Almaraz

Quatro hectares entre Cacilhas e o centro de Almada resistiram às pressões do urbanismo e revelaram segredos com milhares de anos. As escavações, contudo, estão paradas

O nome por que a cidade ficou conhecida é árabe mas pelo Almaraz passaram povos de várias épocas, desde o século VIII a.C., rendidos às condições naturais da encosta sobre o Tejo e com visibilidade de 360 graus sobre o que é hoje Lisboa, Sintra e toda a margem sul, até à serra da Arrábida. Ironia da história, os quatro hectares em pleno centro de Almada sobreviveram às pressões típicas do século XX e constituem hoje um dos mais importantes sítios arqueológicos da área metropolitana e até do país. Uma das razões para o isolamento foi a existência próxima da Gafaria de São Lázaro, com o Almaraz a servir de "tampão" aos que temiam o contacto com os leprosos.
A zona está agora a ser alvo de um Plano de Enquadramento Estratégico, encomendado pela Câmara de Almada, para definir a melhor utilização a dar ao espaço. Para ali chegou a estar prevista uma urbanização, mas a autarquia decidiu-se pela compra do terreno, nos anos 90, por não restarem dúvidas quanto à importância da estação e quanto ao muito que ainda está por escavar.
"Devemos conhecer um por cento do Almaraz", sublinha Luís Barros, arqueólogo da autarquia. Esse "um por cento", imagine-se, são já vários milhares de vestígios.

Um sítio descoberto ao acasoQuando começou a fazer as primeiras prospecções, em 1988, Luís Barros nem suspeitava do que a terra iria trazer à superfície. "Foi por mero acaso que descobrimos o sítio."
A quinta estava vedada e servia - como ainda hoje acontece - para pequenas hortas dos antigos militares da GNR, cujo quartel se situa a escassos metros. Durante uma visita à antiga fábrica de óleo de peixe do Ginjal, no âmbito de um trabalho de arqueologia industrial, os técnicos repararam numas covas abertas na rocha onde repousavam cerâmicas e conchas.
"Começámos a vir para cima e fomos descobrindo mais cerâmicas, de cor muito vermelha e ar relativamente moderno, o que nos levou a pensar que era material medieval."
O mais extraordinário, porém, estava por descobrir. "Os primeiros materiais não eram muito exuberantes", lembra o arqueólogo. "Achámos logo estranha a quantidade, mas quando começámos a escavar ficámos, de facto, impressionados."
Aos vestígios medievais juntavam-se materiais do Neolítico Final, do Bronze Final e da Idade do Ferro. Mais tarde, encontraram ainda materiais romanos republicanos, com a mais valia de estarem bem conservados. O que mais surpreendeu os técnicos foram, porém, os vestígios egípcios.
"Encontrar um amuleto egípcio não é uma coisa que aconteça todos os dias", revela Luís Barros, sublinhando ainda a existência de cerâmicas coríntias "extremamente raras mas, infelizmente, muito fragmentadas".

30 mil fragmentos na primeira sondagem
Feitas as contas, só na primeira sondagem arqueológica, realizada em 1989, foram encontrados 30 mil fragmentos. No fosso que circunda a antiga cidade do Almaraz, conta Luís Barros, há milhões de cacos. "Há alguns estudos feitos sobre estes materiais, que são de todas as proveniências, sobretudo orientais."
A equipa tem-se dedicado à conservação, lavagem e reconstrução das peças, mas o trabalho parece, segundo Luís Barros, interminável. "Quando temos 50 peças é fácil estudá-las; quando temos 500 mil é mais complicado, e esse tem sido o problema do Almaraz."
Por "várias vicissitudes, municipais e outras", as escavações têm estado paradas. "Estamos numa fase de reestruturação do departamento e a própria divisão de museus e património cultural não tem chefia, neste momento", explica o arqueólogo. "Mas estamos a acertar as coisas." O último trabalho sobre o Almaraz publicado no site do Instituto Português de Arqueologia data de 2001.
Um cenário bem diferente do que aconteceu no início dos anos 90, com as verbas disponibilizadas pelo Plano de Reabilitação Urbana de NovAlmadaVelha a darem um grande impulso à investigação.
"Tivemos aqui grupos de jovens nacionais e estrangeiros a participar nas escavações", conta Luís Barros. Foi no decurso desses trabalhos que foi posta à vista uma parte da zona habitacional do Almaraz, cujas origens remontam ao séc. VII a.C.
Nesta zona foram também encontradas cerâmicas e materiais metálicos, como pulseiras e fíbulas (uma espécie de alfinetes de dama), o que permite arriscar que o Almaraz era uma cidade ocupada por uma elite ou que o nível de vida da população era elevado.
"A arqueologia de hoje não é a arqueologia do caco", frisa Luís Barros. "O nosso objectivo é chegar a um enquadramento social e político, e aqui há vestígios que permitem concluir que havia uma organização política consistente e relações comerciais com vários povos."
O Almaraz era o centro de toda a região e o povoado da outra margem, Lisboa, ocupava um lugar muito menos relevante. "Lisboa não tinha, na época fenícia, condições para habitação desta qualidade, porque era uma zona pantanosa."
Foi com a chegada dos romanos e por ocasião das guerras púnicas que a lógica se inverteu. "Sendo o Almaraz muito ligado ao mediterrâneo oriental, certamente alinhou com Cartago, e a partir do momento em que os romanos conseguiram derrotar os cartagineses, o Almaraz desapareceu e cresceu em Lisboa a cidade com o conhecimento da arquitectura que os romanos já dominavam, construindo sobre a zona pantanosa."

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