Um terço das freguesias de Lisboa não cumpre o Código dos Contratos Públicos
Até ao Natal eram oito as freguesias que não tinham um único contrato publicado no Portal Base. A análise deste portal permite perceber, embora não mostre toda a realidade, que muitos autarcas continuam a recrutar assessores nas fileiras dos seus partidos. A freguesia das Avenidas Novas é a campeã.
A publicitação naquele portal (base.gov.pt) de todos os contratos de valor superior a cinco mil euros, sejam eles de prestação de serviços, de empreitadas, ou de aquisição de bens e serviços, é obrigatória desde 2008. Sem ela, os contratos não tem eficácia nem pode ser legalmente feito qualquer pagamento relativo a eles.
Um ano depois da posse dos actuais autarcas, em Outubro passado, o número de freguesias incumpridoras era ainda mais elevado, mas algumas delas começaram a cumprir a lei depois de a situação ser referida nas redes sociais e no site do Observatório da Má Despesa Pública. No final de Novembro eram nove as autarquias da capital em falta, tendo então a nova freguesia de Arroios publicado o seu primeiro contrato.
Dias antes do Natal, foi a vez de a freguesia do Parque das Nações, também criada em Outubro de 2013, começar a respeitar o artigo 127º do Código dos Contratos Públicos. Na quinta-feira passada eram sete — Ajuda, Belém, Carnide, Estrela, Lumiar. Santa Clara, e Santo António — as freguesias que tinham o contador dos contratos deste mandato a zero. A do Lumiar, todavia, inseriu no portal os seus primeiros quatro nesta sexta-feira, horas depois de o PÚBLICO ter falado sobre o assunto com o seu presidente, Pedro Delgado Alves (PS), um professor de direito e antigo director-adjunto do Centro Jurídico da Presidência do Conselho de Ministros. Já a Freguesia do Beato (PS), que nada publicava desde Maio do ano passado carregou na sexta-feira e no sábado um total de 24 contratos. O mesmo sucedeu com a da Penha de França (PS), que estava a zero desde Outubro e publicou oito neste sábado.
Avenidas Novas é campeã em Boys
A análise do Portal dos Contratos Públicos permite também confirmar que a criação de 13 novas freguesias no concelho de Lisboa, em consequência da reforma administrativa da cidade, constituiu uma oportunidade para que fossem distribuídas algumas dezenas de avenças a outros tantos correlegionários políticos, amigos e familiares dos novos autarcas.
O número dessas contratações é impossível de determinar com rigor, em parte porque muitas delas não estão publicadas naquele portal, ao contrário do que a lei exige. Mas os dados que aí estão disponíveis permitem identificar pelos menos 19 situações desse tipo em seis das novas freguesias. Em três outras não foi localizado nenhum caso e nas quatro restantes, passados 15 meses sobre a posse dos respectivos executivos, constata-se que ainda não foi publicitado qualquer contrato.
Entre as seis novas freguesias em que é possível identificar as ligações dos prestadores e fornecedores de serviços às maiorias políticas em funções — apenas com recurso ao google e ao Portal da Justiça, onde são obrigatoriamente registadas as sociedades comerciais — o primeiro lugar é ocupado, de longe, pelas Avenidas Novas.
No total, Daniel Gonçalves, o social-democrata que foi eleito como primeiro presidente desta freguesia, já empregou pelo menos 10 pessoas ligadas à máquina autárquica do PSD de Lisboa. Esta autarquia é no entanto uma das que mais contratos tornou públicos e das que mais cedo começou a cumprir essa obrigação legal.
A seguir às Avenidas Novas, as freguesias criadas em 2013 que têm boys facilmente identificáveis, entre as nove que já estão a divulgar os contratos, são a Misericórdia (3), Arroios (2), Santa Maria Maior (2), Alvalade (1) e Areeiro (1). Sem nenhum caso detectável por esta via estão Campo de Ourique, cujo presidente já estava em funções numa das freguesias que deu origem à actual; Parque das Nações, que é liderada por um movimento não partidário, e São Vicente.
Entre os contratados para as Avenidas Novas, como assessores e consultores, encontram-se vários candidatos pelo PSD à Assembleia Municipal de Lisboa e a diferentes freguesias da cidade em 2013, uns que foram eleitos e outros não. São eles Pedro Reis, um psicólogo que no mandato anterior estava ligado à Junta de São Domingos de Benfica, então presidida por Rodrigo Gonçalves, filho do presidente das Avenidas Novas; Rui Gama Cordeiro, que presta serviço na Câmara de Cascais; Miguel Fachada João; Patrícia Barata; José Rainha Mendes; Tânia Marinho, Paulo Serrão, um advogado que já era avençado da junta de São Domingos de Benfica no anterior mandato.
Na lista dos avençados das Avenidas Novas está também Ismael Ferreira, um conhecido dirigente do PSD de Lisboa e José Cal Gonçalves, candidato na lista de Fernando Seara à Câmara de Lisboa em 2013 e secretário da Comissão Política do PSD de Lisboa, a que também pertence Daniel Gonçalves e o filho. Cal Gonçalves não foi contratado directamente, mas através de uma empresa de consultoria sua, a Heidelconsult, que recebe dois mil euros por mês mais IVA (como em todos os valores aqui referidos).
Uma outra consultora contratada por dois mil euros mensais, a CSDO, é propriedade de Saúl Oliveira, o anterior presidente do Montepio Comercial e Industrial — associação mutualista da qual Daniel Gonçalves foi também gestor. A CSDO tinha celebrado igualmente um contrato com a Junta de São Domingos de Benfica no Verão de 2013, dias antes do filho de Daniel Gonçalves deixar a presidência dessa autarquia, a pouco mais de um mês das eleições em que o PSD a perdeu para o PS.
Quem também se transferiu de São Domingos para as Avenidas Novas foi a Guia d’Escolhas, uma sociedade unipessoal que trabalha na área da psicologia e que tinha sido contratada por Rodrigo Gonçalves no mesmo dia em que este contratara a CSDO. Em Janeiro de 2014 assinou um contrato de 72 mil euros com Daniel Gonçalves e uma semana depois foi a vez de o marido da
proprietária da Guia d’Escolhas, Marques de Melo, ser contratado para as Avenidas Novas, por 59.400 euros, como coordenador de projectos da área social.
Misericórdia e Arroios vêm a seguir
No caso da Misericórdia, a socialista Carla Madeira atribuiu uma avença mensal de 1300 euros a Nuno Dias, um colega de partido que é vogal da Junta de Freguesia de Bobadela. Igualmente contratada como assessora — por mil euros mensais e, como sempre acontece nestes casos, sem horário de trabalho e sem dependência hierárquica e disciplinar — foi Eunice Gonçalves, eleita no actual mandato, na lista do PS, para a Assembleia da freguesia que a contratou.
Um outro socialista que passou a trabalhar para a freguesia da Misericórdia, com 3.350 euros por mês, foi o advogado Luis Grave, que integrou as lista para a Assembleia de Freguesia de Santo António de Cavaleiros em 2013. O contrato foi feito com a empresa Sportix, de que é proprietário e que apenas tem mais três contratos com entidades públicas: um com a junta de Santa Maior (PS) e dois com a Gebalis, uma empresa da câmara de Lisboa.
No caso da nova freguesia de Arroios um dos seus avençados é Gonçalo Lobo, um psicólogo que ocupou o lugar de Margarida Martins na presidência da associação Abraço, precisamente quando esta foi eleita presidente da junta, à frente da lista do PS. Gonçalo Lobo é agora seu assessor para a área social e recebe 700 euros mensais. Outro avençado é João Valente Pires, um funcionário da Câmara de Lisboa, a tempo inteiro, que é casado com a socialista que preside à assembleia da mesma freguesia de Arroios e recebe mil euros por mês como consultor da freguesia.
Descendo para a Baixa, a nova freguesia de Santa Maria Maior, dirigida pelo socialista Miguel Coelho, contratou como assessor (2.400 euros mensais) Luis Rios Coelho, antigo deputado municipal e assessor do PS na Assembleia Muncipal de Lisboa. Para a mesma autarquia foi igualmente contratada a Sportix, de Luis Grave.
Na parte alta da cidade, em Alvalade, também de maioria PS, foi escolido António Beja Pereira para assessor político do presidente André Caldas, por 2.075 euros mensais. António Beja Pereira foi candidato pelo PS à Freguesia das Avenidas Novas nas últimas eleições. Logo ao lado, no Areeiro, Fernando Braancamp (PSD) atribuiu uma avença mensal de 1600 euros a Diogo da Silva Cunha. Este advogado social-democrata foi presidente da assembleia da antiga freguesia do Alto do Pina, quando Braancamp presida à respectiva junta.
Publicação não é fiscalizada
O recrutamento de assessores e consultores nas fileiras dos partidos de quem governa não é, porém, um exclusivo das novas freguesias de Lisboa. A situação, que é comum a muitas outras entidades públicas, poderá ser até mais grave nas freguesia de Lisboa que não foram atingidas directamente pela reforma administrativa. Mas aí trata-se, normalmente, de situações consolidadas e de mais difícil detecção.
No entanto e apenas a título de exemplo refiram-se, já no presente mandato, dois casos. No Beato, o contemplado pelo socialista Hugo Xambre foi Joel Galvão, que passou a acumular 1300 euros por mês com os 2 mil que já recebia como assessor do PS na Assembleia Municipal de Lisboa. Em São Domingos de Benfica, o também socialista José Cardoso contratou como consultor o arquitecto Rui Filipe Carvalho, deputado do seu partido na Assembleia de Freguesia de Carnide. O contrato foi feito através da empresa Metrikstage e tem um contrapartida mensal de 2.500 euros.
Em todos os contratos publicitados pelas juntas de Lisboa, a regra é o ajuste directo, contando-se pelos dedos de uma mão os casos de concurso público. Além disso, nestes ajustes directos, mesmo quando se trata da adjudicação de obras, nunca é convidada mais do que uma empresa, ao contrário do que, embora não sendo obrigatório, é habitualmente recomendado na administração pública.
Por outro lado, as regras de publicitação seguidas por estas autarquias, mas também por muitas outras entidades, estão quase sempre longe de cumprir todas as normas do Código dos Contratos Públicos. Cada qual preenche a ficha do portal da forma que entende e anexa os documentos que quer. Sem qualquer espécie de monitorização oficial do cumprimento da lei.
Algumas entidades, fazem uma descrição detalhada do fundamento do recurso ao ajuste directo e do objecto do contrato, enquanto que outras se ficam por formulações vagas e sempre iguais. O mesmo sucede com os preços a pagar, uma vez que umas inscrevem os preços mensais, outras os preços relativos ao ano do contrato e outras os que são estimados para todo o prazo contratual.
Um outro aspecto que não ajuda à transparência da forma como são geridos os dinheiros públicos prende-se com o facto de algumas entidades anexarem sempre as cópias integrais dos contratos que estão em causa, enquanto que outras nunca o fazem, ou se limitam a juntar notificações e até simples emails em que são comunicadas as decisões de adjudicação. Em todo caso, os erros sistemáticos que se encontravam no Portal Base nos seus primeiros anos de funcionamento parecem agora ultrapassados.
As justificações dos presidentes de junta
“Esta autarquia rege-se apenas e só pelo cumprimento da lei, desconhecendo a existência de critérios de exclusão baseados em filiações partidárias, clubísticas, de credo religioso, raça ou outros, que iriam contra o estatuído na Constituição, que defende o princípio da não discriminação.” Esta foi a resposta dada ao PÚBLICO pelo autarca das Avenidas Novas, Daniel Gonçalves (PSD), a várias perguntas relacionadas com a contratação de uma dezena de pessoas do PSD como assessores.
Daniel Gonçalves, que está acusado de corrupção passiva pelo Ministério Público desde o Verão passado — num caso que envolve também o seu filho Rodrigo Gonçalves — nada mais disse, nomeadamente sobre o facto de alguns fornecedores e prestadores de serviços da junta de São Domingos, que era presidida pelo filho, terem transitado para as Avenidas Novas.
Mais detalhada foi Margarida Martins, a autarca de Arroios, que justificou essencialmente com as necessidades da autarquia e com as respectivas competências e currículos profissionais as avenças atribuídas a Gonçalo Lobo — o psicólogo que a substituiu em Setembro na presidência da Abraço —, e a João Valente Pires, um técnico da Câmara de Lisboa que é casado com a presidente da Assembleia de Freguesia de Arroios.
“O dr. Gonçalo Lobo não pode ser prejudicado na gestão da sua carreira profissional por exercer um cargo numa associação que fundei”, acrescentou. No que respeita a João Pires, garantiu que a acumulação de funções deste, na junta e na câmara, é “legalmente permitida” e que o convite que lhe foi dirigido “não está relacionado com as suas relações familiares”.
Quanto ao incumprimento da obrigação de publicar todos os contratos de mais de cinco mil euros, o autarca do Lumiar, Pedro Delgado Alves (PS), que é professor da Faculdade de Direito de Lisboa e deputado na Assembleia da República, atribuiu esse facto a dificuldades de natureza informática e outras, relacionadas com a falta de pessoal e as transferência de competências da município para as freguesias.
Estas últimas explicações, acrescidas da necessidade de organizar os serviços quase a partir do zero, foram também dadas por Vasco Morgado e Fernando Rosa, ambos do PSD, para justificar o facto de não terem ainda publicado quaisquer contratos na suas novas freguesias (Santo António e Belém, respectivamente).
Razões diferentes adiantaram José Videira (PS), autarca da Ajuda, e Fábio de Sousa (CDU), de Carnide. Ambos dizem que têm muito pouca coisa para publicar porque não tem assessores avençados e porque a maior parte dos contratos que tem são de muito baixo valor. Em todo o caso, tal como os restantes autarcas ouvidos, garantem que vão regularizar a situação muito rapidamente.