O Palácio do Conde do Bolhão
Conforme foi recentemente anunciado, o antigo palácio do Conde do Bolhão, localizado na zona central da cidade do Porto, vai ser recuperado e adaptado, a fim de nele se instalarem quatro companhias teatrais, para além de um centro dramático de formação e produção teatral. A anunciada reutilização deste palácio trouxe à superfície a memória de um personagem que, por vários motivos, se tornou celebre na sociedade portuense de meados do século passado.António Alves de Sousa Guimarães, único barão e conde do Bolhão, era conhecido na época como possuidor de uma das mais sólidas fortunas do Porto, surgindo, em 1856, entre os 40 maiores contribuintes da cidade, ao lado do conhecido capitalista António Bernardo Ferreira, filho de dona Antónia Adelaide Ferreira, a "Ferreirinha da Régua". A edificação do seu palácio - considerado uma das mais luxuosas residências da cidade, com um grande quintal e jardim, que alcançava a Rua de Fernandes Tomás, onde o seu proprietário também possuía algumas casas - custou mais de 70 contos de reis, uma quantia apreciável para a época. O título de Barão do Bolhão foi-lhe concedido em 1851 por D. Maria II, a qual, no ano seguinte, juntamente com a respectiva comitiva, se hospedou no palácio, por ocasião de uma visita ao Norte do país. A hospitalidade então prestada à real figura terá constituído o motivo pelo qual veio a ser recompensado com o título de conde do Bolhão, por decreto de 1855, assinado já por D. Fernando - em virtude de a rainha ter morrido em 1853, apenas com 34 anos, durante o parto do seu décimo primeiro filho, regente na menoridade do futuro D. Pedro V.Ao mesmo tempo que conquistava a sua nobilitação, Sousa Guimarães perdia no terreno familiar. Tendo casado em 1835 com Francisca Fausta do Vale Pereira Cabral, irmã de um grande capitalista e nogociante do Porto, vê o seu casamento desfeito em 1852, quando aquela abandona o lar, acusando o marido de tirania conjugal e maus tratos físicos. A "questão conjugal do barão do Bolhão", denominação pela qual ficou conhecido este escândalo, dividiu a sociedade portuense da época tendo o barão, no entanto, conhecido a solidariedade de algumas figuras célebres, como Camilo Castelo Branco, seu amigo pessoal. O conhecido "gazetilheiro" saiu em defesa de Sousa Guimarães, com a publicação no "Nacional" de um extenso artigo, intitulado "Revelações", o qual lhe acarretou a fúria dos sobrinhos da baronesa, os irmãos Sousa Guedes, traduzida numa agressão ao romancista, à porta da sua residência na rua de Santo António.Não obstante ter ganho notariedade por hospedar a comitiva real - realce-se que só a partir de 1861 é que os monarcas portugueses passaram a dispôr, no Porto, de uma residência, o Palácio dos Carrancas, após D. Pedro V o ter adquirido à baronesa de Nevogilde pela quantia de 30 contos de reis -, o palácio do conde do Bolhão ficou, no entanto, célebre pelas festas e bailes que acolheu, promovidos pelo seu proprietário. O sucesso que estas realizações provocavam na sociedade da época foi diversas vezes enaltecido na imprensa, nomeadamente pela pena do próprio Camilo Castelo Branco. Após a seperação da mulher, as festas desapareceram do palácio do magnata, o que levou Camilo, em 1857, a lamentar-se nas páginas do "Nacional", declarando que, "depois que se facharam os faustosos salões do Sr. conde do Bolhão, esmoreceu aquele ânimo largo dos anfitriões que engrandeciam a terra. Quem conheceu, há dez anos, o Porto, pasma dos sintomas de decadência em que hoje está". É, aliás, Camilo Castelo Branco quem, num artigo publicado em 1851 no "Jornal do Povo", nos descreve, do seguinte modo, a faustosidade oriental do palácio do conde do Bolhão: "Para os que a observam de longe, a fachada do edifício é pelas proporções grandiosas e formas de capricho uma dessas criações de Sufflot, no reinado de Luís XV, em que a arquitectura, depurada da insipidez italiana, ostenta um carácter entre o severo e o risonho - entre a face de um templo grego e o fronspício gracioso de um castelo na França de Francisco I". E, prossegue o romancista, numa elogiosa referência ao co-proprietário da vizinha fundição do Bolhão, que nessa época se encontrava envolvido na luta pela legalização da Associação Industrial Portuense: "Sobre os cinco arcos que constituem as cinco entradas, ergue-se o primeiro andar de cinco janelas rasgadas, terminando em ogivas com os seus parapeitos de gradaria dourada, é de si tão perfeita obra, que faz gosto admirar ali até que progresso as nossas fábricas podem ser alteadas, quando as administrações forem presididas por homens de talento artístico como o Sr. José Vitorino Damásio". Passando à discrição dos interiores do palácio, Camilo detém-se na sala de visitas - "Um belo sonho com palácios de fadas; um dourado quiosque para sultanas na hora da sesta" -, salientando que "o Sr. Resende, distinto pintor deste país malfadado para o mérito, concebeu e executou na tela que fecha o fogão desta sala, um grupo de aldeões, que em torno da fogueira, parecem conversar em santa paz nos trabalhos rústicos do dia seguinte. [...] A sala de baile é adornada por móveis que reúnem riqueza, simplicidade e delicadeza no gosto. Antes dos emblemas de dança e música, que portentosamente decoram os excelentes estuques, é muito para captar o belo fantástico que o Sr. João Baptista Ribeiro personalizou em alegorias adaptadas ao uso daquele recinto". Referindo-se à capela do palácio, Camilo destaca "os quatro velhos quadros de muito valor", embora considere que, contrariamente à opinião do seu amigo Sousa Guimarães, que atribui um deles a Grão Vasco, "ser talvez muito duvidoso julgá-lo tal, mas por isso, não é menos incontestável o seu grande valor". Quanto ao quintal, Camilo estima que a "estufa de ferro é a primeira deste país", salientando que o "asseio nas menores coisas do serviço doméstico, como cisternas e capoeiras, é mais parte a quinhoar da ideia luminosa que transluz no todo". No que respeita à história do conde do Bolhão, desgraçadamente - para além do abandono da mulher e de ter de encerrar o salão de festas do seu palácio - ver-se-á também a contas com a justiça. Em 1860 foi acusado de traficar moeda falsa para o Brasil, processo do qual veio a ser despronunciado, não obstante o escândalo permanecer bem vivo na opinião pública da cidade durante anos. Apesar de ilibado, o conde do Bolhão nunca mais conheceu os tempos faustosos que o rodearam no passado. Algum tempo depois a falência bateu-lhe à porta, obrigando-o a ceder o palácio - então avaliado em 27 contos de reis -, incluindo o jardim, quintal e os prédios da rua Fernandes Tomás, ao seu principal credor, José Pereira Loureiro, visconde de Fragosela, que em 1876 já era o seu proprietário.