Há um documentário que desvenda parte da Lisboa romana por debaixo dos nossos pés
O documentário Fundeadouro Romano em Olisipo, de Raul Losada, inclui uma recriação em três dimensões da cidade na época romana. O ponto de partida para o trabalho foi uma notícia do PÚBLICO sobre escavações arqueológicas na Praça D. Luís I.
A descoberta de um fundeadouro romano no subsolo de Lisboa, feita pelos arqueólogos durante a construção de um parque de estacionamento na Praça D. Luís I, deu origem a um documentário. Com esta obra, que inclui uma recriação em três dimensões de Olisipo, Raul Losada quer dar a conhecer a cidade com cerca de dois milénios que se esconde debaixo dos nossos pés.
O documentário Fundeadouro Romano em Olisipo, apresentado como “um projecto de divulgação do património arqueológico”, foi exibido pela primeira vez em Outubro, no Museu Nacional de Arqueologia (MNA). Depois disso, o filme com 55 minutos foi também projectado na Ordem dos Arquitectos e no Museu Marítimo de Ílhavo.
A expectativa do autor do documentário é que ele venha a ser exibido por um canal de televisão português, mas enquanto isso não acontece sabe-se já que a recriação arqueológica virtual de Olisipo que foi produzida para o filme e um excerto do mesmo estarão patentes na exposição Lusitânia Romana - Origem de dois povos, que será inaugurada em Dezembro no MNA.
Segundo Raul Losada, para o início de 2016 está também prevista a sua projecção no Cinema São Jorge, em Lisboa, numa parceria com a empresa municipal EGEAC e com o Centro de Arqueologia de Lisboa. A expectativa do realizador do documentário é que ele seja também exibido, nos próximos dois anos, em vários festivais de arqueologia fora de Portugal.
A história deste documentário começa, como conta Raul Losada, com uma notícia do PÚBLICO, de Fevereiro de 2013. Nela, dava-se conta de que na Praça D. Luís I tinha sido descoberto, pelos arqueólogos da empresa ERA - Arqueologia, um fundeadouro romano, durante a construção de um parque de estacionamento subterrâneo da empresa Empark.
Nesse local de ancoragem de embarcações, que terá sido usado pelo menos entre os séculos I a.C. e V d.C., foram também encontradas meia centena de ânforas e algumas peças de cerâmica. Entre os achados feitos nessa altura estava ainda uma madeira, com cerca de 8,5 metros de comprimento, que mais tarde se concluiu ser parte de uma embarcação romana que terá navegado no Atlântico.
Raul Losada, que trabalha como operador de imagem e mantém há vários anos no Facebook a página Portugal Romano (criada para divulgar a arqueologia romana em Portugal), leu a notícia e dirigiu-se às escavações com a intenção de obter autorização para fazer o seu registo. “Inicialmente a ideia era fazer um pequeno vídeo para publicar no Portugal Romano”, explica, acrescentando que o projecto foi crescendo até se perceber que havia “potencial” para um documentário.
Seguiu-se uma mal sucedida tentativa, junto de várias entidades, para obter apoios para a sua concretização. Apesar de eles não terem chegado, Raul Losada não desistiu: dedicou os seus “tempo livres, folgas e férias” a este projecto, em redor do qual conseguiu criar “muitas parcerias”. Uma delas com a Ordem da Cavalaria do Sagrado Portugal, que assegurou os momentos de reconstituição histórica que integram o documentário.
Também envolvido no projecto foi César Figueiredo, um mestre em ilustração que nos últimos anos tem trabalhado na área da arqueologia e do património. A posposta inicial era que desenhasse um navio romano, mas o trabalho de “ilustração e arqueologia virtual em três dimensões” realizado para o documentário acabou por incluir uma reconstituição da cidade romana de Olisipo.
“Foi um trabalho monstruoso”, sublinha Raul Losada, para quem se trata de “uma inédita e surpreendente recriação”. César Figueiredo confirma que este foi “um trabalho que demorou muitos, muitos meses” a concluir, acrescentando que tal se deveu à necessidade de consultar uma série de fontes de informação e de promover várias reuniões com investigadores da área.
O ilustrador admite que fazer "uma espécie de reatrato robot" da cidade há cerca de dois milénios envolveu algum risco, dado que o conhecimento que se tem dessa época “ainda é parco”, apesar haver “estudos recentes de vários investigadores” sobre a matéria. César Figueiredo adianta que a recriação em três dimensões foi feita tendo por base informações já dadas como certas, como “os limites da cidade”, “o traçado da muralha” e a localização de alguns “pontos-chave”, como as fábricas de produção de preparados de peixe e o teatro romano.
“Temos consciência de que não é 100% a cidade que existia. É uma visão aproximada”, constata o ilustrador. “É a imagem do que era expectável ser a cidade”, corrobora Raul Losada, reconhecendo que são muitos os “pontos negros” que permanecem por desvendar e que por isso fazer esta recriação foi quase como montar um puzzle.
“Todos os dias se estão a descobrir coisas em Lisboa", remata. Essa ideia é também sublinhada no documentário, no qual se diz que “aos poucos a Lisboa romana vai sendo revelada, muitas vezes por mero acaso”.
“Debaixo da cidade esconde-se uma outra Lisboa, praticamente desconhecida”, acrescenta-se no filme, que inclui o depoimento de investigadores e arqueólogos e se centra essencialmente no “achado singular” que foi o fundeadouro romano, no qual foram também encontrados “um notável conjunto de ânforas” e a madeira de uma embarcação, classificada como “um achado raro e uma das peças mais valiosas deste encontro feliz com o mundo romano”.
Numa exibição do documentário que teve lugar na Ordem dos Arquitectos, o administrador da ERA - Arqueologia considerou que este é “um documento paradigmático do que devia ser feito na arqueologia portuguesa”, e que é “comunicar de forma alargada”. “Tendencialmente a arqueologia é muito escondida, muito envergonhada, muito realizada por trás de tapumes”, lamentou Miguel Lago, para quem isso “não faz sentido”.
Para este responsável, o documentário Fundeadouro Romano em Olisipo “é um trabalho excepcional”, que “seguramente vai ter um impacto muito grande”. “Curiosamente foi feito não por uma instituição mas por uma pessoa individual”, notou ainda Miguel Lago.
Tanto Raul Losada como César Figueiredo têm a expectativa de que a concretização deste projecto, e a demonstração de que não só é possível fazer algo assim como de que há um público interessado, lhes abra portas e permita que este seja apenas o primeiro documentário de arqueologia feito pela dupla.