Amor em tempos de luta
Não tinham dia dos namorados nem aniversário de namoro, muitas vezes não tinham chegado a namorar. "Mergulhar" queria dizer ter uma vida a fingir, muitas vezes até no amor. Outras vezes, a clandestinidade unia e a dedicação ao casal era como a dedicação a uma causa: para a vida. De casa em casa, com filhos ou com saudades deles, na intimidade também se fazia a história da resistência do PCP à ditadura.
"Amor" s. m.
1 sentimento de
afecto profundo;
2 atracção;
3 acto sexual;
4 pessoa muito
simpática;
5 relação amorosa
6 dedicação (a uma causa ou actividade)
Dicionário da Língua
Portuguesa, Porto Editora
"Mergulhar" queria dizer passar à clandestinidade. Uma "instalação" era a casa onde iria viver o/a clandestino/a. Às vezes tinham de fazer "cortes", "saltar" e mudar para outra "instalação". O "controleiro" era a pessoa responsável pelo clandestino e muitas vezes coincidia ser a pessoa que apresentava um camarada a outro para que montassem juntos uma "instalação". Encontravam-se por "credenciais", "sinais", "senhas". Comportavam-se de acordo com as melhores práticas "conspirativas". Tratavam-se por "pseudónimos". E depois, porque eram homens e mulheres, para além de camaradas e militantes do Partido Comunista Português (PCP), que durante os anos da ditadura conseguiu montar um aparelho clandestino extraordinariamente sofisticado, sabiam o que queria dizer companheirismo, paixão, desejo, maternidade, paternidade, família, esperança, desespero, medo, felicidade, zanga, conciliação, e queriam também viver os conceitos que faziam o dia-a-dia dos outros.
A história de resistência do PCP não é só uma história de organização, de métodos, de agitações, de actividades de esclarecimento, de produção de literatura panfletária e revolucionária, de números do Avante!, do Militante, de folhetos a dizer o que fazer "Se fores preso, camarada". É uma história que se fez dentro de casas, de quartos, à hora de jantar, em prime-time quando ainda nem havia televisão. A luta fez-se também em casal, em família, com crianças, na intimidade de muitos homens e mulheres, muitos deles que nunca chegaram a ser grandes figuras do partido nem se tornaram casais míticos.
Alguns nunca foram presos, mas todos viveram limitados nos seus movimentos. Os sonhos individuais - de uma profissão, de uma casa própria, de romances como os dos livros - desapareciam para sonharem colectivamente. Para uns, a vida de casal na clandestinidade era o que os fazia sentirem-se mais próximos da normalidade. Para outros, lembrava-os ainda mais que, por muito que um dia ganhassem a luta, tinham perdido pequenas batalhas.
1. A troca de alianças
Faustina Barradas
e José Carlos Almeida
Havia sempre muito movimento à porta da Maternidade Júlio Dinis. Entravam mulheres, saíam famílias. Ela pôs-se à porta da maternidade de mala na mão, sabendo que ninguém desconfiaria de uma rapariga à porta da maternidade ainda que não estivesse grávida. Tinha posto um lenço azul como lhe tinha sido indicado. Ela procurava um homem com um jornal debaixo do braço. Não o Jornal de Notícias ou outro jornal comum de se ver lendo no Porto, mas O Século, que era um jornal de Lisboa. Era esse o sinal que o homem traria, um homem sobre o qual não sabia nada, nem sequer o nome ou a idade, quanto mais se era simpático, bonito, inteligente, ou bruto, feio, desinteressante. Sentia o cheiro do fumo das castanhas de uma vendedora ali à porta. Era Novembro. 1965.
Reparou então numa rapariga que passava, alta, vistosa, muito bonita, e que levava vestido, também, um lenço azul. A seguir, reparou no homem alto e bonito que a seguia. Por alguma razão, o homem olhou para trás. Olhou para ela. Deu meia volta, aproximou-se e perguntou se ela sabia onde estava o senhor doutor tal. E ela - que se não fosse a pessoa que ele procurara teria dito que não sabia e teria estranhado que não perguntasse pelo médico directamente na maternidade - respondeu com segurança: "Sim, mora no Lavradio." A prova final era uma credencial da qual cada um trazia metade e as metades completaram-se.
José Carlos Almeida tem agora 80 anos e continua a ser um homem alto e bonito. Faustina Barradas, aos 67, continua a ter cara de miúda, e é muito mais baixa do que ele. Nunca deixaram de trabalhar para o Partido Comunista Português e continuam a ir quase diariamente à Quinta da Atalaia, que todo o ano, sem Festa do Avante!, é um lugar tranquilo, campestre.
Ela emociona-se facilmente, vai limpando as lágrimas e ao mesmo tempo fala cheia de energia. Ele fala pausadamente e, uma gentileza que gosta de fazer, conta as melhores piadas nas alturas certas.
Faustina mostra a aliança que tem no dedo. Quando foram comprar as alianças, ela ainda não sabia o nome verdadeiro dele nem nada sobre a sua identidade. Mas achou-o simpático, bonito, inteligente. Ele só lhe disse muitos anos depois que soube logo quem ela era e porque é que não tinha continuado a seguir a rapariga alta, vistosa, com o sinal do lenço azul, e tinha ido ter com aquela rapariga baixinha, com cara de criança, que aos 21 anos não parecia ter mais de 17. Ele reconheceu-a de uma fotografia que tinha visto alguns anos antes em casa de uma camarada, a mãe dela, de quem tinha chegado a ser "controleiro".
Depois daquele primeiro encontro, ela alugou um quarto numa pensão em frente de onde fica hoje a Casa da Música, e todos os dias caminhava a pé para a Maternidade Júlio Dinis que não ficava muito longe. Encontraram-se diariamente durante 12 dias para irem "bater" a zona de Rio Tinto e Gondomar onde tinham indicações para montarem uma "instalação" clandestina do Partido Comunista Português.
Domicília Costa
A aliança de Domicília ficou guardada durante uma temporada, em que esteve doente, e só a pôs no dedo no dia em que dormiu pela primeira vez na mesma casa que o camarada de quem devia fingir ser "esposa", e que só tinha visto uma vez. Ela tinha 20 anos e ele 27. A casa tinha um quarto de casal, onde ele dormia; e ela ficava no divã da sala, como tinha sido sempre seu hábito. Aos 20 anos, faltava-lhe maturidade em quase tudo, mas não lhe faltava experiência da clandestinidade. Tinha crescido clandestina com os pais, tinha aprendido como se imprimiam jornais e folhetos de propaganda, tinha aprendido como se defendia uma casa, conhecendo os vizinhos mais do que aquilo que os vizinhos alguma vez a conheceriam a ela.
Os "cuidados conspirativos", as regras que um funcionário do partido tinha de aprender quando "mergulhava", eram para ela naturais, tinham feito parte da sua vida desde criança. Assim como era natural que lhe dessem uma tarefa de montar uma casa, o que implicaria deixar os pais e viver com um camarada. Pôs a aliança sem questionar, da mesma maneira que tinha deixado de brincar com outras crianças sem questionar, da mesma maneira que tinha já entendido que seria difícil alguma vez encontrar um companheiro fora do partido.
Ela saiu do Porto para a Baixa da Banheira. Tratava da casa. Esperava por ele quando ele estava fora. Mesmo quando ele estava em casa, muitas vezes ficava no quarto a trabalhar. Conversavam ao jantar. Ela saía para fazer compras, bom dia, boa tarde, nas lojas e aos vizinhos. Sentia-se só quando estava sozinha e durante muito tempo, quando não estava sozinha, vivia uma solidão a dois. Nos últimos três anos em casa dos pais tinha feito uma vida quase normal. Tinha ido trabalhar por o partido considerar que ela precisava de ver com os seus próprios olhos o mundo do trabalho e dos patrões, aquilo que lia no Avante! e no Militante que ajudava o pai a imprimir enquanto tiveram a tipografia. Fazia costura e gostava de ouvir as colegas contarem das idas aos cinemas e dos namoros. Ela nunca tinha namorado.
O mais parecido com um namoro era isto: horas em que ela e o camarada da casa ouviam as rádios clandestinas; por causa dos vizinhos, não podiam pôr o volume alto e tinham de se aproximar do rádio e um do outro. Até que, um dia, ele a beijou. Ela chorou e fugiu.
Domicília Costa vive hoje naquela que foi a última casa clandestina dos seus pais em Vila Nova de Gaia. Tem em casa ainda guardadas as alianças dos seus pais. Lembra-se que eles só começaram a usar aliança quando ela já tinha 11 anos, porque os camaradas começaram a dizer que seria mais adequado conspirativamente, era raro naquela época um casal não usar aliança. Como os pais nunca deram importância às alianças, também ela não deu e, quando se casou verdadeiramente com um exilado político que conheceu em Paris antes do 25 de Abril, decidiram não usar aliança.
Raimundo e Maria
(ou Carlos e Leonor)
Ele: Ia com a Mariana - que mais tarde soube que era a Ana - que também era filha de clandestinos. Fomos por Trás-os-Montes, a salto. Depois da fronteira, dormimos numa pensão, e depois seguimos de comboio até Paris. Levávamos passaportes falsos. De Paris fomos para Moscovo. Passadas três semanas, chegou a Leonor - que por acaso era a Maria. E ela trazia uma aliança.
Ela: Não era uma aliança, era um anel!
Ele: Mas tinha a pedra virada para baixo e eu pensei: tão novinha e já casada. Os camaradas disseram-me que eu tinha de tomar conta das meninas e puseram-nos os três juntos, elas ficavam num quarto e eu noutro. A escola [central da juventude] ficava numa floresta tchekoviana, com todas as cores: vermelho, amarelo, castanho, verde-escuro. Estudávamos Economia Política, Filosofia, Materialismo Dialéctico, História do Movimento Comunista Internacional, História do Movimento Sindical e Língua Russa. Na escola havia estudantes de várias nacionalidades da União Soviética e do mundo todo. Muitos da América Latina.
Ela: Menos Brasil.
Ele: Falava-se muito castelhano, com vários sotaques: argentino, mexicano... Antes de nos decidirmos um pelo outro, a Maria ainda namorou um mexicano...
Ela: Que mentira!
Ele: Não chegou a namorar porque eu fazia recomendações. Eu ainda namorei com uma russa.
[São interrompidos pelo telemóvel a tocar. A Maria atende. É a filha mais velha que se chama Leonor por ter sido esse o pseudónimo da Maria quando conheceu Raimundo.]
Ele: Vou contar duas coisas, uma boa e uma má. A má é que no final do curso tínhamos direito a uma viagem. E a nossa intérprete perguntou: "Onde é que os "mininos" querem ir?"
Ela: Aquilo chamava-se a "prática".
Ele: Disse ela que o habitual era os estudantes escolherem o Cáucaso - pelas águas. Mas eu disse que gostava de ir ver as grandes barragens na Sibéria, porque tinha estado a estudar hidráulica [em Lisboa, no Técnico] e interessava-me. Só que quando estávamos para partir recebi ordens para regressar imediatamente a Portugal para começar a reorganizar o braço da luta armada.
Ela: Ele é que perdeu, nós fomos.
Ele: A coisa boa - para a Maria - é que depois de ela ter regressado a Portugal, veio ter comigo a um encontro, passou a viver comigo, e quando a PIDE foi à casa dos pais dela não a apanhou.
Ela: Os meus pais foram presos em Agosto de 1968. No dia em que eles mudaram de casa clandestina foi o dia que tive o encontro com ele. O meu pai foi-me levar.
Ele: Foi junto da Feira Popular.
Ela: Cruzaram-se, ele e o meu pai, mas não se conheciam.
Álvaro Pato
O casamento realizou-se em casa de um casal de camaradas que vivia também no Barreiro. Fizeram tudo como num casamento: até com bolo. Os camaradas foram madrinha e padrinho e deram-lhes as alianças para trocarem. Depois ela voltou para casa da família. Ele ainda foi a salto a um encontro da juventude comunista na União Soviética, e passou algum tempo sozinho em quartos alugados. Depois montaram uma casa clandestina juntos no Seixal e pouco depois mudaram para uma casa na Cotovia, em Sesimbra. Era uma bela casa para começar a vida a dois. A profissão dele nessa altura era desenhador. De vez em quando, saía de casa com um rolo de papel debaixo de braço como quem ia entregar o seu último trabalho. Afastando-se da casa suficiente, deitava o rolo fora, e ia fazer o verdadeiro trabalho dele, que era a organização da juventude comunista da Margem Sul. Ela esperava-o, tratava da casa e da vigilância da vizinhança enquanto ele estava fora. Ela chamava-lhe Pedro. Não fazia ideia de quem ele fosse, apesar de ter uma vez visitado com um grupo de solidariedade aos familiares de presos políticos os avós dele, não sabendo que eram avós dele, mas os pais de Octávio Pato.
Ele sabia mais sobre ela. De alguma forma tinha-a escolhido. Tinha ido à casa da família pouco depois da decisão de entrar na clandestinidade e de se ter levantado a questão de ele ter de ter uma companheira, porque era pouco usual um homem viver sozinho. Tina era a irmã mais velha, com experiência e já com filhos, mas aos 30 e tal anos era talvez demasiado velha para os seus 22 anos e a sua "cara de menino". Não era conspirativamente favorável um homem mais novo com uma mulher mais velha, não era um casal que se encontrasse normalmente, que fosse convincente. Tina tinha uma irmã de 18 anos, Irene. Irene passou então a chamar-se Isabel e aceitou ser não só camarada da casa como companheira dele.
Era 1972, plena guerra colonial, ele por pouco não tinha sido destacado para a Guiné. Decidiu desertar e "mergulhar" quando um alferes lhe disse que na sua ficha da tropa tinha um "PS" carimbado: era "Politicamente Suspeito". Entrou na clandestinidade com a convicção de que seria por muito tempo, e achava que tinha de arranjar uma companheira "para a vida". Não queria só um "faz-de-conta imposto pela necessidade". E, além disso, parecia-lhe estranho viver com uma jovem da idade dele e não assumir a relação. Por isso tinha proposto que fossem verdadeiramente companheiros. Durante os meses que viveram juntos deram-se bem. Mas faltava qualquer coisa. A "convicção", diz, não era o mesmo do que "o amor".
"Se" ela tivesse engravidado e tivessem tido filhos, talvez tivesse sido diferente. "Se" ele não tivesse sido preso, talvez tivesse sido diferente. O mais provável é que ainda assim não tivessem ficado juntos. Mais tarde ele encontrou a mulher certa e sabe que é certa porque ainda estão juntos hoje; tiveram dois filhos e há pouco tempo o primeiro neto. De qualquer maneira, diz, "a história não se faz de "ses"".
Teodósia Gregório
Ela trabalhava na jorna, no campo, desde os nove anos de idade. O pai era seareiro e militante do Partido Comunista. Era ele que lhe lia o que podia sobre a luta dos trabalhadores e era assim que ela ia aprendendo. Aos 19 anos, chegaram junto dela e perguntaram se ela não queria contribuir para que amanhã a vida fosse melhor. Ela pensou que se tivesse algum dia um filho não queria que ele tivesse a mesma vida do que ela. Pensou também no irmão mais pequeno, que ia nos sete anos, e que ela era que criava. Pensou que era preciso fazer alguma coisa pelos filhos de todos. Quando aceitou - sabendo pouco do que era a clandestinidade, sabendo que iria passar tempo sem conviver com a família mas não imaginando que seria por 16 anos - foi com uma dedicação extremosa. Foi com essa mesma dedicação, essa mesma capacidade de se dedicar a uma causa só, que foi mulher de um só homem; isto sem precisar de aliança. O marido foi o primeiro homem com quem morou quando foi defender uma casa clandestina, em 1954.
Teodósia tem agora 77 anos. Continua a ir diariamente à sede do PCP, onde ainda trabalha. Continua a acreditar que é preciso não ser egoísta e que, se cada um der um bocadinho, tudo pode mudar. Traz um lenço às costas como um xaile. Tem uma expressão ligeiramente ingénua e frágil que não condiz com as histórias da mulher que viveu 14 anos na clandestinidade e que nunca deixou uma casa sua ser apanhada.
Não sabe explicar como é que o companheiro deixou de ser um camarada para ser o companheiro, mas foi ao fim de um ano de viverem na mesma casa que disseram a um camarada do partido que queriam ser companheiros e ele concordou e foi como se tivessem casado nesse dia. Faz agora 57 anos, dois dias antes do Dia de São Valentim.
Manuel Martins Pedro
Casou-se de fato emprestado e com uns sapatos comprados numa feira. Ele e a Maria Júlia tinham-se conhecido num baile. Tinha ela tomado a iniciativa. Ele era baixo e magro, mas cheio de energia, tinha uma força que não parecia vir do corpo dele. Ele era filho de um operário da Ajuda, mas por ser franzino o pai achou que não dava para as "oficinas" e quando ela o conheceu ele era então um jovem com um futuro promissor na companhia de seguros A Nacional. Casaram-se no Registo Civil e não fizeram festa. Manuel Pedro tinha o dinheiro à justa para o bilhete dos transportes para regressarem a casa. Recém-casados, na noite de núpcias, comeram só os dois, bacalhau cozido. Menos de 9 meses depois, nasceu a primeira filha.
Quando ele foi preso a primeira vez, depois de ter ido a um congresso pela paz em Moscovo, ela sabia apenas que ele era cineclubista mas não fazia ideia da sua actividade política. Também não perguntava. Pouco tempo depois, ele conversou com ela e explicou-lhe que tinha sido convidado pelo PCP para passar à clandestinidade. Explicou-lhe o que significava passar à clandestinidade. Perguntou-lhe se ela queria vir com ele. E ela respondeu que sim. Ele disse-lhe que iria "mergulhar" primeiro e depois ela seria contactada por alguém do partido para que se juntasse a ele com as duas filhas. A dias de "mergulhar", ele foi de novo preso na grande leva que se seguiu à campanha eleitoral de Humberto Delgado, em 1958.
Maria Brito e Raul Costa
Quando se separou da filha - tinha sete anos - ainda aguentou. Mas quando levaram o mais pequeno, com apenas três anos, não. Ficou doente, desorientada, zonza, fraquejava. Era talvez por ele ser tão pequeno. Era talvez porque ele já tinha nascido na clandestinidade, em 1960, e tinha sido um parto difícil em que chegou a ficar imóvel da cintura para baixo durante 24 horas. O filho ia para tão longe, a União Soviética ficava tão longe. Ele, como a irmã, iria estudar, iria ser bem tratado, e ia tendo notícias dos dois, através dos camaradas que visitavam a URSS, sobretudo através de Álvaro Cunhal. Mas apesar de tudo isso ela continuava a sofrer com a separação e ainda hoje quando fala nisso fica nervosa e falta-lhe a voz. A filha vive hoje em Bruxelas. Com o filho, nunca conseguiram recuperar o tempo perdido.
Maria tem agora 80 e Raul 84. Estão casados há 62 anos. Mergulharam juntos em 1958, logo depois da campanha de Humberto Delgado. Raul tinha sido preso uma vez tempos antes, mas depois de "mergulharem" nunca foram apanhados. O mais perto que estiveram de ser presos foi quando Raul chegou um dia a casa carregado de papel-"bíblia" - um papel fino, leve, ideal para trabalhar clandestinamente - e um polícia perguntava por ele ao senhorio. Andava à procura de sapateiros de uma quadrilha de ladrões e era essa a profissão dele, ou a profissão que ele tinha aprendido no que lhe parecia então ser a sua vida passada em Grândola. Era tipógrafo e quando o Avante! estava para sair eram 15 dias de noite e dia a imprimir o jornal. São eles que costumam tratar da tipografia "clandestina" que se costuma montar na Festa do Avante!.
São eles que aparecem, muito brevemente, no filme Até Amanhã, Camaradas, fazendo deles próprios, de tipógrafos. Nunca tendo sido figuras relevantes do partido, parecem personificar a ideia do militante clandestino, o tipógrafo absorvido no papel e na tinta, alheio à vida lá fora.
2. Prisão e liberdade
Maria e Raul
No 25 de Abril, um funcionário da PIDE, que morava no mesmo prédio no Lumiar, veio bater-lhes à porta: "Não saiam de casa porque há uma revolução", disse-lhes. Eles saíram para a rua e ela com o dinheiro que tinha foi comprar leite, pão, tabaco para dar aos militares. Ele olhava para aquela alegria e "chorava como um catraio". Mas só passados dois ou três meses é que passaram à legalidade, quando tiveram a certeza de que não havia um contragolpe.
Nos 16 anos em que estiveram clandestinos não tinham sido presos, mas não queria dizer que não levassem uma vida prisioneira. Paradoxalmente, para mais lutarem pela liberdade menos liberdade podiam ter. Maria e Raul continuam a trabalhar para o PCP e não imaginam ficar em casa, deixarem de fazer alguma coisa pela luta. Ainda agora parece que aqueles 16 anos foram mais longos do que os outros. Ainda agora, se as mãos se mantivessem firmes, poderiam imprimir um Avante!. Ainda agora, por vezes, estranham a legalidade.
Manuel Martins Pedro
Maria Júlia só saiu da clandestinidade quando Manuel Pedro foi preso novamente em 1969. Ia a Peniche com a mesma resolução e calma com que tinha decidido segui-lo na clandestinidade e aceite a dada altura separar-se das filhas. Ia a Peniche com as filhas, para verem o pai, de transportes, com uma merenda. Maria Júlia morreu há três anos de um cancro e também aí não se queixou demasiado. Nunca foi mulher de se queixar e nem uma vez disse alguma coisa ao marido que o fizesse sentir-se culpado por a ter arrastado para uma vida mais dura do que teria imaginado com um empregado de uma companhia de seguros. "Porque era uma vida muito, muito dura a clandestinidade", diz. "Mas, por outro lado, talvez nos tenha tornado mais unidos. Já muito depois do 25 de Abril, ela às vezes voltava-se para mim e dizia: "Sabes, Manel, às vezes tenho saudades da clandestinidade"."
Teodósia Gregório
Em 1970, estava na clandestinidade há 16 anos, afastada do filho há cinco e do marido há dez, recebeu uma carta que dizia que o companheiro, Afonso Gregório, tinha saído da prisão mas que estava muito doente. Tinha seis meses de vida, dizia a carta. Seis meses, não muito mais do que isso era quanto lhe davam os médicos. Ela então dirigiu-se a um responsável do partido e disse que queria sair da clandestinidade. "Ó camarada, olha que podes ser presa, é perigoso, porque assim, porque assado, disseram-me, e eu disse, se for presa, olha, paciência, mas pelo menos vê-lo mais uma vez, eu vou vê-lo."
Apareceu-lhe à porta de mala. E ele, que mal podia andar, aceitou que ela tivesse deixado o trabalho da clandestinidade por ele. Passaram seis meses, e ele continuou vivo. Casaram oficialmente para que ela pudesse acompanhá-lo à União Soviética para continuar a tratar-se. Depois não regressaram a Portugal porque havia demasiado risco de ele voltar a ser preso. Foi em Bruxelas que tiveram notícias do 25 de Abril. Ela chegou a tempo de festejar o 1.º de Maio em Portugal e ele seguiu-a pouco tempo depois.
Tiveram mais alguns anos um com o outro e estes foram os melhores tempos, porque estavam juntos, porque parecia que tinha valido a pena a luta de toda a vida, era bom ver o país tão diferente.
Ela talvez não lhe tenha contado tudo o que passou na clandestinidade da mesma forma que ele não terá contado tudo o que passou na cadeia.
Depois de se separar do filho - preferiu mandá-lo para a avó, no Alentejo, do que para a União Soviética -, ainda se dedicou mais às tarefas: limpava a casa duas vezes se fosse preciso, mas tinha de estar sempre ocupada. "Ouvia os gaiatos na rua e chorava em casa sozinha", diz. Viveu com vários casais. Vivia com o pintor José Dias Coelho e a Margarida Tengarrinha quando ele saiu de ao pé delas "às 5 horas e às 7 mataram-no".
Voltou a viver sozinha com outros camaradas. Fazia de mulher deles, perguntava de que gostavam mais de comer, ensinava-os a cozinhar e a passar a ferro, tentava dar-se o melhor possível. Isto fazia parte da sua missão como pôr um chapéu quando saía à rua, saber o mais possível sobre os vizinhos, mas mulher sem fingimento era de um só homem. Apenas uma vez andou desconfiada de um camarada, e, nesse período, dormia fechada por dentro à chave.
O marido morreu fez agora 16 anos. Ele ainda lhe telefonou a dizer que estava a sentir-se pior. Ela correu para casa e ainda chegou a tempo de ele olhar para ela pela última vez. Depois, "fechou os olhos e nunca mais os abriu", conta, e desvia o olhar para a janela, para os prédios feios que rodeiam o edifício sede do PCP na Soeiro Pereira Gomes, aconchegando o lenço. Ele tinha 75 anos e ela ainda não tinha feito os 60. Continuou a ser mulher de um homem só.
Domicília Costa
Quando chegou a Paris - tinha decidido "solidarizar-se" com o seu companheiro quando este não conseguiu entender-se mais com a direcção do PCP e partiu - e ao experimentar a liberdade antes do 25 de Abril, não sentiu euforia. Podia ser porque não era do seu temperamento - nunca tinha sido "dada a euforias". Ou podia ser porque ela própria ainda não teria bem noção do que seria a vida sem se esconder, dissimular, sem inventar mais um nome, mais uma aparência, uma vida em que podia abrir-se com um estranho. Não sabia também o que seria a vida sem ditadura. "O passarinho só tem necessidade de voar quando começa a voar", diz.
Em Paris teve vários empregos, trabalhou muito, mas aos fins-de-semana ia ao cinema, a festas. Um exilado político que tinha conhecido entretanto levava-a, e ela então, finalmente, como tinha ouvido contar às raparigas, namorava.
Álvaro Pato
Da prisão enviou uma carta. Ia dirigida à Isabel, à irmã dele, e dizia que "tinha entendido que, no quadro em que estava, a separação com ela, Isabel, era inevitável". A irmã percebeu que a carta se destinava à outra Isabel e fez chegar a Irene a mensagem: que refizesse a sua vida.
A 26 de Abril, à porta de Caxias, estavam jornalistas, camaradas, familiares dos presos, pessoas que simplesmente queriam assistir à libertação dos presos políticos, mas no meio da confusão ele viu logo a Gina. Tinham-se conhecido em Agosto de 1969, quando ainda não estavam maduros um para o outro. Ela tinha apenas 16, ele 19, e começaram a namoriscar no Verão num acampamento em Peniche, quando ele foi visitar o pai à prisão e ela o cunhado. Ainda se encontraram várias vezes no Jardim Botânico em Lisboa quando ela vinha estudar no Instituto Britânico, mas zangaram-se ainda não era Fevereiro de 1970.
Depois de Caxias, viram-se outra vez na chegada do Álvaro Cunhal; e pouco depois, numa cooperativa onde ele tinha ido a um encontro com o Manuel Martins Pedro. Toda a gente estava a ver televisão, passava alguma coisa importante, mas de que ele agora não consegue recordar-se. Do que se lembra é que saíram juntos de táxi, ele levou-a a casa da irmã, subiu e sentaram-se a conversar. Quando a irmã e o cunhado chegaram, de madrugada, eles ainda estavam a conversar e a Gina voltou-se para eles e disse: "Olhem, a gente vai casar."
Naqueles dias entre final de Abril e início de Maio ninguém dormia, o país mudava de um dia para o outro, as pessoas mudavam, a vida de cada um mudava. Ele foi a Tavira apresentar-se no quartel porque ainda era desertor. Foi a Vila Franca de Xira passar o 1.º de Maio na terra onde tinha crescido com os avós. E conseguiu naqueles dias febris marcar um encontro com Irene. Um camarada emprestou-lhes a casa, deixou-os entrar, despediu-se dele e, quando saiu de casa, por distracção, fechou a porta à chave. Ficaram ali uma noite e um dia trancados. Ela repetia: "O que é que esses malandros te fizeram?" Estava convencida de que tinha sido a tortura, o encarceramento que o tinham feito escrever a carta que tinha recebido. Ele explicou-lhe que não era a PIDE que os separava. O que os separava era a liberdade.
Raimundo Narciso
e Maria Machado
Estavam a ver televisão em casa, à hora do almoço, quando viram uma fotografia de Raimundo. Procurava-se. Havia até recompensa para quem o denunciasse. Maria saiu de casa, e foi bater à porta da vizinha. Era uma senhora mais velha, professora, que venerava o Salazar, mas que trazia sempre qualquer coisa para a pequena Leonor e simpatizava com a família. A vizinha abriu a porta, convidou-a entrar e mostrou-lhe o jornal do dia: "Já viu isto, estes terroristas? Olhe este estudante", dizia, apontando para a fotografia de Raimundo. "Podia ter tido uma vida tão boa, anda enganado, coitado." A Maria despediu-se da vizinha, voltou para casa e disse para ele: "Não te reconheceu." Ele saiu logo de casa como era das regras conspirativas. "Fui bater à porta de um major que dava apoio e ele abriu e a primeira coisa que me disse foi: "Ó Luís [era então Luís], já viste esta notícia? Parece que prenderam uma série de camaradas." Eu pensei: este desgraçado também não me reconhece. Inventei uma desculpa e fui-me embora."
Era 1972 e foi o mais próximo que esteve de ser preso. A vida clandestina tornava-se cada vez mais clandestina. Raimundo Narciso sabia que tinha feito um compromisso para a vida. Era isso que queria dizer estar na clandestinidade, não se poderia voltar atrás, a vida seguiria outro curso paralelo à outra vida que podia ter tido se tivesse acabado Engenharia, trabalhado na legalidade. O casamento era também com o PCP. Já era do Comité Central antes do 25 de Abril, e o 25 de Abril trouxe ainda mais trabalho. Era preciso "consolidar a revolução", era preciso ter a certeza de que a revolução não recuava, e só se desvinculou do PCP no final dos anos 80, num processo difícil e doloroso como o de um divórcio.
Raimundo e Maria continuam juntos. Até 2005, viveram na casa que foi a sua última casa clandestina. Nessa casa tinham visto o 25 de Abril na televisão. Nessa casa, tinha nascido o segundo filho, um mês e pouco antes da Revolução dos Cravos, provavelmente a última criança a nascer na clandestinidade.
Faustina Barradas
e José Carlos Almeida
"Mãos ao ar", gritaram. Estava rodeado de pides. Tinha lido muitas vezes os folhetos distribuídos pelos funcionários do Partido Comunista, explicando o que fazer "se fores preso, camarada". Tinha lido que o que devia fazer era barulho. Mas ele ficou sem pinga de sangue, "mãos ao ar", as pistolas, os carros em redor, e pareceu-lhe passar muito tempo até conseguir começar a gritar: "São pides! Canalhas! São pides!"
Faustina sabia que sempre que ele saía de casa poderia não voltar. Deixava-lhe sempre um sinal para que ele no regresso a casa soubesse que tudo estava bem e que a casa ainda era segura. Podia ser uma pedra marcada num buraco de um muro ou um pionés num banco de jardim. Ele agarrava a pedra ou o pionés ou qualquer que fosse o sinal dele e tinha sempre voltado a casa.
A 20 de Abril de 1974, a casa onde viviam em Espinho continuava segura, mas José Carlos não regressou. Na altura, viviam com as duas filhas mais novas, Maria Elisa Lisinha e a bebé Valentina Vália Vavá, que era como Lisinha gostava de dizer que se chamavam para terem três nomes como os outros meninos. Maria tinha pensado que teria de se separar das filhas dentro de pouco tempo, como se tinha separado da mais velha.
À primeira filha chamou Catarina, em honra da Catarina Eufémia, e para sempre no nome a rapariga carregaria a explicação de por que é que os pais se tiveram de separar dela. A mãe tinha assistido em criança à guarda a levar homens, a pisar as mulheres que gritavam pelas crianças, na praça da jorna. Catarina cresceu com os avós e a tia paterna, esteve doente, e quando chegou aos ouvidos dos pais que tinha adoecido chegou a notícia de que tinha morrido. Depois veio o alívio de saber que não era verdade, ela não tinha morrido, mas a notícia tinha deixado sobre eles uma "sombra".
Maria não se chegou a separar das outras filhas. No dia 22 de Abril de 1974, conversou com camaradas e discutiu-se a possibilidade de ela voltar à legalidade, com as crianças, agora que estava confirmado que José Carlos tinha sido preso.
No dia 23 de Abril de 1974, pegou nas meninas, sorridente, e saiu de casa e do bairro como se fosse passear. No Porto, na Areosa, conseguiu alugar um sótão numa pensão, onde dormiram as três numa cama, sobre a cama e debaixo da cama, a fingir que era um beliche. No dia 24 de Abril de 1974, ao sair do sótão, um gato atirou-se à mais pequena, e ficou pendurado pelas garras na cara dela, e Valentina ficaria dois meses sem falar. A pensão albergava prostitutas e estudantes, por sorte, estudantes de Medicina que ajudaram e fizeram os curativos.
No dia 25 de Abril de 1974, houve a revolução pela qual tanto tinha esperado e lutado. Numa das manifestações que se seguiu, ela festejava na rua com as meninas pela mão, quando um carro militar que ficou sem travões foi contra a multidão e Lisa magoou-se. Foi esperar os presos políticos no Porto e José Carlos não apareceu. Foi aos hospitais, pensou ir à morgue, até que o viu na televisão. Estava muito magro, tinha perdido muitos quilos naqueles poucos dias, mas era ele.
A 26 de Abril de 1974, José Carlos que estava registado como "preso sem nome" não quis ainda dar o nome quando um militar se aproximou e disse que estava em liberdade. Pensou que alucinava. Tinha lido nos manuais que explicavam o que acontecia "se fores preso, camarada", que as alucinações podiam ser mirabolantes. Só já fora de Caxias, disse o nome a um jornalista. Depois foi para o Porto e reencontrou Faustina e as filhas na multidão celebrando o 1.º de Maio.
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