Querubim Lapa, uma obra pelas ruas da cidade

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Querubim Lapa atravessa o hall do Hotel Ritz em passos pequenos. Há dez anos que não entrava aqui, conta-nos. Combinámos este encontro para que o mestre ceramista, actualmente com 88 anos, nos falasse da coluna decorada com painéis de cerâmica que fez há precisamente 55 anos, quando Lisboa ganhou o seu mais luxuoso hotel, um pouco acima da Rotunda.

Olha em redor para as tapeçarias de Almada Negreiros que decoram as paredes do salão onde nos encontramos (conhecido precisamente como Salão Almada Negreiros) e recorda como nesses tempos os artistas se cruzavam pelos espaços de um Ritz ainda em obras — projecto inicial do arquitecto Porfírio Pardal Monteiro — e que, mais do que um hotel, parecia um museu com tanta e tão variada arte nas suas paredes.

Querubim Lapa recebeu a incumbência de “disfarçar”, como ele próprio diz, uma coluna no final da escadaria que conduz à entrada principal do Salão Nobre. Descemos essa magnífica escadaria, uma elegante curva suspensa no ar, que nos transporta primeiro junto a uma enorme janela e depois ao longo da parede dourada com juncos incrustados, um trabalho de Pedro Leitão e António Louro de Almeida.

Degrau após degrau, o artista aproxima-se da sua coluna, contorna-a, observa-a, toca-lhe. Diz que nunca se esquece de nenhuma das suas obras mesmo que não as veja durante muito tempo. Na sua memória elas estão vivíssimas, ainda que outros pormenores das histórias ligadas ao aparecimento do Ritz em Lisboa só voltem à medida que conversamos.

A história do Ritz fica para outra reportagem que em breve há-de aparecer neste jornal. Esta crónica é sobre Querubim Lapa e sobre como um artista se relaciona com uma obra que está espalhada pela cidade. Se a coluna do Ritz aqui está, cuidada e preservada, o mestre sabe que isso está longe de garantido com outras peças suas. E é assim que começamos a falar da Casa da Sorte, numa esquina do Chiado, entre a Rua Garrett e a Rua Ivens — a propósito da triste notícia de que se encontra encerrada.

Por acaso, antes de sair da redacção, tinha recebido um email do Fórum Cidadania Lx chamando a atenção da Câmara Municipal para os riscos “da enorme perda patrimonial para a cidade de Lisboa que representará um eventual roubo/mutilação/remoção dos azulejos de Mestre Querubim Lapa”, e alertando para “o facto de as letras em latão terem sido já arrancadas, no interior e exterior do espaço”.

“Confirma-se, então? Quando me disseram isso, fiquei aterrorizado”, confessa Querubim Lapa. “A Casa da Sorte é toda em cerâmica, no exterior e no interior, e o meu receio é que venha a suceder o mesmo que na Loja das Meias, onde destruíram a cerâmica e nem tiveram o cuidado de tirar as peças para as oferecer ao Museu da Cidade.”

Recorda que a Casa da Sorte “antigamente era uma tabacaria, onde o Eça ia comprar os seus charutos”. Depois, o espaço transformou-se, no início dos anos 1960, com o projecto do arquitecto Conceição Silva, que convidou o ceramista para ali fazer uma profunda intervenção.

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No início dos anos 1960, o arquitecto Conceição Silva fez o projecto de remodelação da Casa da Sorte e convidou o ceramista para uma intervenção

Os pormenores sobre a obra, vou encontrá-los num texto de Luís Maio na Fugas. “É uma das intervenções esteticamente mais arrojadas alguma vez impressa num edifício pombalino”, escreve Luís Maio, sublinhando que “desta vez a arte não se submeteu à arquitectura mas aconteceu o inverso”. Conta depois que Querubim perguntou na Fábrica Viúva Lamego quais as medidas máximas que as placas cerâmicas podiam ter e criou o seu trabalho a partir dessa medida, evitando assim que houvesse cortes nas placas.

No exterior, em azul e branco — num contraste absoluto com a “explosão psicadélica avant la lettre”, nas palavras de Maio, que encontramos no interior —, o ceramista criou um desenho a partir de números, um tema que se adaptava bem à Casa da Sorte, mas que, diz-nos agora Querubim, “serve para qualquer outro tipo de estabelecimento”.

A indefinição sobre o futuro do local preocupa profundamente o mestre. “O meu trabalho ali é total, estou com muito receio. Ao tirar as placas, se é que vamos chegar a esse ponto, é preciso que elas não se partam, porque é um material com fragilidade. Mas esse é o último recurso, nem quero pensar que vamos chegar aí.”

Com a mão encostada à sua coluna no Ritz, o pensamento de Querubim Lapa está agora nessa esquina do Chiado. Pode não ver as suas obras durante anos, mas na sua cabeça elas estão tão vivas como no dia em que as executou. E a perspectiva de a cidade perder uma delas dói-lhe profundamente. Aconteceu na Loja das Meias e, escreve ainda Luís Maio, por essa perda, “Lisboa deveria vestir-se de luto”.     

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