O jogo de futebol que enganou a censura
Um jogo de futebol entre o Sporting e o Porto foi tudo o que o jornalista Eugénio Alves precisou para iludir a censura e publicar no diário "República", faz hoje 30 anos, uma notícia sobre o falhanço do golpe dos militares das Caldas da Rainha que dois dias antes, a 16 de Março de 1974, marcharam sobre Lisboa para tentar mudar o regime. A ousadia só não lhe terá trazido dissabores porque tanto o francês "Le Monde" como a inglesa BBC ampliaram lá fora o feito do jovem repórter. Além disso, a censura não teve muito mais tempo de vida. Estava-se a menos de 40 dias do 25 de Abril (ver PÚBLICO de terça-feira). A partir da vitória do Sporting sobre o Porto, por 2-0, Eugénio Alves teve a ideia de escrever uma notícia - ou o início de uma notícia - onde o clube do Norte, derrotado, simbolizava os militares detidos do Regimento das Caldas da Rainha, e a equipa de Alvalade as forças leais ao presidente do Conselho, Marcello Caetano. O "truque" estava logo na entrada ("lead") do artigo. Sob o título "Quem travará os "leões?", o jornalista aproveitava a deslocação da equipa do Porto à capital para contar aos seus leitores, nas primeiras nove linhas da notícia, que os homens do Norte, que nesse fim-de-semana tinham marchado sobre Lisboa, acabaram por "retirar, desiludidos pela derrota" (ver reprodução). O resto do artigo era o relato do jogo da véspera em Alvalade.Passados 30 anos sobre a publicação, Eugénio Alves, hoje jornalista na RDP, contou ao PÚBLICO como lhe surgiu a ideia de iludir os censores. Recordou que o "República" tinha em 1974 uma equipa de jovens jornalistas, de formação universitária, na casa dos 20 anos - o próprio Eugénio Alves tinha 28 -, proveniente do "Diário de Lisboa" pela mão de Vítor Direito, da qual faziam parte profissionais como Fernando Assis Pacheco, Afonso Praça, José Jorge Letria, entre outros. Eugénio Alves era o responsável pela secção de Desporto mas, como se viu, naquele tempo nem o futebol era uma matéria inocente. "Éramos todos progressistas e não simpatizávamos com a ditadura. Quase concorríamos entre nós para enganar a censura", contou. Eugénio Alves tinha tido por mais de uma vez problemas com a censura, designadamente em Abril de 1973 quando publicou, ainda no "Diário de Lisboa", um "inocente" artigo sobre as características dos "gorilas" - nome por que eram conhecidos os vigilantes destacados pelo regime para manter debaixo de olho as universidades portuguesas. Mensagem aos revoltososPor altura do golpe das Caldas, a redacção do "República", dirigida pelo socialista Raul Rêgo, era frequentada por figuras como Melo Antunes e Almada Contreras, representante da Armada no Movimento dos Capitães. "Soubemos do 25 de Abril com um antecedência de 24 horas. Nós, a Rádio Renascença e pouco mais", conta Eugénio Alves. Em sua opinião, o golpe, apesar de falhado, "foi importante porque mostrou a fragilidade do regime. Não deu certo porque foi uma coisa precipitada, pouco planeada". Essa ideia corresponde ao que escreve na "entrada" da notícia que publicou dois dias depois do falhanço. Ao recordar que "o adversário da capital [estava] mais bem organizado e apetrechado", Eugénio Alves acabou por enviar uma espécie de mensagem de esperança aos militares revoltosos escrevendo: "Perdeu-se uma batalha mas não se perdeu a guerra". A troca dos "leads" foi "uma iniciativa minha", recorda. "Tive a ideia durante o jogo em Alvalade. O Marcello Caetano estava lá, foi apupado e aplaudido ao mesmo tempo. Isso fez-me avançar", afirmou o jornalista. "Receei a reacção do Vítor Direito [chefe de redacção] porque a censura andava muito em cima do 'República'." Como era editor de Desporto, sentiu-se com capacidade para arriscar. "Só o montador [da tipografia] é que estava avisado. Tinha-lhe dado outro "lead", com rigorosamente o mesmo número de caracteres, para que ele pudesse fazer a substituição caso a coisa corresse mal". Mas não correu mal e a censura não deu por nada até ao dia seguinte, quando o jornal estava já na rua."A notícia teve impacto porque a 18 de Março estavam já em Portugal vários correspondentes da imprensa estrangeira". O enviado do "Le Monde" começou um dos seus artigos sobre o golpe das Caldas contando como o jornalista do "República" tinha iludido a censura. Até então, a imprensa portuguesa apenas tinha noticiado o que o regime quis que se soubesse - "que tinha havido uma vaga tentativa de rebelião mas que a ordem tinha sido prontamente reposta", recorda. No "República", no dia seguinte, "até o Vítor Direito reagiu bem". Nem polícia política nem ninguém do regime incomodou o jornalista. Em contrapartida, "a censura [sobre o jornal] apertou ainda mais". "Pedia as 'provas' das páginas, depois atrasava o visto." Os poucos dias que se seguiram, até ao 25 de Abril, foram ainda mais difíceis para o "República".