Os ciganos aleluia acreditam que são melhores que os outros
Uma grande parte da comunidade cigana portuguesa reúne-se para orar quatro vezes por semana. Na Igreja Evangélica Filadélfia lêem a Bíblia, cantam e deixam-se invadir pelo Espírito Santo. Algumas tradições ficam para trás, sobretudo as que lhes dão má fama.
Por Bárbara Wong (texto) e Pedro Cunha (fotos)
a O braço direito eleva-se acima da cabeça, caída sobre o peito. A mão esquerda segura o microfone junto à boca, os olhos fechados, em oração. "Espírito Santo, usa-me nas Tuas mãos, para glorificação da Tua igreja", pede o pastor Sidnei. À sua frente, a multidão dos crentes mimetiza os seus gestos. O braço direito estendido em direcção ao céu, imitam mulheres e crianças; e, do outro lado da igreja, uma garagem no bairro das Galinheiras, em Lisboa, os homens e rapazes levantam a mão direita. Cada um fala com Deus; uns dialogam baixinho, outros gritam para o alto as suas preces. É o momento de oração, feito com as luzes apagadas. O medley que o órgão e a bateria orquestram começa a subir de volume e a voz do pastor também: "Jesus disse: 'Onde dois ou três ciganos estiverem reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles.'" "Aleluia!", gritam homens e mulheres.
"Aleluia" foi como ficaram conhecidos os primeiros ciganos que entraram na Igreja Evangélica Filadélfia, em meados da década de 1970 (a primeira igreja apareceu na Brandoa). O nome, com alguma conotação negativa, foi-lhes atribuído por outros ciganos que estranhavam o culto, o modo como oravam e como repetiam interjeições como "aleluia" e "ámen", explica Ruy Llera Blanes, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, que publicou a tese de doutoramento Os Aleluias: ciganos evangélicos e música.
Mas "aleluia" é sinal de louvor e é isso que os ciganos fazem, explica o Pastor Jaime. "Falamos de louvor, de música, de adoração, do bater das palmas", continua o homem que se converteu aos 14 anos e três meses depois foi baptizado nas águas do rio. Com o baptismo, que só pode ser feito em idade adulta, "deixamos de ser nós e é Cristo que vive em nós; quando se é baptizado apetece-nos gritar e chorar, de braços abertos", descreve com emoção.
E quando os "ciganos têm a Cristo, a sua vida muda", diz. "Se as obras não me acompanharem, então a minha fé é morta", lembra, parafraseando S. Paulo para explicar que, quando os ciganos são cristãos, deixam de lado alguns costumes, como beber nos casamentos ou mentir quando negoceiam.
O pastor Sidnei confirma: "A vida dos ciganos mudou em muito." E prossegue com os exemplos: a forma de fazer as festas é mais sóbria; tentam resolver os conflitos entre famílias desavindas, "já não há tantas contendas" e não vendem contrafacção. "Quem não é cigano ainda nos vê da mesma maneira, mas quem nos conhece sabe que há diferenças entre os que andam na Igreja e os outros", aponta o pastor Sidnei, que se congratula por muitos dos seus irmãos terem aprendido a juntar as letras porque queriam ler a Bíblia.
Quando não cumprem as regras e "vão para a tradição [cigana], são disciplinados [castigados]", continua o pastor Jaime. Esta é uma prática normal nas igrejas evangélicas, explica Soares Loja, vice-presidente da Comissão da Liberdade Religiosa. A partir do momento em que as pessoas são baptizadas, tornam-se membros, e quando violam as regras são confrontadas e pode haver processos disciplinares, esclarece. "Espera-se que quem reconhece Jesus como Salvador adquira o padrão ético, que vem dos judeus", informa.
A Igreja Filadélfia tem contribuído para a diminuição do alcoolismo e toxicodependência, reconhece Francisco Monteiro, da Obra Nacional da Pastoral dos Ciganos, da Igreja Católica. "Um cigano que não se comporte dentro dos parâmetros, é excluído", constata.
"Deus muda os ciganos, mas através da nossa Igreja", acredita o pastor Sidnei.
A Igreja Filadélfia foi criada em França, pelo pastor Clément Le Cossec, pastor da Assembleia de Deus, que não era cigano, mas pensou na evangelização dos membros desta minoria, na década de 1950. Chegou a Portugal em meados da década de 1970 pelas mãos de missionários ciganos espanhóis. Hoje há mais de 115 igrejas em todo o país, com cerca de 100 a 200 crentes. Os pastores são todos ciganos.
É uma igreja carismática, de teologia pentecostal, crente na segunda vinda de Cristo à Terra. O seu nome lembra uma das igrejas da Ásia Menor, referenciada no livro do Apocalipse. Os ciganos aderem porque o culto se adaptou a eles: na igreja estão separados por género; esta é constituída a partir de um núcleo de famílias, existem líderes espirituais com um papel semelhante aos anciãos; e a música é central, resume Ruy Llera Blanes no seu livro.
Deus movido pela música
Ruy Llera Blanes interessou-se por este tema porque lhe pareceu haver um paradoxo: "Como é que um movimento conservador, como a Igreja Filadélfia, podia ter tanto sucesso entre os ciganos, um povo que gosta de festa?" A resposta surgiu à medida que foi estudando as comunidades portuguesa e espanhola, de Madrid.
Em seu entender, o movimento evangélico surgiu como resposta a uma "série de dilemas com que os ciganos se confrontavam": as mudanças no modo de vida, os problemas económicos e sociais, como o desemprego, a criminalidade, a marginalidade e a exclusão. "O que percebi é que o movimento evangélico é uma releitura à condição dos ciganos. Não há uma só resposta, mas várias. Para ser católico, o cigano precisa de deixar de ser cigano e para ser evangélico não deixa de o ser. A igreja Filadélfia surge como uma resposta para os seus problemas", defende. "É um movimento que revela que os ciganos são capazes de se reinventar. Eles reinterpretam o seu passado étnico em função de uma teologia de salvação messiânica."
Os ciganos revêem-se no culto participado e emotivo. É uma sexta-feira à noite. Depois de mais um dia de trabalho, os fiéis começam a chegar à Igreja Evangélica Filadélfia das Galinheiras, cumprimentam o pastor e vão-se dirigindo aos seus lugares. Não existe altar, mas um ambão de onde o pastor dirige a cerimónia. Atrás de si estão os instrumentos e nos primeiros bancos os cantores que fazem parte do coro.
A música é "muito importante". "O homem foi criado para louvar a Deus e os ciganos sempre foram músicos. A música mexe com o sentimento das pessoas e Deus move-se através da música", explica o pastor Sidnei, antes de o culto começar.
"Dêem um aplauso para Deus! Aleluia! Glória a Deus!", grita o pastor, secundado por homens e mulheres. E, durante hora e meia, o tempo que dura o culto, a música é uma constante. "Porque adoro tanto a Cristo. Ai, ai, eu tenho a Cristo. Ai, ai, no meu coração. Minha família tem a Cristo", cantam, arrastando os "ai, ai" e acompanhando com palmas ritmadas. O som é do flamenco cigano e as meninas, com pouco mais de quatro anos, com grossos fios de ouro ao pescoço, de onde pedem as chuchas que nunca se perdem, dançam no meio do corredor formado pelas cadeiras.
Em castelhano, a música continua: "Quero ser um reflexo do Teu amor. Quero viver perto de Ti. Quero estar, para escutar a Tua voz e aprender." As frases são repetidas, os corpos acompanham o ritmo e os braços abertos procuram acolher o divino. Homens e mulheres de olhos fechados, à espera que o Espírito Santo desça sobre eles. Algumas mulheres deixam que as lágrimas corram livremente e o cântico é chorado: "Jesus, Tu és o meu pastor. Tu conheces o meu caminho, ó meu Deus."
O coro continua, o pastor Sidnei retoma a palavra para pedir a todos que o acompanhem. "Deus alegra-se quando vê uma igreja a cantar", exorta, e com a sua voz rouca, pega na frase cantada pelo coro e continua: "Quero ser um reflexo do Teu amor."
"Um gozo, uma alegria"
De joelhos e virados contra as cadeiras onde estavam sentados, dois homens rezam, de mãos postas e cabeça baixa. Um deles grita: "Obrigada por este dia, perdoa os meus pecados, Senhor." "Somos necessitados, Senhor", lembra outro homem, de braços abertos e cabeça jogada para trás.
As mulheres falam "línguas estranhas", das suas bocas ouve-se um choro murmurado e sílabas dispersas. "É um mistério... Somos tomadas pelo Espírito Santo e sentimos um gozo, uma alegria. Choramos de alegria porque sentimos Deus nas nossas vidas", revelam Sónia e Andreia, duas mulheres jovens, casadas e com três filhos, que cresceram na igreja e fazem parte do coro das Galinheiras.
A Filadélfia tem sido "muito benéfica para os ciganos porque é uma igreja cigana", avalia Francisco Monteiro, da Pastoral dos Ciganos, censurando a falta de acolhimento que por vezes existe na Igreja Católica e reconhecendo que muitos ciganos católicos se converteram àquela igreja. "A liturgia católica devia ser mais adaptada. Apesar de haver orientações da Santa Sé, essas não arrancaram", lamenta. Embora critique a "excessiva simplificação e sentimentalização" do culto.
Esta não é uma igreja só de ciganos, aponta o pastor Jaime. Nas Galinheiras, Cristina participa no culto com os seus amigos e vizinhos de infância. Não é cigana mas gosta de ali estar porque "o Deus é o mesmo". "A porta está aberta para toda a gente", orgulha-se o pastor Sidnei.
"Há cada vez mais ciganos no culto. Ao cigano ninguém engana, já nasce esperto e, ao verem tantos, os outros também querem entrar", felicita-se o pastor Jaime pelo crescimento da Igreja Filadélfia.