O patriótico buxo
É preciso plantar, regar e aparar os símbolos do Portugal colonial. Eis uma actividade da qual eu, como cidadão, prescindo alegremente.
O combate ideológico em Portugal desceu ao nível do buxo. Poderá não ser coisa particularmente digna, mas é coisa bastante divertida – e sintomática. A história é esta: há 20 anos que ninguém tratava de um conjunto de brasões florais situados no jardim da Praça do Império, e que hoje estão naturalmente irreconhecíveis. Eu posso testemunhar que estão irreconhecíveis, no sentido em que já lá passei dezenas de vezes e nunca reparei neles. Contudo, duas décadas após o seu triste abandono à anarquia vegetal, tivemos o privilégio de descobrir agora, em pleno estio de 2014, que aqueles brasões florais são, afinal, símbolos imprescindíveis à dignidade e memória da nobre pátria.
E isto porquê? Isto porque o malévolo vereador José Sá Fernandes decidiu discriminar o buxo. Originalmente, o arranjo floral consistia em 32 brasões, onde se incluíam os distritos do continente e regiões autónomas, uma cruz de Cristo, uma cruz de Avis e oito brasões em representação das antigas colónias. Sá Fernandes propôs-se recuperar os distritos e as cruzes, mas não os símbolos das ex-colónias. Um assessor justificou a decisão com argumentos políticos, afirmando que os brasões coloniais “estão ultrapassados”. Mais tarde, Sá Fernandes cruzou duvidosamente o político com o económico: “Não faz sentido estarmos a gastar dinheiro a recuperar símbolos que já não existem.” Parece que o buxo (e a jardinagem) está pela hora da morte: a manutenção dos oito brasões coloniais custa 24 mil euros/ano à câmara, o que dá uma média de dois mil euros/mês para aparar e pôr florzinhas em oito brasões. Acho que vou para jardineiro.
Mas o ponto é este: o CDS indignou-se, o PSD voluntariou-se para arranjar dinheiro, uns peticionários lançaram petições, alguns colunistas – incluindo Daniel Oliveira, Deus meu – defenderam que a História não se apaga, e António Costa, já a treinar para o Bloco Central, ficou-se pelo meio: mostrou-se “surpreendido” e pediu “informações”. É pena. Tão magno assunto será agora discutido em reunião de câmara, onde cadeiras voarão em nome da justa canalização da fotossíntese nos arredores de Belém, e António Costa perdeu uma óptima oportunidade de afirmação ideológica. Em primeiro lugar, porque esta mania de que qualquer coisa tem de ser preservada só porque foi feita pelos nossos avozinhos é uma idiotice. Em segundo lugar, porque os brasões florais, que animam tanta rotunda por esse país fora, ainda não ascenderam (felizmente) à categoria de património nacional. E em terceiro lugar, porque muito simplesmente preservar um mosteiro não é o mesmo que plantar buxo.
O buxo não é pedra morta – é vegetação viva. Se fossem brasões inscritos em pedra, a sua remoção seria da ordem do apagar; sendo brasões florais, a sua manutenção é da ordem do cultivar. É preciso plantar, regar e aparar os símbolos do Portugal colonial. Eis uma actividade da qual eu, como cidadão, prescindo alegremente. Uma coisa é não ter vergonha do passado – outra é ter orgulho nele e continuar a alimentar duvidosas memórias através de arranjos florais. Se a cara de Salazar lá estivesse desenhada com gardénias e hortências também seria para manter? Não, isto não é apagar a História coisíssima nenhuma. É apenas não continuar a engalanar um jardim como se estivéssemos em 1940. Sá Fernandes tem razão. Nós já não somos aquele país. E convém dizê-lo, vezes sem conta, aos senhores do PSD e do CDS: não somos e ainda bem. Graças a Deus e ao 25 de Abril. Deixem o buxo crescer em paz.