No Regueirão dos Anjos, convive-se sobre rodas e a oficina é de borla

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A Cicloficina dos Anjos funciona todas as quartas-feiras das 19h às 23h na Rua Regueirão dos Anjos, número 69 Fotos:

Com a crise e o aumento dos combustíveis, pedalar é cada vez mais uma opção. Alguns destes ciclistas reúnem-se na Cicloficina dos Anjos: um espaço de convívio que oferece assistência gratuita às bicicletas

Às quartas-feiras, entre o trânsito do final da tarde, as bicicletas são as primeiras a cortar a faixa de chegada - pinceladas de cores, formas geométricas e boa disposição compõem o retrato da Rua Regueirão dos Anjos. Por baixo da ponte da rua principal, o número 69 já tem o portão verde aberto às 19h. É dia de Cicloficina.

A Cicloficina dos Anjos, em Lisboa, é um espaço onde todos os ciclistas podem reparar as suas bicicletas. No entanto, os rostos que aparecem semanalmente na Rua Regueirão dos Anjos são quase sempre os mesmos. O conceito ainda é desconhecido por muitos. Rosa Félix, uma das responsáveis pela cicloficina, conta as origens deste espaço: o seu amigo João Branco esteve numa cicloficina em Roma (Itália), que funcionava diariamente. Embarcou com a ideia e insistiu em fazer algo semelhante por cá.

A ideia não era nova: já tinha existido uma cicloficina em Lisboa. Tiago Carvalho, parceiro de Rosa na organização da iniciativa, aponta algumas falhas que ditaram o seu fim: "Funcionava onde calhava - jardins e praças - e abria mensalmente. Quando chovia, era impossível ser realizada." Rosa acrescenta: "Quando uma pessoa tinha um problema na roda, tinha de estar à espera um mês e por isso acabava por ir a uma loja."

No Verão de 2009, quando surgiu a Associação RDA, esta nova cicloficina ganhou rodas para andar, sendo a primeira e única a abrir portas todas as semanas. Nos dias de maior calor, a cicloficina acaba por sair à rua.

Tudo começou em Março de 2011. Rosa conta que, inicialmente, não havia grande afluência, "vinham só quatro ou cinco pessoas arranjar as suas bicicletas", mas "a notícia foi passando de boca em boca e, hoje em dia, chegam a estar vinte ou mais. Até fazem fila e, às vezes, já nem há suportes que cheguem".

Esta crescente adesão à cicloficina é vista como consequência do aumento do preço do gasóleo e dos passes dos transportes públicos. "Quer queiramos quer não, não é bem uma adesão à bicicleta como opção. Muitas vezes, quem lidera ou quem força essa opção é a conjuntura económica. Mas a bicicleta é o meio de transporte ideal para a cidade e deve ser estimulado", reforça Tiago, garantindo que a bicicleta poderá até ser mais rápida do que todos os outros, caso se tenha conhecimento do melhor percurso e uma boa visão da cidade.

Assistência gratuita

A Cicloficina dos Anjos é uma alternativa às lojas de arranjo, oferecendo gratuitamente um serviço de assistência técnica simples de bicicletas. Através de mãos experientes, chega a ser possível montar uma bicicleta com peças que são doadas.

Com luvas guardadas nos bolsos das calças, os voluntários da cicloficina entram e saem da associação num passo apressado. João Marques é um dos mecânicos que fazem parte desta equipa desde o Verão de 2011. Cedo se interessou por este veículo de duas rodas: "As bicicletas acompanham-me desde a minha infância." Tomou conhecimento da iniciativa num dos passeios da Massa Crítica - evento que ocorre na última sexta-feira de cada mês, em várias cidades de todo o mundo, onde várias pessoas levam as suas bicicletas, patins ou skates e passeiam na via pública, na luta por melhores condições para a utilização destes veículos. Levou apenas quatro dias até se tornar voluntário: "Na Massa Crítica disseram-me que podia aparecer na Cicloficina dos Anjos e depois, no Facebook, deram-me a morada. Na quarta-feira cá estava eu. Mal cheguei, pus logo mãos à obra e comecei a trabalhar."

Não são apenas os voluntários que consertam as bicicletas. Qualquer pessoa pode aprender a arranjar o seu próprio veículo, através da troca de conhecimentos com os mais experientes. E a maioria acaba mesmo por sujar as mãos.

As peças e ferramentas têm de vir de algum lado - a cicloficina conta com apoios, patrocinadores e doações solidárias da comunidade ciclista. "No início, tivemos a dificuldade de não haver peças. O pessoal aparecia e precisava de mudar uma pedaleira e não tínhamos. Depois conseguimos arranjar peças que algumas lojas doaram. Entretanto, com o projecto a crescer, vinham mais pessoas e traziam coisas que tinham na garagem", conta Rosa.

O convívio

A cicloficina não é apenas um espaço de reparação de bicicletas. É também (e essencialmente) um espaço de convívio. Dezenas de pessoas de várias nacionalidades vão chegando de bicicleta e juntam-se a conversar. Alguns acabam mesmo por ficar noite dentro e jantam nos passeios. É o caso de Márcio Severino (25 anos), Maja Spilkucic (24 anos) e Ricardo Bernardo (33 anos).

Ricardo já frequenta a cicloficina há mais de um ano e mora com Maja, que está de passagem por Lisboa, em Erasmus. Já Márcio foi informado pelo seu amigo (e mecânico) João Marques. Conheceu Maja quando, juntos, arranjaram uma bicicleta enferrujada. Para além da partilha de conhecimentos e experiências, estes três amigos utilizam a bicicleta diariamente para ir para a faculdade, para o trabalho ou até para passear.

O ambiente da cicloficina "é excelente, é de convívio, é conhecer pessoas novas, concretizar amizades. A melhor publicidade é de boca", reforça João. A divulgação através de redes sociais e a criação de um blogue próprio aliam-se ao poder do "passa a palavra". "Começou a aparecer mais gente interessada. Isto começou a ganhar vida e surpreendia-nos cada vez mais a afluência. Começámos, então, a pensar que a cicloficina deveria ter uma espécie de identidade, uma marca, e tornámo-la mais personalizada", refere Tiago.

Para conseguir mais alguns trocos, a cicloficina também organiza eventos que dão protagonismo à bicicleta. A Corrida Alicate é uma delas: "Uma corrida inventada pelos estafetas de Nova Iorque, em que se tem de percorrer vários pontos da cidade no menor tempo possível. Para isso, é preciso fintar bem o trânsito e saber os melhores caminhos. Há muita adrenalina e muita participação", explica Tiago.

São quase 23h e apesar da escuridão, as bicicletas, nos passeios, dão outro brilho à rua. A população já se resguardou em casa, mas a comunidade da cicloficina resiste ao cansaço da noite. Em breve, cada um guiará a sua bicicleta até casa. Para a semana há mais.

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