A queda de um príncipe
Desde Mao que não se via tanta intriga em Pequim. Num país onde não há eleições e partidos, as facções lutam entre elas para conseguirem maiorias e chegar ao poder. A queda do líder de Ghongqing revela a ferocidade da luta pelo poder
A política chinesa ficou novamente interessante, escreveu há dias a americana Elizabeth C. Economy. Está cheia de intriga palaciana. Há facções em guerra. Há nervosismo e desorientação. Há gente a cair em desgraça. E há um vilão - Bo Xilai, destituído de secretário-geral do Partido Comunista na famosa cidade-província de Chongqing.
Foi Bo que deu fama a Chongqing, tornando-a no grande modelo de crescimento económico e paz social da China. Num dia, era o exemplo a seguir, no outro uma anomalia criada por um homem pérfido.
Nos textos jornalisticos sobre a China escrevem-se invariavelmente as palavras "opacidade" e "secretismo". Apesar de a queda de Bo ter sido notícia em todo o mundo, é precisamente no que não é visível que está o apetecível. A China prepara-se para uma mudança de líderes, talvez a maior desde a morte de Mao Tsetung, e o episódio Bo expôs a feroz guerra pelo poder que se trava em Pequim.
"Bo é uma figura política de topo. Afastá-lo de Chongqing não foi uma questão de política local, mas um acontecimento de dimensão nacional", diz por email ao PÚBLICO Elizabeth C. Economy, que é especialista em China no Council on Foreign Relations. "E a batalha que se trava no topo da liderança está longe de estar concluída", acrescentou.
A primeira evidência que saiu de todas notícias relacionadas com esta queda é a de que, politicamente, a China é um país muito mais instável do que a imagem que projecta. Quebrar essa imagem de tranquilidade foi o primeiro pecado de Bo Xilai, o homem de 62 anos que nasceu em berço de ouro e planeava acabar a vida sentado num trono.
Um individualista
Bo é o único político "à ocidental" que a China tem. Cultiva uma imagem elegante, mantendo a boa aparência. Cativa os interlocutores com o seu inegável carisma e nunca se coibiu de conversar com os jornalistas, de falar de acordo com os interesses da plateia e de dizer claramente quais eram as suas ambições. "Se ele fosse americano... mas na China não há eleições e o perfil dele não se encaixa na nossa cultura política", comentou ao Diplomat Yang Fan, um dos autores do livro The Chongqing Model.
Depois de Tiananmen e da convulsão política que antecedeu o movimento pró-democracia - lutas pelo poder e cisões vieram a público -, a elite política chinesa percebeu que, para sobreviver, teria que regressar às regras rígidas. Os altos funcionários do partido seriam tão discretos que quase se tornariam invisíveis. E a política seria desprovida de excitação, de emoção, de interesse.
Só que a cor cinzenta não está na natureza de Bo. E quando foi afastado do cargo de ministro da Indústria (por falta de resultados, diz-se) e o Presidente Hu Jintao o enviou para uma das províncias mais degradadas, e uma das mais populosas (quase 40 milhões de pessoas), em vez de desaparecer nos confins da China como esperava a cúpula, descobriu o seu elemento natural.
Actuando como quem tem carta branca, tornou-se um governador independente e criou o seu próprio modelo económico e social. Combateu o crime organizado, criou um programa de redistribuição da riqueza, aumentou o peso da administração local, abriu Chongqing ao investimento externo (a gigante informática HP está lá) e aumentou o número de postos de trabalho. Juntou a modernidade económica ao populismo e ao comunismo e conseguiu uma receita de sucesso - Chongqing tornou-se a região da China de maior crescimento económico e de grande estabilidade social, e o "modelo" foi falado em todo o mundo.
Em paralelo, subjugou inimigos, extorquiu dinheiro, cometeu abusos de poder e crimes, alguns de morte, diz Pequim e há denúncias públicas. Em Março, depois de um episódio digno da caneta de Ian Fleming, o partido demitiu-o.
Wang Lijun, braço direito de Bo e superpolícia responsável pela guerra contra os gangs e as máfias locais, refugiou-se no consulado dos Estados Unidos. Carros da polícia partiram atrás dele, o edifício foi cercado. O que contou aos americanos não se sabe. Que acordo fez com os chineses para aceitar sair do consulado também não se sabe. Mas Bo Xilai estava perdido.
O superpolícia teria provas acerca de uma teia de corrupção que envolveria Bo, a mulher e o filho. Outra versão: teria provas de uma conspiração de alto nível para tomar o poder. Na semana passada, um aliado de Bo, o poderoso Zhou Yongkang, que controla as polícias e os tribunais e é membro do Comité Permanente do Partido Comunista Chinês (o órgão mais poderoso da China), foi proibido de aparecer em público e o Financial Times garantia que estava sob vigilância.
Para o povo - o de Chongqing mas não só -, Bo é um herói. Para a liderança, é uma ameaça. Trabalhava contra a corrente, crescia fora das regras, trabalhava em seu próprio nome, não para o partido. Disseram alguns analistas que a história de Bo não poderia ter tido outro desfecho. Na China das reformas económicas, as reformas políticas ficaram por fazer. E o caso Bo, como escreveu Elizabeth Economy, é paradigmático do que devemos esperar - nada. "A reforma é um risco. Um partido que governa durante muito tempo terá sempre muita atenção ao que pode ferir a sua base política e resistir à mudança que possa implicar o desenvolvimento de interesses especiais", lia-se num texto datado de Fevereiro do Diário do Povo, o órgão oficial do PCC. "O método burocrático - lia-se na revista Economist - é a garantia de que a transição é pacífica e que há continuidade nas políticas".
Filho do lendário Bo Yibo, companheiro de Mao e herói comunista, Bo Xilai foi apanhado na adolescência pela Revolução Cultural. O pai foi preso e enviado para prisões e campos de trabalho. Os relatos dizem que se afastara do caminho certo, com actividade e pensamentos não revolucionários (defendeu a abertura da China ao comércio externo; teve a sua vingança nos anos de 1980, quando foi uma das vozes da reforma económica e da criação do conceito um país, dois sistemas). Nos 15 anos de travessia do deserto, os três filhos andaram por campos de trabalho e a mulher foi espancada até morrer.
Reabilitado o pai, os filhos regressaram a Pequim para se tornarem "príncipes". Os príncipes chineses são os descendentes dos heróis da revolução. Estudaram nas melhores escolas, viveram nas melhores casas. Para o regime, são intocáveis - ou eram, até surgir Bo Xilai. "O facto de o pai ser um dirigente revolucionário só sublinha a importância deste afastamento", frisa Economy.
Bo é, pois, o produto de mundos contraditórios - a revolução, a Revolução Cultural, os benefícios de classe. Por isso, quando surgiram notícias de que a sua queda estava associada à corrupção, os analistas, chineses e ocidentais, franziram a testa. Entre a elite, a corrupção é endémica, refere Elizabeth Economy. Se fosse por aí, a China ficaria a braços com uma rotunda falta de líderes.
Outra justificação dada foi o seu neomaoísmo, e neste campo as análises bifurcaram-se.
Para uns, trava-se em Pequim uma luta entre reformadores e conservadores, entre os que querem avançar nas reformas económicas e os que acreditam que algum retrocesso equilibrará o país onde a fractura social já é muito profunda - há cada vez mais muito ricos e cada vez mais muito pobres. Esta guerra terá tido o seu papel e o sucesso do "modelo Chongqing" tornou-se outro pecado de Bo. A experiência Chongqing, e isto parece seguro, acabou; o homem que substituiu Bo na província foi classificado pelos sinólogos como um burocrata tão cinzento que a BBC se permitiu fazer ironia: a boa notícia é ser licenciado em Economia, a má notícia é ter estudado na Coreia do Norte.
Para outros, Bo preconizava o regresso à Revolução Cultural e ao terror - reavivou tácticas de mobilização de massas do passado, como as canções e as peças de teatro revolucionárias. Os observadores disseram que este lado folclórico fez mais parte da estratégia populista de Bo Xilai e de gostar do culto da personalidade, do que da sua ideologia. É um homem atento e percebeu que há cada vez mais nostálgicos (diz Economy que, diariamente, se realizam mais de 500 protestos na China e que o único denominador comum entre eles é o desagrado pela degradação social gerada pela política económica de Pequim).
Facções em vez de partidos
Vistoso, bem sucedido, ambicioso. Bo Xilai tinha que ser travado. E o tempo fugia. Este ano realiza-se o Congresso do PCC, que tem lugar de cinco em cinco anos, e haverá mudança de líderes. Em Outubro, Hu Jintao deixa a presidência e Wen Jiabao termina o mandato de primeiro-ministro. Alguns membros da Comissão Permanente são substituídos, assim como parte do Politburo. Bo era candidato ao Comité Permanente, o zénite do poder, o trono da China.
Num país onde não há eleições, os políticos são funcionários do partido e meros peões dos verdadeiramente poderosos. Há facções políticas, em vez de partidos. Bo é um alinhado da facção de Xangai, controlada pelo antigo Presidente Jiang Zemin, que quer reforçar o peso dos seus aliados no Comité.
O actual Presidente controla a outra grande facção e quer manter o seu lastro de influência. Terá conseguido fazer com que Xi Jiping (outro príncipe, escolhido para próximo secretário-geral e chefe de Estado) mudasse de campo, a meses da passagem de testemunho, tornando visível a conspiração, secreta ao longo de meses.
A teoria do golpe palaciano diz que, uma vez no Comité Permanente que tem nove membros, Bo daria à facção de Xangai a maioria para afastar Xi e emergir um Presidente mais conservador.
Jiang necessitava agir e punir de forma exemplar. Haveria melhor vilão do que o príncipe cheio de pecados?
Um aviso sobre o perigo chegara a Bo no dia 3 de Março. Bem ao estilo da forma de fazer política na China, apareceu sob a forma de metáfora meteorológica: "O clima de Chongqing é muito diferente do de Pequim", disse-lhe um amigo e o episódio foi contado pela Reuters. "Por isso, espero que todos se protejam do frio e se mantenham quentes, tenham muito cuidado com a vossa saúde."