A crise levou os dinamarqueses a virar à esquerda
Helle Thorning-Schmidt será a primeira mulher a chefiar um Governo na Dinamarca. Espera-se uma maior aproximação a Bruxelas
Prometeu aumentar os impostos e o investimento público. Prometeu pôr os dinamarqueses a trabalhar mais uma hora por semana. Prometeu deter a construção de postos fronteiriços. E foi eleita primeira-ministra. Com Helle Thorning-Schmidt, a Dinamarca desvia-se novamente para a esquerda, ao fim de uma década de oposição. Será um ponto de viragem na Europa?
"Conseguimos. Fizemos História", congratulou-se a candidata social-democrata depois de se saber que o seu bloco tinha conseguido 50,3% dos votos, contra 48,9% da direita. Uma parte significativa da imprensa internacional destacava ontem o facto de a Dinamarca ter acabado de eleger a primeira mulher a chefiar o executivo. Mas existem outros aspectos a assinalar nas eleições de quinta-feira.
Os Governos de centro-direita - o último liderado por Lars Lokke Rasmussen - têm contado com o apoio do Partido Popular Dinamarquês (DF), populista. Foi por causa do DF que a Dinamarca desenvolveu uma das políticas de imigração mais restritivas da Europa, e que anunciou a reintrodução dos controlos fronteiriços com a Alemanha e a Suécia (Thorning-Schmidt apoia-os, ao contrário dos seus parceiros, mas não irá aumentá-los). Com 12,3% dos votos, os populistas tiveram o seu primeiro retrocesso em décadas. O DT deixa agora de ser o partido de extrema-direita mais popular da UE. Não é impossível que a carnificina provocada em finais de Julho pelo terrorista de extrema-direita Anders Breivik, na vizinha Noruega, tenha tido algum impacto na votação.
Economia determinante
Thorning-Schmidt defende, pelo contrário, mais cooperação com Bruxelas, sobretudo em matérias de justiça e defesa (em política de imigração está próxima dos seus antecessores). Mas foram as suas posições económicas que a terão levado à vitória - três quartos dos dinamarqueses fizeram da economia a questão central das legislativas.O país tem assistido à pior recessão desde a II Guerra Mundial e tornou-se na economia mais lenta da Escandinávia (ainda assim, com um dos níveis de vida mais altos do mundo). O défice atinge os 4,6% do PIB. O desemprego juvenil chega aos 10%. Os bancos têm tido dificuldades em sobreviver, com nove instituições tomadas pelo Estado desde 2008.
Ainda na campanha disse que agora os bancos terão de "compensar a sociedade", uma frase que, salientava uma análise do Financial Times, terá "implicações financeiras desconhecidas". Estão previstos aumentos de impostos neste sector, tal como para as maiores fortunas. No mesmo texto, avisava-se: "Mais pressão sobre os bancos do país poderá prejudicar a frágil economia dinamarquesa".
Susi Dennison, investigadora do European Council on Foreign Relations, salienta ao PÚBLICO, numa entrevista por email, que o que esteve em causa não terá sido tanto "uma mudança da direita para a esquerda", mas o "reflexo da economia como preocupação prioritária". "Os eleitores acharam que os sociais-democratas terão mais possibilidades de conseguir fazer crescer a economia do que o centro-direita, que dominou o Governo na última década".
Mas não é só. Dennison considera também que "o que estas eleições têm de contracorrente é o facto de o partido eleito estar mais interessado na cooperação económica com a UE do que alguma vez aconteceu na Dinamarca. Isto vai contra a onda crescente de nacionalismo na política por toda a Europa".
Em Março deste ano, o ex-ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, o trabalhista David Miliband, deu uma conferência na London School of Economics (LSE, em Londres) onde apontava para os desaires dos partidos da esquerda europeia nos últimos anos. Legislativas britânicas de 2010: segundo pior resultado desde 1918; Suécia, 2010: pior resultado desde 1911; Alemanha, 2009: pior resultado desde a criação da República Federal; França, 2007: pior resultado desde 1969; Holanda, 2009: a esquerda passou traumaticamente de parceiro da coligação para a oposição. Podemos juntar o Partido Socialista português, que teve nas legislativas deste ano a sua pior votação desde 1987. Seria necessário recuar à I Guerra Mundial para ver um domínio assim da direita na Europa. "Toda a era do sufrágio democrático", conclui Miliband. Há apenas 12 anos, 13 dos 15 Governos da União Europeia eram de centro-esquerda.
O nacionalismo e o populismo continuam a crescer e em muitas capitais penetraram na política tradicional, em vez de se manterem nas margens, refere Susi Dennison. Mas é possível que a crise acabe por trazer mudanças, como aconteceu na Dinamarca - "a economia é um factor crítico", diz a investigadora.
"Nos rescaldos das crises económicas, alguns Governos na Europa mudam de mãos, já que o Governo que estava no poder durante a queda é tido como responsável", continua. "Assistimos a este fenómeno no Reino Unido em 2010 e é provável que o vejamos em Espanha nos próximos meses. A capacidade da esquerda se posicionar como economicamente responsável provavelmente contará mais do que o crescimento da Europa social que alguns previram na sequência da crise financeira".