Há uma nuvem negra sobre o Norte de Mitrovica
a Atravessando a ponte sobre o rio Ibar, que separa o Norte do Sul da cidade de Mitrovica, no Kosovo, parece que se entra num mundo diferente. Não é por causa da paisagem desta antiga cidade mineira, onde predomina o cinzento. Mas no Norte da cidade, onde fica o maior enclave de população de origem sérvia do Kosovo, parecia pairar ontem uma nuvem que enegrecia o espírito das pessoas, enquanto no Sul, onde vive a população de etnia albanesa, sentia-se electricidade no ar, uma alegria que explodia nas montras das lojas decoradas a vermelho e negro, com a bandeira da águia bicéfala albanesa em todo o lado.A ponte é um território de ninguém, com arame farpado e grades em alguns pontos. Tem duas vias para carros e passeios laterais para os peões, mas só a atravessavam jornalistas estrangeiros, curiosos sobre este ponto quente dos Balcãs, onde as fúrias e ressentimentos que levaram ao desmembramento da Jugoslávia ainda são mais do que um fantasma etéreo. Há regras a cumprir para atravessar esta fronteira guardada por tropas da NATO, que praticamente só é atravessada por jipes militares e carros brancos com as letras "UN" a azul, anunciando a pertença às Nações Unidas: "Comportamentos maliciosos ou provocadores serão reprimidos imediatamente", avisa um placard do lado albanês.
Ao fim da manhã, os sérvios do Norte da cidado manifestaram-se em protesto contra a declaração de independência feita no domigo pelo Governo kosovar em Pristina, em nome da população de origem albanesa. "Não acreditamos nisso da independência. O Kosovo é o coração da Sérvia", explicam Marija, de 18 anos, e Jelena, de 19, adolescentes de cabelos e roupas escuras, vestidas para arrasar como em qualquer outra cidade europeia. Estiveram na manifestação, sentem-se "tristes e desapontadas", explica Jelena, que é estudante de Biologia. Mas não esperam que vá haver violência: "Não, isto vai ser contestado mas com negociações", diz Marija, que estuda Psicologia.
As montras e os nomes das lojas ostentam nomes escritos em cirílico - nada do alfabeto latino usado pelos albaneses. Há cartazes do nacionalista Tomislav Nikolic, derrotado na segunda volta das eleições presidenciais sérvias pelo mais europeísta Boris Tadic, que acabou por vencer a votação. Prova inequívoca de que ali olham para Belgrado e não para Pristina, 75 por cento população do Norte de Mitrovica preferiu Nikolic. Nas muitas barraquinhas montadas nos passeios, as revistas e jornais são sérvias, não albanesas.
Mas, apesar da indignação dos sérvios do Kosovo, à tarde ninguém tinha grande vontade de falar sobre o assunto com os jornalistas que os abordavam perguntando se falavam inglês. Uns mais delicados, outros mais bruscos, a poucos apetecia falar sobre o acto da maioria albanesa do Kosovo.
"Não temos protecção, ninguém nos perguntou, às pessoas normais, o que queríamos fazer. Os albaneses não ligam a ninguém, só a eles. Definitivamente, são malucos", diz um homem jovem, com um barrete de lã bem enfiado na cabeça. "No tempo dos turcos, há mais de 600 anos, os albaneses eram criados, trabalhavam para os outros." É guarda prisional, explica, mas não quer dizer o nome. "Não gosto disso, que digam o meu nome lá na rádio e na televisão." O amigo, que também é guarda prisional e se manteve só a falar sérvio, responde por ele: "Vladimir Ivanovich." "É um nome falso, percebe?", atira ainda o guarda mais ou menos falador, antes de partir com os amigos, que entrentanto chegaram.
Sente-se um ambiente carregado nesta parte da cidade. Não há música nas ruas, como na zona Sul, e muito menos música com um travo oriental, tipo pop turca, como na parte albanesa da cidade. As pessoas parecem amarguradas.
"Sim, as pessoas estão amargas, e zangadas", confirma o presidente da Câmara de Mitrovica, o cirurgião Bajram Rexhepi. É albanês, tomou posição pela sua etnia na guerra, apoiou activamente o Exército de Libertação Albanês (um grupo de luta pela independência da qual o actual primeiro-ministro, Hashim Thaçi, foi comandante) e hoje é persona non grata no lado Norte da cidade, onde não é ele a autoridade máxima municipal. "O que o plano Ahtisari prevê é a constituição de duas municipalidades, eventualmente com um órgão coordenador para questões como a distribuição de água e electricidade", explica.
E porque estão os sérvios da cidade tão zangados? "Foram manipulados pelos nacionalistas de Belgrado, que espalham a desinformação, que lhes criaram expectativas irrealistas de serem integrados na Sérvia. As pessoas estão confusas, culpam toda a gente", explica Rexhepi. Há ainda muito caminho a percorrer para que um dia possa atravessar a ponte e conversar com os líderes da comunidade sérvia. Hoje não o pode fazer facilmente. "As pessoas de lá encarariam a minha visita como uma provocação."