Algarve recria "arca de Noé" das árvores de fruto
Direcção regional de Agricultura desenvolve projecto que revela cheiros e sabores da fruta de outros tempos.
O agricultor/viveirista é um dos elementos que estão a colaborar com a direcção regional de Agricultura para criar uma espécie de "arca de Noé" do Algarve - um campo experimental onde se recolhem as espécies tradicionais, em vias de extinção, procurando assegurar a sua manutenção futura. Só no que respeita a figueiras, já foram contabilizadas 92 variedades. Amendoeiras foram 86 e alfarrobeiras 41.
A recolha e a selecção, desenvolvidas por uma equipa de sete agrónomos, começaram há cerca de um ano, prevendo-se que o programa termine em 2015. Um trabalho "notável" é como o agricultor António Neto o classifica, a pensar na preservação e multiplicação das centenas de espécies que estavam em risco de se perderem.
De uma ponta à outra da região, os engenheiros agrónomos do Ministério da Agricultua procuram encontrar árvores que sirvam de amostra. João Costa, um dos membros da equipa, fala com entusiasmo do "fascínio" de um projecto que tem por objectivo contribuir para "deixar para as gerações futuras um património vegetal, criado e aperfeiçoado ao longo dos séculos".
Os pêros de Monchique
A analogia com a "arca de Noé" é incontornável. "Os pêros (maçãs pequenas) de Monchique, durante a Feira de Faro, perfumavam as ruas da cidade", recorda. Esta e outras raridades, salienta, "estão a ser recuperadas, destacando-se da massificação da fruta que chega de todo mundo, sem cheiro nem sabor".
O Centro de Experimentação Agrária de Tavira, com a área de 36 hectares, junta a experiência à investigação científica. No mesmo sentido, na Universidade do Algarve, Anabela Romano dirige uma equipa que desenvolve, ao nível biotecnológico, um trabalho sobre a propagação vegetativa in vitro. "Nem todos os enxertadores têm a mesma precisão na mão", nota. Por isso é necessário criar um método que garanta a "uniformidade genética" das variedades tradicionais.
O que aconteceu desde há décadas com a flora algarvia não é diferente do que se passou um pouco por todo o país - campos desertos e árvores abandonadas. Mas há agora um novo olhar para uma região que "plantou" à beira-mar vivendas e apartamentos, onde dantes existiam alfarrobeiras, figueiras e amendoeiras.
Numa zona perto do Algoz (Armação de Pêra), Cabrita Vieira dedica-se ao cultivo das alfarrobeiras depois de ter trabalhado em citrinos durante décadas. De resto, é a ele que os engenheiros da direcção regional recorrem para fazer os enxertos desta espécie. "Aliás, até já fui a Marrocos, num programa de cooperação entre os ministérios da Agricultura dos dois países, ensinar a enxertar", acrescenta. Próximo de Albufeira, António Neto observa as figueiras e amendoeiras, em fase de hibernação, sublinhando os gestos das mãos com palavras de lamento. "Portugal importa figo da Turquia, e nós temos aqui fruta tão boa", observa. Virando-se para Norte, aponta para a montanha pedregosa e comenta: "Plantaram-se pomares de citrinos, com subsídios, e o pomar de sequeiro, em terrenos de boa qualidade, ficou abandonado".
Junto de uma amendoeira, aparentemente igual a tantas outras, descreve as características da árvore. "Foi ela a mãe que deu uma das variedades que estão em Tavira, a ser estudadas", gaba-se.
As variedades, explica João Costa, "costumavam receber o nome da localidade ou do agricultor que as descobriu". Esta, por exemplo, passou a ser conhecida como a variedade "Paderne". E assim, de enxerto em enxerto (ou estacaria, no caso da figueira), reconstrói-se o património genético de uma região que, mercê do clima, passou também a produzir frutas tropicais, deixando esquecidas as romãzeiras, nespereiras e figueiras.
Alfarrobas no Alentejo
O agrónomo salienta, no entanto, que as coisas estão a mudar. "Temos uma nova geração de agricultores, virados para as culturas tradicionais, e há novos pomares muito interessantes." Cabrita Vieira, por seu lado, acrescenta que a procura de alfarrobeiras, que antigamente se concentrava no Algarve, chega agora também do Alentejo. Ao todo, afirma, já vendeu cerca de 15 mil para Mértola, Vidigueira, Aljustrel.
A variedade que recomenda, de entre as quatro dezenas que tem no viveiro, é a "cavi" [Cabrita Vieira], uma espécie que diz ter resultado de "mais de cinco" experiências que fez. Sobre as suas características, diz ser "equilibrada no tamanho e proporção do número de sementes". Apesar das múltiplas aplicações do fruto - os alemães, por exemplo, fazem um sucedâneo de cacau a partir da polpa -, a mais frequente em Portugal consiste na sua utilização no fabrico de rações para animais.