A última noite do Living Opera
As discotecas de praia, esses templos que durante décadas foram o centro do Verão, estão a acabar. O Living Opera, em Santa Cruz, viveu 32 anos. O dono, Carlos Fortuna, anunciou a última noite.
Percorrer a costa ocidental portuguesa é uma das grandes viagens que se podem fazer na Europa. É um trajecto pleno de sonho e sobressalto, como um poema.
A diversidade do país revela-se na longitude. O litoral é uma sequência de súmulas, a babugem dos imensos corredores que atravessam a península, para desaguar no Atlântico em forma de âmbar, de pérola ou de lágrima.
Cada praia é muito mais do que si própria. Representa centenas de quilómetros de interior, e todos os que, vivendo longe, podem, e querem, dizer: “Esta é a minha praia”.
Por isso cada cenário é completo, cheio, perfeito, e ainda uma projecção, uma metáfora. A sua rápida sucessão provoca a vertigem.
Depois de São Jacinto, pode atravessar-se o canal no velho ferry Cale de Aveiro (com a moto ou o carro) até ao Forte da Barra, e daí seguir pela estrada florestal até à Praia de Mira, depois Quiaios, Buarcos e Figueira da Foz. Entre Mira e a Tocha, a estrada avança entre pinheiros, que protegem uma zona de dunas, até à praia, quase sempre deserta. Não se avista o mar. Para a verdadeira experiência de voar sobre o oceano, é preciso virar a Oeste depois das dunas de Cantanhede e das dunas de Quiaios, em direcção à Praia de Quiaios e à Serra da Boa Viagem, pela rua do Farol Novo, e daí prosseguir para Buarcos, retomando a Nacional 109, até à Figueira.
Então, depois de atravessar a ponte sobre o Mondego, toma-se, por poucos quilómetros, a N109 em direcção a Leiria, até cortar à direita para apanhar a Estrada Atlântica. Aqui, sim, paira-se sobre o azul, passando Pedrógão, Vieira, São Pedro de Moel, Nazaré.
De São Martinho do Porto à Foz do Arelho há outra Estrada Atlântica, de certa forma, a continuação da mesma. Mas depois não é fácil acompanhar a linha costeira. O melhor é aproveitar a boleia da A8, ou, pelo menos, da N8, contornando a Lagoa de Óbidos, para desembocar na península de Peniche e no Baleal. Logo à saída da Foz do Arelho, na estrada que vai na direcção de Caldas da Rainha, é possível ver a ruína do que foi durante anos a maior e mais animada discoteca da zona Oeste, o Green Hill. Outros antros da vida nocturna de Verão surgem a espaços ao longo do percurso, decadentes, abandonados, destruídos.
A partir de Peniche, o caminho torna-se extasiante. Não são já as estradas panorâmicas como as de Quiaios, ou da Costa de Lavos, depois da Figueira. Agora não há o artifício da rota turística, mas antes um espaço de fusão de campos e mar, cujo equilíbrio natural não exclui o povoamento. O segredo desta cumplicidade chama-se Estrada Nacional 247. Leva-nos em curvas, loopings e outros movimentos de gaivota, até à órbita da praia da Consolação, de São Bernardino, Santa Cruz, e daí para a Ericeira, Sintra e Cascais.
Os 50 quilómetros que ligam Peniche à Ericeira são um mundo de características próprias. É uma zona de ventanias e nevoeiros, de agricultura e de surf, de aldeias, montes suaves, falésias sobre o mar e penínsulas verdejantes. Se noutras regiões as praias parecem ser um bem escasso, insuficiente para a avidez estival das populações de cidades vizinhas, aqui sobram, esperam, repousam. É impossível conhecer todas as praias, memorizar-lhes os nomes. Algumas são apenas um bar de madeira sobre a arriba, outras a foz de um riacho, ou uma laguna de mercúrio entre rochedos na maré baixa.
Aqui, como em todo o país, cada praia tem também o seu carácter. Que percorre um largo espectro, mas nunca é melancólico, como nas costas da Bretanha, da Cornualha, ou mesmo das Astúrias. Em Portugal, a praia é uma festa. Vamos lá para nos transformarmos, inventarmos um modo de vida intenso, generoso e livre, sermos felizes por algumas horas, ou dias.
A praia é o melhor de nós. Revela a face mais luminosa da nossa natureza. Como a espuma de outras ondas, invisíveis, que rolam da terra para o mar.
Carlos Fortuna, um homem de 64 anos e olhos azuis, está sentado no interior de um casarão centenário junto à Praia Formosa, em Santa Cruz. Da janela vê-se o Penedo do Guincho, um impressionante megalito pousado na água, e ouve-se a gritaria das crianças na areia.
Ao passar junto do edifício, uma mulher pára, deixando o marido e os filhos, carregados de guarda-sóis, toalhas e sacos, continuarem a caminhada para a praia. “Há vinte anos, vinha aqui todos os fins-de-semana”, diz ela. “Era o melhor das minhas férias. E foram os melhores tempos da minha vida.” O marido, Carlos, 45 anos, que cresceu na região de Viseu, detém-se lá à frente, um pouco confuso com as faíscas nos olhos da mulher, Joana, de 38. “Era a melhor discoteca de toda a zona oeste”, diz ela, com cara de quem duvida estar no mesmo lugar, ali, à porta do Living Opera, agora fechado. “Dançávamos até amanhecer, depois íamos para a praia.”
Carlos Fortuna abriu o Living Opera em 1983, ao regressar da Bélgica, para onde tinha “fugido” da guerra colonial. Na zona da Grand Place, em Bruxelas, onde vivia, frequentava, nos anos 70, um pub chamado Drug Opera. E foi esse pequeno clube todo em madeira, rústico, que o inspirou, na hora de baptizar o seu novo empreendimento.
Antes, foi proprietário de uma loja de instrumentos musicais, em Torres Vedras, e tocou guitarra, durante quatro anos, na banda Atlântida, de Lena D’Água. Mas os anos 80 foram a época de ouro das grandes discotecas. Principalmente as discotecas de praia.
“Quando abriu, o Living Opera era diferente de todas as outras. As luzes, a decoração, com ícones do cinema e das artes, criavam um ambiente único, muito apelativo”, diz Carlos. Arrendou o velho edifício, que fora uma casa particular, e transformou-o completamente, com dois andares, aquecimento central, duas pistas de dança, cinco bares.
O primeiro Disc-Jockey foi Luís Perdigão, que gostava de pôr música new wave, rock, funky e disco sound, e tinha uma paixão por electrónica e sistemas áudio. Ele próprio quis explorar o negócio do Living Opera, mas Fortuna, que na altura tinha outro sócio, foi mais forte. Trabalharam juntos desde então, na instalação do som e luzes, na programação musical, na organização de festas e noites temáticas.
Carlos Fortuna nunca largou o Living Opera, durante 32 anos. Pelas suas contas, mais nenhuma discoteca em Portugal viveu tanto tempo, com o mesmo dono. E foram anos gloriosos.
A casa tem lotação para 500 pessoas, mas a média, nas noites de Verão, era de mil pessoas numa noite. “Havia uma discoteca em Torres Vedras, o Túnel, que dominava as noites, no Inverno. No Verão, o Living era rei. Vinha gente de todo o lado. Até de Lisboa, e de todo o país, porque tinham ouvido falar do Living”, recorda Carlos. “Quando comecei, em 1983, estava cá o FMI. Depois vieram os anos da euforia, do dinheiro. Mas já passei por quatro crises. E sobrevivi sempre.”
De Junho a Setembro, a casa estava cheia todas as noites. Em cada uma havia um tema, uma festa diferente. Às quartas-feiras era a Festa da Espuma. “As pessoas traziam uma mochila com uma muda de roupa, porque iam ficar todas molhadas.” Noutra noite era a Festa Black and White, noutra a Festa da Penumbra, onde todas as luzes se apagavam. Aos clientes eram distribuídas pequenas lanternas, à entrada, e eram eles que iluminavam o recinto, apontando para quem queriam ver melhor. “O efeito era incrível, com as pessoas a dançar, e centenas de lanternas a moverem-se”.
Em certas noites, dos “anos loucos”, Carlos e Luís convidaram artistas para actuar. Grupos de dança e performance, ou bandas, como a de Rui Veloso, ou mesmo Samantha Fox. “Durante bastantes anos isto foi um bom negócio, admito. Várias gerações dançaram aqui, e foram marcadas pelo Living.”
As discotecas de praia eram uma componente importante das férias de todos os jovens, faziam parte da própria ideia de Verão. Ouvir música e dançar, conhecer pessoas, o próprio culto desses lugares a abarrotar de gente e de fumo, com música que ensurdecia e luzes que cegavam, onde muitas vezes não era fácil entrar, com porteiros caprichosos e discriminadores, tudo isso compunha a mitologia do Verão.
A noção de que o período de férias era especial facilitava essa sacralização do espaço da discoteca, lugar de emoção onde tudo o que acontecia assumia uma qualidade de lenda. Carlos Fortuna habituou-se a esse papel de mestre de cerimónias, de monge do templo da música. E talvez se tenha viciado, porque quando, há dez anos, o negócio deixou de ser lucrativo, não conseguiu ser realista, e desistir.
“Devia ter fechado isto há dez anos. Assim como ganhei muito dinheiro, também perdi, desde essa altura, muito dinheiro”, diz ele. O paradigma da noite das praias começou a mudar. Abriram muitos bares, chegou a crise, as pessoas deixaram de ter dinheiro e paciência para certas coisas.
Ultimamente, a machadada final nas discotecas, segundo Carlos Fortuna, foi a “lei de liberalização dos horários. Dantes os bares tinham de fechar às 3, e as discotecas podiam ficar abertas até às 6. Agora os bares podem fechar tarde, tal como as discotecas, por isso as pessoas ficam lá, por ser mais barato, e mais descontraído, pode-se entrar e sair de copo na mão, estar lá sem consumir. A culpa é desta lei do nosso ministro da Economia, Pires de Lima, que não acautelou os interesses dos empresários. É muito estranho. Acho que por trás disto só podem estar os interesses dos produtores de cerveja, para os quais o ministro trabalhava. Isto é só a minha opinião.”
As discotecas são estruturas pesadas, com muitas obrigações legais. Têm de possuir segurança, porteiros, casas de banho preparadas para pessoas com deficiência, etc. Os bares não têm as mesmas obrigações, mas podem ter equipamentos de som equivalentes, DJ, pistas de dança, e estar abertos até tarde. A vantagem competitiva é óbvia.
Além disso, há o fenómeno dos DJ superstars, diz Luís Perdigão, que veio juntar-se ao amigo para a última noite do Living Opera. “As pessoas conhecem os DJ. Eles são ídolos. E só vão a uma festa se conhecerem o DJ, se ele for bom. E um bom DJ cobra 8 mil a 10 mil euros por noite. Tornou-se incomportável. Uma discoteca não pode pagar isso. Os DJ vão aos festivais, a festas subsidiadas, etc.”
Os festivais de Verão também se tornaram concorrentes das discotecas. O orçamento para música esgota-se nesses eventos que enchem o Verão, e não sobra para ir à discoteca. Tanto mais quanto já não vale a pena ir à discoteca para ouvir música. No início, recorda Carlos, era isso que fazia a diferença. E Luís lembra-se dos discos que a mãe lhe trazia das viagens ao estrangeiro, ou dos LP que o próprio Carlos Fortuna tinha trazido da Bélgica.
“Era isso que atraía as pessoas”, explica Carlos. “Mas era possível porque toda a gente gostava mais ou menos da mesma coisa. Hoje, os jovens dividiram-se em demasiadas tribos. Não é possível agradar a todos. Se trago um DJ techno, isso vai afastar muita gente.”
A própria evolução das discotecas, ao optarem por se tornarem locais de dança, e não para ouvir música, como eram inicialmente, foi também, aos poucos, cavando a sua sepultura. A música de dança foi-se tornando uniforme e desinteressante. Já ninguém lhe chama música, mas apenas “som”. E deixou de ser suficiente para atrair pessoas a um local fechado, com porteiro e bebidas mais caras do que num bar normal.
Além dos festivais há as festas das aldeias, que já não são só para os locais e os emigrantes de férias. “Os organizadores nas autarquias foram inteligentes, e perceberam que podiam atrair outros públicos”, explica Luís. “Agora, nas festas das aldeias, há sempre um palco para jovens, com outra música, e uma zona de bebidas. E resulta. Os jovens preferem ir a essas festas do que às discotecas.”
“As discotecas estão a desaparecer”, diz Carlos Fortuna com tristeza. “As pessoas já não vêm. O mundo mudou. Dantes, isto era importante. As pessoas produziam-se para a noite. Agora, já ninguém quer saber. Temos de nos resignar a isso. Dantes, à meia-noite, havia uma enorme fila ali fora, para entrar. E não importava as atracções especiais que tínhamos. As pessoas vinham de qualquer maneira. Hoje, é muito difícil meter aqui cem pessoas num fim de semana”.
Durante o passado mês de Julho, Carlos tentou abrir as portas, usando as velhas fórmulas. Organizou uma Ladies Night, uma Festa da Penumbra, uma Festa da Espuma. Quase ninguém apareceu. “As pessoas já não acham graça a essas coisas. Não estão para se chatear. Não estão para se molhar. Na Festa da Espuma nem cem pessoas apareceram”.
Desde que começou a crise, Luís Perdigão decidiu diversificar a actividade. Em 30 anos, tinha feito o sistema de som de mais de 500 discotecas, entre as quais algumas das maiores do país, incluindo as lisboetas Kremlim, Kapital e Urban Beach. Agora virou-se para Angola, onde tem instalado os mais sofisticados sistemas de som, luz e imagem, em mega-discotecas luxuosas (onde viu “um tipo abrir duas garrafas de champanhe de 5 mil euros numa noite”), ou em casas particulares. Dedica-se também à domótica, integrando todos os media e sistemas electrónicos de uma casa, com controlo por smartphone.
Carlos não se dedicou a mais nada. O Living Opera é tudo para ele. Tem uma pequena agência de publicidade, que dificilmente sobrevive. Entregou-se demasiado ao Living Opera, e agora não sabe o que poderia fazer, nos negócios da noite. Nem tem vontade. “Tenho tantos anos disto, que já não percebo nada”, diz ele. “Acho que nunca mais vai haver discotecas. Talvez venha a haver outras coisas, locais que não se chamem discotecas. Ou talvez tudo seja cíclico, e a moda volte. Mas não, acho que não. Locais fechados onde as pessoas vão para dançar, nunca mais haverá. Isso é ponto assente.”
Carlos Fortuna decidiu então fechar o Living Opera. Mas, em conversa com Luís Perdigão, resolveram organizar uma última festa como despedida. Chamaram-lhe Remember Living Forever. Festa de Encerramento. Marcaram para sexta-feira, 14 de Agosto, lançaram página no Facebook, enviaram mensagens SMS para amigos, antigas namoradas e antigos clientes.
Começaram a ter muitas respostas, outras páginas de apoio foram abertas, e, de repente, “tornou-se viral”, diz Luís. Choveram mensagens de apoio, organizaram-se grupos para vir, de todos os pontos do país, até a Santa Cruz na Sexta à noite. Espalhou-se uma febre de nostalgia, uma saudade da juventude, ou simplesmente uma onda de pena e solidariedade pelo Living Opera e o seu dono.
Luís está eufórico. Garante que já estão garantidas mais de mil pessoas. Carlos não quer acreditar. Esperava, na melhor das hipóteses, umas duzentas pessoas. Está aflito. “Não tenho bebidas suficientes. Nem pessoal. É preciso contratar pessoas.” Tem medo que seja uma ilusão, e que vá gastar dinheiro para nada. Mas também não quer desiludir, se realmente afluirem às centenas ou milhares.
Sexta-feira foi a última noite do Living Opera. O edifício de colunas azuis e paredes lilases vai ser vendido, para ser uma casa de habitação de luxo, sobranceiro ao mar e ao Penedo do Guincho. Luís Perdigão continuará a trabalhar para milionários em Angola. E Carlos Fortuna, que fará ele nas noites de Verão de Santa Cruz, quando pela última vez bater atrás de si a porta da sua Opera?
“De uma coisa tenho a certeza”, diz. “Os jovens nunca deixarão de sair à noite. E nunca deixarão de ouvir música no Verão, junto ao mar.”