GaultierAs montras de Filipe Faísca

Foto
Jean-Paul Gaultier procurou "criar peças intemporais e elegantes, que podem ficar no guarda-roupa durante anos e estão sempre actuais" PIERRE VERDY/afp

O criador irreverente está a mudar uma das marcas de luxo com mais pedigree. Um casamento perfeito, dizem. Falamos da Hermès e de Jean-Paul Gaultier, com quem andámos nos bastidores da semana de moda de Paris.

Nunca montou a cavalo ou jogou uma partida de ténis. Mas é ao universo do desporto que vai buscar inspiração para criar muitas das colecções femininas da marca francesa de luxo Hermès. "Não sou um homem do desporto. Não pratico nem nunca pratiquei nenhum [risos]. Não tenho tempo nem gosto", confessou Jean-Paul Gaultier à Pública nos bastidores do desfile da colecção Hermès para a Primavera/Verão 2010, durante a semana de moda de Paris. E apressou-se a completar: "O que gosto é de observar e de interpretar as imagens e os códigos dos desportos. Aliás, a colecção que vai ver daqui a pouco é sobre o ténis."

Apesar de ter fama de ser um homem difícil, de ter um bocadinho de mau feitio e de ser bastante exigente - em termos de pormenor, de rigor, de trabalho -, a Pública conheceu um Gaultier simpático e tranquilo, com tempo para cumprimentar os colaboradores e os amigos, acertar calmamente pormenores da maquilhagem e até para elogiar a apresentação da comida que ia passando em bandejas.

Ao longo dos anos, Jean-Paul foi ganhando suavidade no estilo com que se apresenta - veste calças de ganga, camisa preta e blazer castanho. O cabelo perdeu o loiro e está branco. Talvez por isso, quando ouve a expressão enfant terrible, que durante décadas esteve colada a si, responda com uma forte gargalhada: o enfant terrible "está velho!" "Mas atenção", acrescenta imediatamente, "a velhice só é visível no corpo porque o espírito mantém-se jovem."

Com 57 anos, e numa prova do seu característico humor, reforça a ideia. "Isto [a moda] é o que gosto de fazer, o que sei e o que quero fazer. A irreverência é uma característica que é impossível não passar para as minhas criações porque é assim que sou."

Há seis anos que é responsável pelas colecções femininas da marca de luxo francesa Hermès, uma das poucas que estão de boa saúde e que ainda é um negócio de família. No Verão surgiram notícias sobre a possibilidade de esta colecção para a Primavera de 2010 ser a última porque Gaultier estaria de saída da Hermès. A marca depressa desmentiu. "Jean-Paul não vai deixar nenhuma das suas responsabilidades na Hermès." E aproveitou para anunciar que os lucros subiram 12 por cento no último ano.

"Não sei porque surgiram esses rumores, mas quero crer que o meu trabalho tenha contribuído alguma coisa para este aumento de vendas", explica.

"Por que não eu?"Em 2003, o criador Martin Margiela deixou a criação das colecções femininas da Hermès para se dedicar em exclusivo à sua marca e Jean-Louis Dumas, patrão da Hermès, telefonou a Jean-Paul Gaultier para que este lhe sugerisse alguém. Procurava um criador que assumisse as colecções femininas da marca de luxo. Gaultier ainda avançou com alguns nomes, mas pediu tempo para pensar melhor. E, ao pensar, perguntou: "Por que não eu?" Monsieur Dumas recebeu a sugestão de Gaultier com um sorriso.

"Não foi por precisar de emprego", confessou à Pública o criador. Foi, explicou, pela admiração que tem pela marca e por acreditar que podia fazer um bom trabalho. "A criação é o meu métier e percebi que podia aprender muito com a Hermès e também dar muito de mim."

A primeira colecção que criou foi a de Outono/Inverno de 2004 - um êxito.

A responsável pela comunicação da marca refere que o melhor que Jean-Paul Gaultier levou à Hermès foi "o seu sentido de humor e a sua eterna juventude". Opinião partilhada pelo criador português Filipe Faísca, que tem acompanhado o trabalho do criador e da marca (Faísca é o responsável pelas montras da loja Hermès em Lisboa).

Gaultier, por seu lado, diz que a Hermès lhe dá "a possibilidade de trabalhar a herança de um passado muito rico a todos os níveis", destacando a selecção cuidada das matérias-primas e o excelente trabalho com peles.

A relação Gaultier-Hermès, que até já foi comparada à de Lagerfeld-Chanel pela crítica de moda do New York Times, Suzy Menkes, ainda não é muito conhecida entre o grande público. Ou seja, enquanto a maior parte dos consumidores ou seguidores de moda liga imediatamente Lagerfeld à Chanel ou Marc Jacobs à Louis Vuitton, o nome de Gaultier tem ficado bastante pelos bastidores da Hermès. Porque será? "Porque não é isso que se pretende. Não são colecções para fazer bling-bling, não são para o espectáculo. São, sim, roupas criadas para serem vestidas", diz o criador. "A Hermès é uma marca discreta e eu sou apenas o criador responsável pela colecção de mulher da etiqueta."

Todavia, Gaultier assume que, se tivesse sido convidado para desenhar outra marca, possivelmente essas colecções teriam muito mais o seu estilo. "Isso não acontece na Hermès devido à riqueza do histórico da marca."

Peças intemporaisCriada em 1837, em França, por Thierry Hermès, a etiqueta tornou-se um mito. Apesar de as malas serem o grande objecto de desejo, a Hermès tem desde carrés (os famosos lenços 90 por 90 cm) até produtos para a casa. E, claro, existem as "excentricidades" - as encomendas, que podem ir de uma caixa para uma viola a interiores de automóveis.

A marca ainda está na família que a criou - vai na sexta geração - e que se instalou na Rue Faubourg Saint-Honoré em 1880, ano em que o filho de Thierry Hermès tomou conta dos negócios e apostou na venda de selas de cavalos à aristocracia. Gaultier refere que há pormenores dessa herança histórica que se mantêm preservados, como o lado artesanal da produção. Ainda hoje as malas são feitas à mão, por um só artesão, que a fabrica do princípio ao fim. Por isso, são objectos de luxo e raros - pelo preço e porque a procura é maior do que a capacidade de produção. Por isso se esperam meses, às vezes anos, por uma mala.

A famosa mala Kelly, uma tradicional bolsa executiva que ganhou o nome da princesa Grace Kelly do Mónaco depois de esta ter aparecido com uma em 1956, ou a ainda mais famosa Birkin, feita especialmente para Jane Birkin, têm lista de espera (apesar de custar cinco mil euros numa pele banal) e as entregas mais excêntricas (peles especiais, por exemplo) podem demorar três anos.

"É muito interessante trabalhar malas como a Birkin ou a Kelly", diz Jean-Paul Gaultier. O criador gosta do contacto com os artesãos e com os responsáveis pelas diferentes colecções da marca. "Estou sempre a aprender e a inspirar-me neles e no seu trabalho." Apesar de ter referido as duas malas-estrela da marca, nota-se que Gaultier prefere as Birkin: elas surgem mais nos seus desfiles. Para o Verão e porque o mote da colecção é o ténis, criou uma versão com uma bolsa própria para uma raquete e uma bolsa para três bolas.

Quanto à colecção, podemos dizer que Gaultier criou um estilo sportswear sofisticado, com inspiração nos tradicionais uniformes de ténis. Pela passerelle desfilaram peças com formas naturais, fluidas, com alguma transparência e todas elas pareciam bastante confortáveis, mesmo as saias plissadas que apareceram em versões mais longas. Mostrou ainda variações para pólos, camisolas e casacos de malha.

Em destaque estiveram macacões sensuais em jersey, bermudas de ganga bem justinhas e até ao joelho, e muitas peças que resultaram de uma combinação de couro e organza.

"Procurei criar peças intemporais e elegantes que possam ser usadas em diferentes situações, daquelas que podem ficar no guarda-roupa durante anos e estão sempre actuais", explicou Gaultier. E é precisamente isso que uma mulher que compra Hermès procura. Nesse aspecto, a colecção desenvolvida por Gaultier promete agradar aos consumidores da marca, especialmente em tempos de crise, quando preferem investir em peças elegantes e de qualidade que poderão durar mais tempo.

O luxo existirá sempreFilho e neto único, Jean-Paul Gaultier cresceu entre mulheres. "Talvez daí tenha surgido a minha paixão pela moda. Comecei cedo a ler as revistas de moda da minha avó e foi com ela que comecei a fazer os meus primeiros desenhos", conta.

Foram os desenhos que enviou para vários criadores de moda que o fizeram começar uma carreira na área. Pierre Cardin ficou impressionado e contratou-o. "Ele chamou-me e perguntou-me o que fazia. Respondi-lhe que estava a estudar três dias por semana. Então, ele disse: "Vens trabalhar comigo nos restantes dias"."

Em 1976 Jean-Paul lançou a sua primeira colecção de pronto-a-vestir e os desfiles de moda nunca mais foram uma rotina.

A fama à escala planetária chegaria, porém, ao criar o famoso corpete com cones nos seios para a tournée de Madonna, Blonde Ambition, no início dos anos de 1990. O exercício de modelagem ficou tão popular que já é considerado por especialistas como um "momento histórico" da moda mundial. A forma foi aproveitada para o mais famoso dos seus perfumes, que muda de roupagem a cada estação (para os homens há o Le Male, cujo frasco foi concebido a partir da famosa T-shirt marinheira que foi a sua primeira imagem de marca).

Mas a irreverência continuou: promoveu o uso de saias pelos homens e, a provar que só mesmo o corpo é que está a envelhecer, os seus desfiles continuam a causar impacto. Levou para cima da passerelle modelos pouco convencionais: homens idosos e mulheres gordas, modelos tatuadas e com piercings, anões e gigantes - opções que lhe trouxeram muita crítica, mas também muita popularidade.

Actualmente, Gaultier desenha três colecções: a sua própria linha de alta-costura, a linha de roupa para lojas e a linha de roupas Hermès. Os processos de criação nunca se cruzam. Nem podem. "É fácil. Para além de o distinguir muito bem, são jogos para serem jogados em campos diferentes", diz Gaultier.

Martin Margiela (um "jovem" que tem quase a sua idade), Rick Owens e Felipe Oliveira Baptista ("Não conheço profundamente o seu trabalho, mas é um jovem muito criativo que trabalha silhuetas muito gráficas e futuristas") são alguns dos nomes que admira. E, já que está a elogiar colegas, não quer deixar outros de fora: John Galiano e Alexander McQueen - mas "esses já cá andam há algum tempo".

Quanto ao futuro da alta-costura, acha que é tempo de ponderar e repensar o que há para fazer. Depois do desaparecimento de Yves-Saint Laurent ou da falência da Christian Lacroix, "é preciso saber quem a procura e o que querem vestir".

Não sabe ainda qual o caminho a tomar mas não concorda com os críticos que há muito anunciam a morte da alta-costura. "O luxo existirá sempre, as pessoas precisam dele".

É ainda da opinião de que esta crise mundial trouxe uma reflexão sobre o futuro da moda. "Está toda a gente a ponderar o que fazer, como fazer e para quem. Não quer dizer que toda a gente passe a vestir Zara, mas há que repensar tudo." As coisas estão a mudar e "parecem exigir novos processos criativos". A

A Pública viajou a convite da Hermès

mito@publico.ptNo ano em que Gaultier desenhou a sua primeira colecção de pronto-a-vestir feminino para a Hermès, o criador de moda português Filipe Faísca (na foto abaixo) iniciava também a sua colaboração com a marca. "Comecei por fazer os arranjos de costura que a loja fornecia aos clientes", conta. O primeiro foi numa gabardine da primeira colecção que Jean-Paul Gaultier fez para a marca. "Era um trench-coat lindíssimo que acabava em saia plissada, que nos deu um trabalho de loucos porque tivemos de o encurtar mas ficou muito bem."

O universo da Hermès sempre atraiu este criador português e funcionou como uma fonte de pesquisa para o seu trabalho. "Sempre fui muito sensível à padronagem, ao carré [quadrado] Hermès ou à estrutura das lojas." Mas o que mais o impressiona é o trabalho artesanal de luxo que teve oportunidade de comprovar quando começou a mexer nos interiores das peças de roupa para fazer os arranjos pedidos pelos clientes. Apesar de a roupa ser produzida de forma industrial, a marca faz um grande controlo de qualidade. "São [peças] feitas para durar."

Cinco meses depois de ter iniciado os arranjos de costura, chegou o convite para a criação das montras. A possibilidade da mise-en-scène agradou de imediato a Faísca por fazer parte do seu universo - durante muito tempo dedicou-se em exclusivo ao guarda-roupa para o teatro.

De dois em dois meses, as montras mudam, mas seguem sempre um tema anual apresentado, normalmente em Julho, aos vitrinistas do mundo inteiro (mais de 80) num workshop de dois dias em Paris. "Temos contacto com toda a colecção e o tema do ano seguinte." Convidam-se artistas - coreógrafos, artistas plásticos, escritores ou fotógrafos -, e "o tema é sempre uma coisa muito filosófica na maison Hermès" Não existem regras rígidas para a execução das montras, são feitas por cada vitrinista consoante a sua criatividade, tendo apenas em conta o espaço onde a loja está inserida.

Durante os workshops em Paris, Faísca esforça-se para pôr o trabalho que faz em Lisboa no mapa. "Para falar de Portugal, tenho de me pôr em bicos dos pés. Mas, no ano em que o tema foi o movimento e a dança, as montras portuguesas foram das escolhidas. Quando me foi feita a apresentação [do tema], fiquei impressionado com um vídeo que apresentaram sobre o gesto do artesão enquanto cosia uma mala Kelly."

A única regra é que as montras contem uma história e façam o cliente parar, olhar e entrar. "A montra é a pele da loja e a marca considera que só existe memória quando se conta uma história."a

Sugerir correcção