No Mali pode criar-se uma pátria tuaregue ou um narco-Estado?
Ex-soldados de Khadafi chegaram "com adrenalina, dinheiro e armas" para conquistar o Norte. Os laicos só querem a independência, mas os salafistas querem islamizar. A culpa é da Argélia, diz um antropólogo
Vai o Mali, nação da África Ocidental maioritariamente muçulmana, transformar-se num Estado falhado sob controlo da rede terrorista Al-Qaeda? O britânico Jeremy Keenan, que estuda os povos nómadas dos desertos do Sahel e do Sara, tem uma teoria: esta já não é uma revolta independentista contra um exército em fuga, mas uma luta que opõe tuaregues "laicos e democráticos" a "criminosos islamistas, recrutados pelos serviços secretos argelinos", para garantir um "multimilionário tráfico de cocaína na região."
A teoria de Keenan "está documentada até ao mínimo detalhe" num livro que vai publicar em breve, The Diying Sahara, e num outro já editado, The Dark Sahara - America"s War on Terror in Africa. "A grande dúvida é saber se o MNLA [Movimento Nacional para a Libertação do Azawad] vai - e pode - derrotar a facção dissidente Ansar Dine [Defensores da Fé], parceira da Al-Qaeda no Magrebe Islâmico [AQMI], disse ao PÚBLICO o professor de Antropologia Social na School of Oriental Studies (SOAS), em Londres.
A mais recente rebelião tuaregue no Mali, lançada a 17 de Janeiro, está a alarmar os países fronteiriços e as potências ocidentais, em particular a França, receosa de que a antiga colónia, governada por uma junta militar após um golpe de Estado que derrubou o Presidente Amadou Toumani Touré, se torne num santuário da Al-Qaeda. A AFP dá conta de que "os islamistas estão em vantagem", em particular na cidade de Tombuctu, enquanto os conspiradores em Bamaco, a capital, "procuram uma saída honrosa" para o vazio político e uma crise humanitária, com mais de 200 mil deslocados internos.
Na sua terceira declaração desde o golpe de 22 de Março, o Conselho de Segurança da ONU manifestou ontem preocupação de que o avanço dos extremistas fragilize ainda mais a situação de segurança. Apelou à reposição da ordem constitucional, apoiando a Comunidade Económica de Estados da África Ocidental (Cedeao), que fechou as fronteiras com o Mali, insatisfeita com a resposta ao ultimato que deu ao capitão golpista Amadou Sanogo para restaurar as instituições democráticas.
Terça-feira, o chefe da diplomacia de Paris, Alain Juppé, declarou: "O Ansar Dine está estreitamente ligado ao AQMI [que tem reféns franceses e outros europeus] e é preciso uma mobilização contra o perigo islamista no Sahel. Alguns rebeldes podem contentar-se com o controlo do Norte, mas outros talvez sejam tentados a apoderar-se de todo o Mali" para convertê-lo numa teocracia.
Desde o início da revolta que o MNLA (2000 a 3000 combatentes) se tenta dissociar do grupo Ansar Dine (cerca de 300). O seu porta-voz político, Moussa ag Assarid, garante que o movimento já controla todo o território que pretendia (Gao, Kindal e Tombuctu) para "estabelecer um Estado secular e democrático que integre todos os grupos étnicos do Norte do Mali, não apenas os tuaregues, porque o Norte é um mundo diferente do Sul. Durante 50 anos, nunca fomos verdadeiramente malianos e só nos interessa a independência." O MNLA anunciou que interrompia os combates, para negociar com as autoridades do Mali e a Cedeao.
Quanto ao Ansar Dine, deixou bem claro, através do seu chefe, Iyad Ag Ghaly, que não lhe basta a independência do Norte - ambiciona chegar ao Sul e proclamar a Sharia (lei islâmica) em todo o país. Em Tombuctu, há relatos de estes salafistas patrulharem as ruas aos gritos de "Allah Akbar" (Deus é grande), içando bandeiras negras, destruindo lojas que vendem bebidas alcoólicas, forçando as mulheres a cobrir a cabeça e ameaçando cortar as mãos de ladrões. Com um percurso errático, Iyad Ag Ghaly foi conselheiro do Governo maliano na Arábia Saudita, de onde foi expulso por ser ainda mais radical que os teólogos do reino.
Jeremy Keenan descreve o MNLA como "um movimento de libertação predominantemente tuaregue" e acusa Ghaly de estar "a soldo dos serviços secretos argelinos".
Em Tombuctu, "os habitantes identificaram forças especiais argelinas enviadas para apoiar o Ansar Dine e a AQMI". Uma fonte de Keenan usou a expressão "cavalo de tróia argelino", cujo objectivo seria "enfraquecer o MNLA, mantendo a área em disputa sob domínio da Argélia, para assegurar o controlo de um gigantesco tráfico de cocaína". A droga "vem da América do Sul para a Europa através do Mali - uma indústria de muitos milhões de dólares".
"A Al-Qaeda é sobretudo propaganda", insiste Keenan. "Claro que há terrorismo, mas é terrorismo de Estado, da Argélia, através dos seus satélites islamistas. Há dois ou três dias, o MNLA forçou o Ansar Dine a recuar, mas depois chegaram os argelinos e Iyad Ag Ghaly retomou a iniciativa. A situação permanece volátil e muito perigosa."
Alguns analistas admitem que o Norte do Mali se torne um "Estado tuaregue", reconhecido ou não, mas Keenan é céptico: "Estamos muito longe de um novo Estado. Nunca existirá enquanto os serviços secretos argelinos interferirem, com "o beneplácito" de americanos, franceses e britânicos."
Mas concede que a revolta tuaregue era inevitável, com ou sem o derrube de Touré. "O exército já tinha sido derrotado quando deu o golpe. É pequeno mas com demasiados generais, interessados só na corrupção, também eles beneficiários do tráfico de droga e com negócios protegidos pelo Estado e pela Argélia."
Sobre uma eventual intervenção militar exterior, Keenan adverte: "Poderá ser vista como uma guerra racial, com potencial para atrair tuaregues de países vizinhos que, apesar de não serem um grupo étnico com unidade política, facilmente se juntariam ao conflito. Não acredito que um contingente da Cedeao possa enfrentar os tuaregues numa vasta área inóspita que eles conhecem como ninguém. São guerreiros duros, sem medo de morrer. Chegaram da Líbia, onde serviram o exército de Khadafi, com adrenalina e muito dinheiro, bem armados e treinados, dizendo para si próprios, "se temos de ser soldados que não seja no campo dos vencidos, mas na construção do nosso Estado"".