão de Timochenko eclipsou os efeitos políticos que Kiev pretendia obter com a realização do Euro 2012. Mais do que nunca, o futuro do país passa pelo destino da dama da Revolução Laranja
Oacampamento ocupa em permanência o amplo passeio em frente ao tribunal na Khreshchatik, a principal avenida da capital ucraniana, Kiev. Está aqui desde que a antiga primeira-ministra Iulia Timochenko, 51 anos, foi condenada por este tribunal a sete anos de prisão pelo crime de abuso de poder, por causa dos contratos de fornecimento de gás natural que assinou com a Rússia, em Janeiro de 2009.
Abrigados da chuva miúda do fim de tarde, sentados em cadeiras de plástico, os militantes do partido da líder histórica da Revolução Laranja deixam o tempo correr enquanto montam a sua vigília. Há cartazes, música, fotografias de Iulia, panfletos, postais com corações e, evidentemente, muitos slogans, uns em ucraniano, outros em inglês: voltado para as faixas de rodagem da avenida, um cartaz exclama "Julia Forever!".
É difícil encontrar quem fale connosco neste pedaço de cidade que os apoiantes da dirigente pró-ocidental anexaram, sob a fachada imponente e maciça do tribunal, um entre os muitos edifícios soviéticos do pós-guerra que se estendem dos dois lados da curva suave que a avenida desenha. Há jovens, mulheres de meia-idade a tricotar, homens a jogar xadrez - podia ser um fim de tarde num jardim ucraniano. Encolhem os ombros, quando perguntamos se alguém fala inglês. Excepto um homem de rosto ossudo, bigode e cabelos brancos. Tem 60 anos, identifica-se apenas como Valera, é engenheiro electrónico. "Ah, é, de Portugal... Posso praticar o meu inglês", começa por dizer. "Estou aqui todos os dias e passam por cá pessoas de diferentes regiões da Ucrânia, embora haja mais gente de Kiev. Ontem, fomos a Kharkiv, onde ela está presa."
Kharkiv é a cidade perto da fronteira russa onde Timochenko está a cumprir a pena a que foi condenada em Outubro de 2011. É outro ponto de concentração habitual dos seus apoiantes. Para eles, o julgamento foi um ajuste de contas do actual Presidente, Victor Ianukovich, com a líder da oposição, que ele derrotou nas eleições de presidenciais de 2010 e que quer impedir de concorrer às legislativas de Outubro e às presidenciais de 2014.
Não são os únicos a pensar assim. A União Europeia condenou o uso da "justiça selectiva" contra Timochenko e alguns dos principais líderes europeus, como Angela Merkel e Durão Barroso, disseram que não assistiriam a jogos do Euro 2012 na Ucrânia, se a líder da oposição continuasse na cadeia. A 28 de Agosto, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem começará a avaliar uma queixa de Timochenko contra a ilegalidade da sua detenção. Amanhã, um tribunal superior ucraniano apreciará um pedido de recurso que a filha de Timochenko, Eugenia, diz ser "crucial para restaurar a justiça".
Mas os sinais de abertura do regime têm sido escassos. Em meados de Junho, as autoridades ucranianas impediram o antigo presidente do Parlamento Europeu Pat Cox e o ex-Presidente da Polónia Aleksander Kwasniewski de visitarem Iulia, afirmando que ela estava "deliberadamente em isolamento".
No fim de Abril, Timoshenko entrou em greve de fome até ser transferida para um hospital, onde pudesse ser tratada à sua hérnia por um médico alemão e, posteriormente, queixou-se de maus tratos e de ter sido agredida na prisão. Isso significou um enorme embaraço para o Governo ucraniano: com as atenções internacionais focadas na líder da oposição, o impacte mediático do Euro 2012 ficou reduzido a pó.
"A Ucrânia perdeu claramente a guerra da informação", diz ao PÚBLICO Orisia Lutsevich, analista do think tank Chatham House, numa entrevista por telefone. "Agora contrataram agências de comunicação para fazerem passar a mensagem de que Timochenko está presa porque é uma traidora." A Ucrânia reagiu ao boicote europeu classificando-o de "táctica da Guerra Fria", numa alusão ao boicote ocidental aos Jogos Olímpicos de Moscovo, em 1980. "Os media ucranianos estão a dizer que a UE tem dois padrões, que está a interferir nos nossos assuntos internos e que a Ucrânia não será humilhada", acrescenta a analista.
A posição oficial de Kiev é a de que Timochenko foi condenada por um tribunal independente, que a acusou de abuso de poder por causa do acordo assinado após o gigante russo Gazprom ter interrompido o fornecimento de gás natural à Ucrânia e, por arrasto, a vários países da União Europeia. Timochenko foi a Moscovo e trouxe um acordo de condições muito favoráveis para a Rússia. Estava sob forte pressão de Bruxelas para assinar: havia pessoas a morrer de frio na UE. Uma lei ucraniana que permite a criminalização de actos políticos levou a esta condenação. Outros membros do seu governo estão também presos e Timochenko ainda vai ser julgada mais uma vez, por alegadas implicações no assassínio do milionário Iehven Scherban, morto a tiro quando saía de um avião em Donetsk, em 1996. Timochenko nega qualquer envolvimento nesse crime.
É como se fosse um acerto de contas com a Revolução Laranja, de 2004, quando milhares e milhares de ucranianos encheram a Praça da Independência, a poucas centenas de metros do local onde está agora o acampamento dos apoiantes de Timochenko. Protestavam contra a eleição fraudulenta de Yanukovich, o candidato presidencial do Partido das Regiões, cuja principal base de apoio são as regiões de cultura russa, no Leste do país. Yanukovich era e é o homem do chamado "clã de Donetsk", o grupo de oligarcas da região industrial e mineira do Donbass, cuja figura central é Rinat Akhmetov, o todo-poderoso presidente do clube de futebol Shakthar Donetsk.
Os pró-ocidentais ganharam e a presidência foi entregue a Viktor Iuchenko, o candidato mais votado. Uma vaga pró-democracia, pró-ocidental e pró-europeia varria a antiga república soviética que se tornara independente em 1991. Era como se a queda do Muro de Berlim tivesse finalmente chegado a Kiev.
Valera, o engenheiro electrónico pró-Timochenko que encontrámos no acampamento da Khreshchatik, esteve nas manifestações de 2004 nestas mesmas ruas. Olha para este ajuste de contas como um confronto entre duas Ucrânias: "Estive na Revolução Laranja e acredito que as ideias dela estão vivas. Timochenko é a nossa líder, significa que a Ucrânia estará um dia na Europa, compreende? Mas para alguns é uma criminosa. A Ucrânia é um país interessante, metade é Ásia, metade é Europa, nós queremos a Europa, eles querem Moscovo e Putin. Mas nós não somos contra a Rússia."
Moscovo, de qualquer forma, não ficou satisfeita com a condenação da líder pró-ocidental. Em parte por ter sido beneficiada com o acordo ou talvez por Vladimir Putin ter uma queda pela líder ucraniana, segundo se diz.
Iulia Timochenko iria ser, com Viktor Iuchenko, uma das principais protagonistas do movimento de mudança. Os conflitos de poder entre os dois acabariam por ditar o fracasso da Revolução Laranja e o regresso ao poder do Partido das Regiões e de Ianukovich. Esses conflitos eram também o reflexo de um choque de personalidades entre uma primeira-ministra assertiva e carismática e o Presidente fraco, pouco corajoso e incomodado com o ascendente da sua parceira na liderança da revolução.
"Na chamada "Revolução Laranja", os ucranianos exprimiram pela primeira vez uma vontade de mudança. Mas passados uns anos essa revolução foi julgada como um grande falhanço", diz ao PÚBLICO o representante da UE em Kiev, o diplomata português José Manuel Teixeira. "Foi um período em que houve desenvolvimentos positivos. Estabeleceu um maior equilíbrio entre as várias fontes do poder e havia um ambiente de muito maior liberdade e um ambiente de pluralismo", prossegue.
Mas a revolução não manteve as suas promessas. Em 2010, desiludidos com o desempenho dos partidos pró-ocidentais, o Nossa Ucrânia, de Iuchenko, e o Bloco Iulia Timochenko, os eleitores viraram-se para os rivais da Revolução Laranja, o Partido das Regiões, e Ianukovich, o actual Presidente, foi eleito. Entrou-se numa fase de retrocesso, explica José Manuel Teixeira: "Acabámos no uso selectivo da justiça para efeitos políticos. Isto foi o que chamou a atenção do mundo e da Europa para o que estava a acontecer na Ucrânia, mas os factos já lá estavam."
Para Valeri Chali, vice-presidente do Razumkov Centre, um dos principais think tanks da Ucrânia, é o problema da independência dos tribunais que está desde logo em questão. "Quando falamos de Timochenko, falamos de um símbolo do estilo do sistema judicial na Ucrânia, não de uma antiga primeira-ministra", começa por afirmar ao PÚBLICO. "Agora, parece mais um processo político do que um processo judicial. É estranho, porque temos quase todo o antigo Governo na prisão", acrescenta. Para além de Timochenko, estão presos o antigo ministro do Interior Iuri Lutsenko, o antigo ministro do Ambiente Heorhiy Filipchuk e o antigo ministro da Defesa Valeri Ivashchenko. Os dois primeiros estão condenados a penas, respectivamente, de quatro e três anos de prisão.
Os inimigos de Timochenko apresentam-na como uma líder populista hábil a vitimizar-se. Quando ela mostrou os ferimentos nos braços e na barriga, na prisão de Kharkiv, acusando as autoridades de maus tratos, a versão oficial foi a de que tinham sido auto-infligidos.
"Ninguém na Ucrânia lhe dirá que Timochenko é um anjo", diz Orisia Lutsevich - uma expressão que seria usada antes do Euro 2012 por Timothy Garton Ash, num texto em que apelou ao Governo inglês para boicotar os jogos na Ucrânia do Euro 201 - e que é de facto possível ouvir muitas vezes no país. "Timochenko fez algumas coisas erradas, que não têm nada a ver com a negociação dos acordos do gás pelas quais foi condenada", diz ao PÚBLICO Inna Prodiko, uma jovem jornalista do jornal Korrespondent de Kiev.
Natural da antiga cidade proibida de Dnipropetrovsk, Iulia Timochenko tornou-se uma das mulheres mais ricas da Ucrânia na década de 1990, a época em que, após a dissolução da URSS, as empresas e as indústrias da Ucrânia foram tomadas de assalto e os oligarcas construíram os seus impérios. Em todo o país, fábricas e minas foram alvo de assaltos armados, num processo em tudo semelhante ao seguido na Rússia. O "clã de Dnipropetrovsk", ao qual pertencia o antigo Presidente Leonid Kutchma, foi o primeiro a dominar politicamente o país, antes da ascensão do "clã de Donetsk".
Timochenko enriqueceu com os negócios que fez no sector da energia e chegou ao Governo, pela primeira vez, em 1999, altura em que esteve presa durante um curto período e envolvida em casos menos claros.
Esteve na oposição a Kutchma e fundou o seu partido em 2002. A Revolução Laranja catapultá-la-ia para a ribalta. É uma grande oradora, tem o charme e o brilho que falta aos seus obscuros e cinzentos adversários masculinos, a trança loura que a distingue foi comparada a uma coroa. Mas na Ucrânia ela não é encarada como muito diferente dos outros políticos.
Se os partidos da Revolução Laranja não resistiram ao desgaste de seis anos no poder, em apenas dois anos o Partido das Regiões e Ianukovich viram a sua popularidade descer em flecha. Estava acima dos 30% nas sondagens e caiu para 22% em Maio, contra quase 26% do partido de Timochenko. Em perda internamente, isolado externamente, o Ianukovich não tem a vida facilitada para as eleições legislativas, apesar das mudanças controversas que introduziu na lei eleitoral.
Nada neste contexto tornará mais fácil o destino imediato de Iulia Timochenko. Sobretudo porque quando as luzes do Euro 2012 se apagarem, a atenção dos europeus voltar-se-á para outras paragens, lembra Orisia Lutsevich. "Timochenko tem de usar todos os seus recursos nos media ocidentais para se manter na ribalta. Para ela é uma questão de vida ou de morte. Mas ela não deverá sair até ao princípio do próximo ano", afirma a analista da Chatham House.
Uma vitória da oposição nas eleições poderia levar à mudança da lei ao abrigo da qual foi condenada. Ianukovich diz publicamente que gostaria de a ver em liberdade, mas o seu Governo afirma que, primeiro, Timochenko terá que pedir o perdão presidencial. O advogado de Iulia contesta e diz que o Presidente não precisa desse pedido para a perdoar.
A única certeza é que, enquanto o caso Timochenko não se resolver, as relações entre Bruxelas e Kiev ficarão congeladas. O acordo de associação entre a União Europeia e a Ucrânia, que já está rubricado, ficará por assinar, mantendo o segundo maior país do continente europeu (logo a seguir à Rússia) à deriva entre Bruxelas e Moscovo. "A líder sitiada da Ucrânia conseguiu algo muito raro: uniu os EUA, a UE e a Rússia [contra o Governo ucraniano]", escreveu recentemente o comentador Neil Pattie, no Euobserver. Presa em Kharkiv, numa cela ou num quarto de hospital, Iulia Timochenko vai continuar a ser, talvez mais do que nunca, o epicentro do futuro da Ucrânia.