Projecto de empreendedorismo custou um milhão e não gerou qualquer emprego

Juntar jovens e seniores em projectos de criação de microempresas não resultou. Dos 200 participantes numa iniciativa da Misericórdia de Lisboa com esse objectivo, só 40 chegaram ao fim. Empresas e empregos criados ainda não há. Críticas são muitas. Mas também há quem elogie a ideia.

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A ideia era sedutora para muitos desempregados e jovens à procura do primeiro emprego. A Comissão Europeia apostou nela e apoiou-a com 850 mil euros — 80% do custo do projecto apresentado pela Misericórdia de Lisboa. Duzentas pessoas sem emprego receberiam formação, durante um ano, para criarem as suas empresas. Tratava-se de um projecto inovador e experimental, que pretendia juntar jovens até aos 30 anos e seniores entre os 50 e os 65. Três meses depois do fim da formação nenhuma empresa foi criada e a frustração é o sentimento dominante entre os quarenta participantes que chegaram ao fim. 

Denominado United At Work (UAW), o projecto foi lançado em 2013 pelo Departamento de Empreendedorismo e Economia Social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). O objectivo consistia em dar corpo a uma iniciativa de “empreendedorismo intergeracional”, destinada a “testar a validade de uma eventual política pública que promova a criação de empresas constituídas entre jovens e seniores qualificados e desempregados”. 

Foi essa proposta que foi acolhida pela Comissão Europeia e que obteve um financiamento a fundo perdido de 850 mil euros, no âmbito do Progress — Programa Europeu para o Emprego e Solidariedade Social. Anunciando parcerias com numerosas entidades, entre as quais a Câmara de Lisboa, a Fundação Gulbenkian e o Instituto de Emprego e Formação Profissional, e contando com a colaboração da associação Beta - I, reconhecida pelas suas competências na área da promoção do empreendedorismo, a Misericórdia recebeu para cima de 1600 candidaturas ao projecto no início de 2014. 

Grande parte dos candidatos eram licenciados nas mais diversas áreas, incluindo engenharia, arquitectura, informática, sendo que muitos dos desempregados já tinham perdido o direito ao subsídio de desemprego. À partida não lhes foi prometida qualquer bolsa de formação ou apoio para o lançamento das empresas que pudessem vir a constituir. Muitos deles, porém, atendendo à natureza das entidades envolvidas e à contribuição dos fundos europeus, convenceu-se de esse tipo de apoios acabaria por vir. 

Seleccionados apenas com base nos respectivos elementos curriculares, os 200 escolhidos, 100 jovens e 100 seniores, iniciaram a formação em Maio do ano passado. Parte deles saiu logo na primeira semana, depois de perceberem que não haveria qualquer espécie de bolsa ou participação nas despesas. Para os lugares vagos entraram novos elementos repescados na lista inicial de candidatos. 

Os trabalhos começaram com a criação de várias dezenas de equipas intergeracionais e a escolha do projecto que queriam desenvolver. A certa altura, relataram ao PÚBLICO alguns dos formandos, os responsáveis da SCML começaram a contribuir para a expectativa que segurou parte dos que pensavam sair. A ideia, afirmam, era que poderiam vir a surgir apoios de um fundo a criar pelo Banco de Inovação Social [outra iniciativa da SCML], ou então que os ajudariam a encontrar investidores interessados nos seus projectos. 

Mesmo assim, em Setembro, no arranque da segunda fase, verificou-se a debandada de muitos dos inscritos, sobretudo jovens. Foi também no fim desse Verão que a SCML decidiu afastar a directora do seu Departamento de Empreendedorismo, Maria do Carmo Marques Pinto — contra quem apresentou uma queixa-crime à PGR em Setembro deste ano — e que foi quem desenvolveu a filosofia do UAW e criou o Banco de Inovação Social. 

“Fomos um estorvo” 
Nessa altura, as condições de trabalho e o apoio logístico dado aos participantes no Convento de São Pedro de Alcântara, em Lisboa, onde a formação decorria a tempo inteiro, já tinham levado muitos deles ao desencanto. “Nunca houve telefones para as equipas, durante meses não tivemos internet, havia um computador para 200 pessoas e cada equipa tinha direito a 15 fotocópias por semana. Deram-nos lápis, mas não nos deram afias, o frio era tal que tínhamos de estar de luvas no Inverno” — sintetiza um dos oito finalistas do projecto ouvidos pelo PÚBLICO, todos eles pertencentes a equipas diferentes. Tal como os outros três colegas que mais severos se mostram na apreciação do trabalho da SCML, salvaguardando porém a qualidade de muitos dos formadores, pede para não ser identificado. "A Santa Casa é poderosíssima", justifica.

“Só muito depois é que lá puseram uns aquecedores e instalaram o wifi. E como viam que estavam a ficar quase sem ninguém passaram a dar o almoço a alguns e a carregar umas viagens no cartão Lisboa Viva”, conta outro. 

Depois do início da segunda fase, muitas equipas passaram a contar só com seniores, outras só com jovens, e muitas tornaram-se unipessoais. “Se as regras definidas fossem cumpridas, o projecto tinha caído logo”, assegura um terceiro. 

“Nunca fomos o objectivo deles, trataram-nos como crianças e como um estorvo. Justificam-se com a ideia de que era uma coisa experimental, mas experimental não é sinónimo de amadorismo e oportunismo. Foi tudo montado por burocratas sem contacto com a realidade, desde a Comissão Europeia à Misericórdia”, acusa outro dos que não querem o nome no jornal. 

De acordo com os números constantes do site do UAW, chegaram ao fim, em meados de Julho, 40 dos 200 participantes. Das dezenas de equipas intergeracionais constituídas, concluíram o projecto três. Para além destas, foram finalistas oito outras formadas apenas por seniores (com dois a cinco elementos cada) e oito unipessoais (quatro de jovens e quatro de seniores). 

“Ficámos estarrecidos” 
Os 19 projectos finalistas foram apresentados numa cerimónia realizada a 30 de Junho, em Lisboa, mas também aí as expectativas de muitos saíram frustradas. “Esperávamos potenciais interessados em investir connosco, mas nem o Santana Lopes [provedor da SCML], cuja presença estava no programa, lá apareceu. Além de nós e dos responsáveis do UAW só lá havia funcionários da Santa Casa. A única coisa que funcionou foi o cocktail, que foi bom e bonito”, descreve uma das formandas que também pede para não ser identificada. 

“No final levaram-nos para uma sala no andar de baixo para falarmos com umas pessoas e pensámos que finalmente íamos falar com os tais investidores. Afinal era um antigo jogador de futebol e gente da Fundação Benfica que nos queriam desejar felicidades. Ficámos sentados, estarrecidos, de boca aberta a olhar para eles. Sentimo-nos defraudados”, conta. 

Em desacordo absoluto com esta leitura, Aida Manata, uma dos quatro participantes que aceitou ser identificada, considera que a acção, no seu conjunto, “foi muito positiva” e que a iniciativa da SCML também o foi. O seu projecto, que envolve mais dois seniores e que tem a ver com as áreas da cultura e do turismo, ainda não se concretizou, mas os esforços e a confiança prosseguem. 

Com formação jurídica e financeira, Aida Manata não se mostra surpreendida por terem chegado ao fim poucos projectos, uma vez que, afirma, a taxa de sucesso nas iniciativas de empreendedorismo é sempre muito baixa. Apesar da sua avaliação global, Aida Manata entende que os resultados teriam sido melhores se tivesse havido uma selecção dos candidatos com base em entrevistas por forma a escolher pessoas com o perfil adequado. 

A principal falha que aponta ao UAW, que é “profunda e de raiz”, consiste no facto de os jovens, e também muitos seniores, não disporem de um orçamento que lhes permita iniciar um qualquer negócio. “Faltou aqui o empurrão inicial, uma ajuda financeira que permitisse alavancar os projectos. E as questões da intergeracionalidade não foram devidamente encaradas.” 

Com larga experiência em negócios, Miguel Leal, outro dos formandos, sublinha também que “o projecto intergeracional não deu bom resultado”. E a “falta de suporte da SCML na fase final, para levar por diante os projectos”, também foi um problema. “Aí a Misericórdia falhou: apoiou-nos sempre na formação, mas quando precisávamos de um outro tipo de apoio para avançar, aí não conseguiu cumprir.” 

“Andei entretido” 
Em conclusão, Miguel Leal, avalia com alguma ironia: “Na prática, o projecto foi útil porque não tive de me apresentar de 15 em 15 dias na junta de freguesia para receber o subsídio de desemprego. Nem tive de fazer aqueles cursos inconsequentes que só servem para melhorar as estatísticas do desemprego. No fundo andei entretido.” 

Menos distante é o olhar de Alexandre Lopes, um dos raros participantes no UAW que está a conseguir fazer alguma coisa com o projecto que ali preparou — o Undestand Fado, na área do turismo —, mas que ainda não conseguiu assegurar um posto de trabalho permanente. “O UAW deu-me ferramentas e contactos para avançar com mais segurança e credibilidade”, salienta. 

Embora afirme que SCML “sempre deu o apoio necessário para o programa chegar ao fim”, Alexandre Lopes partilha a opinião dos colegas. “Faltou uma componente de apoio financeiro. Eu esperava e penso que a maior parte de nós esperávamos um apoio desse género, através do Banco de Inovação Social. Ainda que de forma implícita isso foi-nos prometido no início”. 

Análise semelhante faz Augusto Gomes, que continua a tentar pôr de pé uma empresa da sua área, a contabilidade e a fiscalidade. “Foi positivo em função da aprendizagem feita. Do ponto de vista da eficácia julgo que o UAW terá falhado. No essencial o que se pretendia não foi conseguido.” 

Quem nada diz é a Misericórdia de Lisboa. Questionada pelo PÚBLICO desde o final de Julho, a instituição tem adiado repetidamente as respostas às 13 perguntas que então lhe foram dirigidas pelo PÚBLICO, sem que até agora tenha fornecido qualquer resposta. 

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