A arte urbana chegou às aldeias beirãs e até o Ti’ Vaz fez “um risco” na parede

Oficinas de costura, assembleias comunitárias, workshops de fotografia e teatro, artes performativas: em quatro aldeias de Castelo Branco há encontros improváveis entre o campo e a cidade

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Há Festa no Campo Tiago Moura e Pedro Pires/Há Festa no Campo

Da porta de casa do ancião, em Juncal do Campo, vê-se o mural colorido que ele ajudou a pintar num fim-de-semana gelado de Janeiro. “Fui lá fazer um risco”, conta orgulhoso. Era o mais velho do grupo que se juntou no pátio da antiga escola primária da aldeia, com latas de tinta e pincéis, orientado pelo artista plástico Manoel Jack. Estavam também as senhoras da oficina de costura, que aos domingos se juntam ali para tricotar malhas e conversas, e algumas crianças. Em conjunto, pintaram um desenho inspirado no bordado tradicional de Castelo Branco.

Foi assim que as paredes de Freixial e Juncal do Campo, Chão da Vã e Barbaído começaram a ganhar outras cores, à boleia da iniciativa Aldeias Artísticas, uma das várias inseridas no projecto Há Festa no Campo, promovido pelas associações EcoGerminar e Terceira Pessoa. O objectivo é desenvolver e dinamizar estas quatro aldeias, onde moram cerca de 800 pessoas, através da arte e da cultura.

“Queremos mostrar que as aldeias são espaços de oportunidade e que a arte urbana também pode ser feita em meio rural”, explica Marco Domingues, da EcoGerminar. O desafio lançado aos graffiters de todo o país já foi aceite por mais de 30. As associações garantem alojamento, alimentação e materiais e a comunidade oferece as paredes dos espaços públicos ou mesmo das habitações. Até o padre da paróquia mostrou vontade em ceder uma parede da igreja.

A EDP, por sua vez, ofereceu as paredes do posto de transformação à entrada de Freixial do Campo. Foi lá que o ilustrador Gonçalo Fialho, também conhecido por Uivo, começou a pintar na segunda-feira. Inspirou-se numa lenda da terra, segundo a qual um enorme sobreiro – “diz-se que eram precisos seis homens para o abraçar” – não podia ser cortado, sob pena de a aldeia ficar inundada por um lençol de água que passava debaixo da árvore. “Acrescentei um ponto ao conto e desenhei um ser feito de vidro, com água no interior, que guarda o sobreiro para que ninguém o tente cortar”, descreve.

Para o jovem de 20 anos nascido numa aldeia em Mafra mas habituado a trabalhar em ambiente urbano, este projecto foi um desafio. “Senti uma grande empatia mas as dinâmicas são diferentes. Na cidade o nosso trabalho tem de chamar à atenção, na aldeia não podemos ‘entrar a pés juntos’, o desenho tem de fazer parte da paisagem”, observa.

De capuz enfiado na cabeça, Uivo até tenta passar despercebido enquanto pinta mas não consegue. Os poucos carros que passam abrandam. “Para nós, isto é um acontecimento”, sublinha a presidente da junta de freguesia, Ernestina Perquilhas, que agradece o trabalho das associações. "Faz com que as pessoas sintam que não estão esquecidas." Também o vice-presidente da câmara, Arnaldo Brás, sublinhou o papel do projecto na luta contra a desertificação. "Não esperava que o envolvimento da comunidade fosse tão intenso", confessa, em conversa com o PÚBLICO no local.

Um grupo de miúdos do jardim-de-infância não tira os olhos do desenho de Uivo, que ganha forma atrás dos andaimes. “Eu também quero pintar”, grita Leonor, de seis anos. “Uma princesa”, ou outra coisa qualquer, desde que a deixem brincar com as tintas. Nuno Leão, da Terceira Pessoa, promete-lhe um bocadinho de parede, até porque ali não falta espaço em branco nos muros de jardins, fontes ou nos tanques das lavadeiras.

Reabrir as portas fechadas
O mural de Uivo foi inicialmente pensado para uma parede do Café Central, mas o proprietário voltou atrás na oferta. Marco Domingues, lisboeta do Bairro Alto que se mudou há quase uma década para Castelo Branco, compreende que é preciso “ir devagar”. A população da freguesia é, em grande parte, idosa e há mesmo quem nunca tenha posto um pé na cidade.

Há um ano que as associações EcoGerminar, dedicada ao empreendedorismo e ao desenvolvimento local, e Terceira Pessoa, que actua na área artística, estão no terreno a ouvir as carências e os desejos dos moradores, tentando ganhar-lhes a confiança. Encontraram uma comunidade fechada sobre si própria mas com vontade de quebrar o isolamento. Definiram depois uma estratégia: "todos os espaços fechados podem reabrir". Por exemplo, a antiga escola primária de Juncal, que esteve encerrada durante vários anos, acolhe agora oficinas de costura e de fotografia, assembleias comunitárias e até mercados de artesanato e gastronomia local. Também é na escola que se reúne a redacção do Jornal das Aldeias, a primeira oficina do projecto, que já vai no terceiro número.

Em Freixial, o próximo desafio é reabrir a antiga associação recreativa, encerrada há 15 anos. A placa da inauguração marca a data de 1993, mas as portas abriram muito antes graças ao empenho da população, que construiu o edifício de raiz. "O que a gente sofreu para pôr o telhado", recorda um morador que trabalhou no bar da associação durante 16 anos. Tem saudosismo na voz. Lembra-se das festas e das noitadas. As luzes de discoteca ainda estão presas no tecto do salão principal, atrás do balcão ainda há garrafas de álcool e prateleiras que mal chegam para os troféus ganhos pelas equipas desportivas da casa. Parece que alguém fechou a porta à chave há poucos meses e se esqueceu de avisar o correio para não deixar a correspondência.

Luís Ricardo, de 28 anos, trabalha no Algarve mas passa o Inverno em Freixial, onde cresceu, e está a tentar curar as feridas mal fechadas da associação. Só depois disso os mentores do projecto Há Festa no Campo irão apresentar uma proposta à comunidade, que deve passar pela criação de um hostel. "Gostávamos de encontrar uma família 'nova povoadora', que pudesse sub-alugar o espaço e gerir o negócio", afirma Marco Domingues.

Fotografia é meio para o diálogo
O projecto Há Festa no Campo é apoiado desde a primeira hora pela Fundação Gulbenkian, através do concurso Partis - Práticas Artísticas para Inclusão Social, com cerca de 25 mil euros por ano, durante três anos. “Quisemos garantir que este valor não ultrapassava 60% do orçamento total, para que o projecto não morra quando o apoio terminar”, diz Hugo Seabra, gestor do Partis. O objectivo do concurso, lançado em 2013 e que vai repetir-se este ano, é potenciar “encontros improváveis” através da arte, explica. Dos 17 projectos apoiados, o Há Festa no Campo é o único desenvolvido exclusivamente em meio rural.

Hugo Seabra conta que queria também promover o contacto entre os vários projectos para criar a “família Partis”, um desejo que já se cumpriu. Em Janeiro, o Movimento de Expressão Fotográfico, outro vencedor do concurso, levou 40 amantes da fotografia de todo o país à freguesia de Freixial e Juncal do Campo, onde construíram um “diário do quotidiano”. A população deixou-se fotografar no seu dia-a-dia, em casa, na adega ou nas hortas. “Quisemos usar a fotografia como meio para o diálogo entre quem vem de fora e quem cá está”, conta Marco Domingues.

A experiência correu tão bem que vai repetir-se no início de Maio. O resultado ficará exposto nas ruas da freguesia, numa espécie de galeria a céu aberto, durante o festival marcado para 19, 20 e 21 de Junho. Nesses dias haverá palestras, tertúlias, actuações de músicos de rua e de artistas plásticos – entre eles Alexandre Farto Vhils, criador de street art reconhecido a nível internacional, convidado pela Fundação EDP, que apoia as Aldeias Artísticas.

Segundo Marco Domingues, “o objectivo é envolver a comunidade ao máximo”. É a população que vai gerir os espaços de comes e bebes. O Ti’ Vaz pode dar a provar a jeropiga na adega e a Dona Odete, de 72 anos, pode fazer bolos para vender à porta de casa.

Quando o Há Festa no Campo terminar, no final de 2016, todas estas iniciativas ficarão imortalizadas num filme-documentário, que a organização espera poder divulgar na televisão. E replicar a experiência noutro lugar.

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