“Há falta de formação nas universidades para o que a indústria necessita”
António Melo Pires, director da Autoeuropa e presidente de uma nova associação industrial da região de Setúbal, quer partilhar conhecimento e difundir o método de formação alemão usado na fábrica da Volkswagen.
Os métodos de formação profissional alemães, usados na Autoeuropa, podem ser passados para outras empresas, defende Melo Pires, que se queixa da dificuldade em encontrar engenheiros (em parte, porque muitos emigram) e que gostaria de ver uma melhor articulação entre universidades e empresas. Na entrevista, o director da Autoeuropa não quis falar da fábrica de Palmela, que recebeu este ano do grupo alemão um plano de investimento de 667 milhões de euros, o que inclui ajudas do Estado português que estão a ser investigadas por Bruxelas. O objectivo é adaptar a fábrica para um novo modelo de automóvel, que ainda não foi anunciado.
Esta é há muito uma região industrial. Por que surge agora uma associação?
Já houve uma associação industrial no passado, mas está numa situação praticamente de falência. Esta é uma região com indústria grande em termos de volume, mas também em termos de diversidade. Também é uma região muito sujeita a ciclos, que tem sido sujeita a várias vicissitudes do ponto de vista económico, em parte por falta de coesão do tecido económico local.
Será sobretudo uma associação de lóbi?
Obviamente terá uma parte de lóbi, mas será sobretudo uma associação de difusão de conhecimento. As empresas fundadoras são de ramos diferentes, não concorrem umas com as outras. O objectivo será promover o conhecimento e não apenas o lóbi.
Que tipo de conhecimento há para difundir entre indústrias tão díspares?
Formação profissional. A formação dual que usamos na Autoeuropa pode ser usada noutro tipo de indústrias. É o modelo de formação alemão, que é a formação teórica, em sala, e a formação prática, nas indústrias. É possível difundir isso. Também é possível formar técnicos transversais. A electrónica ou a manutenção são áreas de que praticamente todas as indústrias precisam, os métodos são praticamente idênticos em todas as empresas.
Na apresentação da associação falam em “promover a competitividade”. É um jargão muito usado. Na prática, o que significa?
Temos indústrias e empresas de ponta na península de Setúbal, que utilizam tecnologias de ponta. O objectivo é diversificar essas tecnologias e essa cultura industrial para outras empresas.
Querem também trabalhar com as instituições de ensino. Há lacunas da região que gostariam de ver colmatadas?
Esta região já tem um nível de escolaridade superior às médias nacionais. Está bem equipada em termos de recursos humanos. Podemos dizer que não é suficiente comparando com algumas regiões da Europa. O que se pretende é uma política de integração. Existem instituições de ensino que desenvolvem conhecimento, mas esse conhecimento não chega à prática, à fase de comercialização do produto. O objectivo é integrar as empresas com as instituições criadoras de conhecimento, de forma a completar a cadeia, desde o nascimento da ideia até ao nascimento do produto.
Quais são os problemas que se colocam nessa articulação entre instituições de ensino e empresas?
A culpa não está só de um dos lados. Há instituições de ensino que funcionam muito bem nesse aspecto. Há empresas que funcionam bem e outras menos bem. Por exemplo, as empresas podem empregar doutorados para trabalhos específicos de desenvolvimento ou para a resolução de problemas, que é uma coisa incipiente na sociedade portuguesa. Podem desafiar instituições de ensino a desenvolverem produtos específicos e colaborarem para que sejam produtos de mercado. E também as universidades e politécnicos podem desafiar as empresas com novas ideias.
Se a Autoeuropa pudesse mudar alguma coisa na região, o que seria?
Gostaríamos que a região preparasse mais engenheiros. Estamos sempre num processo de contratação de engenheiros e técnicos especializados. Temos um programa em que contratamos licenciados com apoio do Instituto de Eemprego e Formação Profissional para lhes dar conhecimento específico da nossa indústria, porque as universidades não estão vocacionadas para dar formação muito específica.
Não há licenciados em número suficiente ou vão para outros sectores?
Há 20 anos, a apetência da indústria para os licenciados em engenharia era reduzida. Hoje isso inverteu-se um pouco. Os engenheiros hoje têm mais apetência pela indústria do que pela área dos serviços. Há falta de formação nas universidades em quantidade suficiente para o que a indústria necessita. Há várias regiões onde já existem falta de engenheiros. Seja por falta de entradas de nos cursos de tecnologias, seja por emigração. O problema não é específico de Portugal, é de toda a Europa. Existem recém-licenciados que recebem ofertas de emprego na Europa, nomeadamente na Alemanha e na Noruega, onde essa falta é evidente.
Por que é que Setúbal é uma região pobre [é o terceiro distrito com mais beneficiários do rendimento social de inserção] apesar da décadas de indústria?
Se olharmos para o valor acrescentado bruto [o valor acrescentado pelas actividades produtivas face aos recursos usados], tem havido uma quebra mais acentuada na região de Setúbal do que na região da grande Lisboa. Tem havido uma redução desse valor bastante acima do que seria normal. A região de Setúbal não é necessariamente uma região pobre. Talvez seja uma região com disparidades mais acentuadas do que outras regiões. Dois dos municípios da região de Setúbal – Setúbal e Palmela – estão no top cinco dos municípios mais exportadores. Continuam a existir dois mundos: um mundo agrícola e um mundo industrial. Muitas indústrias sofreram a pressão dos ciclos económicos e muitas indústrias não se conseguiram adaptar da melhor forma às mudanças nacionais e internacionais. Muitas faliram, outras reconverteram-se. Tudo isto tem criado grandes tormentas na região.
Mora cá?
Moro em Setúbal. E sou de cá.
Como viu a região evoluir nos últimos anos?
Nos anos 1970, na minha adolescência, deu-se o grande boom da região. Houve uma grande imigração vinda de outras regiões do país, nomeadamente do Alentejo. Em 1971, 1972 Setúbal era a região do país em que se vendiam mais automóveis. Logo a seguir ao 25 de Abril houve uma recessão enorme, que afectou particularmente esta região. Algumas indústrias que se tinham instalado desapareceram ou reconverteram-se. Depois, tem vindo a ter ciclos de crescimento. E cresceu. Era uma cidade que vivia à sombra de Lisboa.
E nos últimos dez anos?
Diria que está num nível idêntico. Não tem havido melhorias, mas não tem piorado muito. Os indicadores mostram que existe uma regressão em termos de valor acrescentado bruto. E não tem crescido na mesma proporção da região de Lisboa.