Viva o povo brasileiro e o baiano que o escreveu
João Ubaldo Ribeiro publicou há 40 anos o seu romance de estreia. É autor de uma obra pouco extensa, mas quem escreveu as 670 páginas de Viva o Povo Brasileiro não necessita, na verdade, de escrever muito mais.
Guia básico para conhecer o essencial da obra
do novo Prémio Camões. Por Jorge Marmelo
a Quando se conhece João Ubaldo Ribeiro, o que mais impressiona é o sorriso larguíssimo que lhe espreme os olhos até quase ficarem reduzidos a duas linhas traçadas no rosto; o modo relaxado que tem de estar; e os chinelos que calça em quase todas as ocasiões. Baiano da ilha de Itaparica transplantado no Rio de Janeiro, João Ubaldo é, aos 67 anos, um dos maiores nomes da literatura brasileira, facto agora reconhecido com a atribuição do Prémio Camões. O tal sorriso largo não é um pormenor: está naquilo que escreveu e, sobretudo, naquela que é a sua obra-prima, Viva o Povo Brasileiro, de 1984.João Ubaldo Ribeiro não é um escritor prolixo. As más-línguas dirão simplesmente que ele é baiano, recorrendo à proverbial lentidão dos naturais da Baía para absolver a frugalidade de João Ubaldo: em 40 anos de vida literária, que este ano comemora (Setembro Não Tem Sentido, a sua obra de estreia, foi publicado em 1968), o autor publicou apenas nove romances. Mas só Viva o Povo Brasileiro tem 673 páginas (na edição portuguesa da D. Quixote) e cruza 330 anos da história do Brasil, misturando erudição e ironia, genialidade e puro desbragamento.
Da pouco extensa bibliografia (da qual consta ainda um ensaio, duas obras de literatura infantil e um punhado de colectâneas de crónicas) faz parte o neo-realista Vila Real, Feitiço da Ilha do Pavão, O Sorriso do Lagarto e o polémico A Casa dos Budas Ditosos, que celebrizou o escritor em Portugal quando, em 2000, os hipermercados Continente e Jumbo/Pão de Açúcar recusaram vender o romance com o argumento, segundo o editor português, de que a obra "ofende a moral pública" (acusação sempre rejeitada pelos hipermercados).
Muitas vezes considerado um herdeiro natural de Jorge Amado - pelo berço baiano, pela atenção a temáticas políticas e pelo pendor fescenino da escrita -, João Ubaldo Ribeiro é eventualmente mais versátil do que o autor de Gabriela, Cravo e Canela, possuidor de um estilo que aparenta a simplicidade que só se atinge ao cabo de muito trabalho e de uma capacidade imensa de fazer avançar a narrativa pela simples arte do diálogo.
"Procuro, basicamente, fazer uma literatura vinculada às minhas raízes, independente, não colonizada, comprometida com a afirmação da identidade brasileira. Procuro explorar a língua brasileira, o verbo brasileiro e, através dele, contribuir para o aguçamento da consciência de nós mesmos, brasileiros. Sou contra as belas letras, a contrafacção, o elitismo. Acho que o principal problema do escritor brasileiro é a busca da nossa linguagem, do nosso fabulário, dos nossos valores próprios", lê-se na contracapa da segunda edição (brasileira) de Vila Real.
Viva o Povo BrasileiroSe o projecto era aquele, Viva o Povo Brasileiro é o ponto mais alto da sua concretização, passando em revista, de um modo bem-humorado, três séculos da história do Brasil a partir das encarnações do alferes José Francisco Brandão Galvão, imaginário herói da independência brasileira. Ampliando o conceito do afamado sincretismo religioso baiano, João Ubaldo confere à formação da identidade brasileira um cariz literalmente antropofágico, sintetizado nas personagens do caboco Capiroba, do holandês Heike Zernike, transformado em Sinique, o espírito endiabrado dos terreiros de macumba, e do mulato Amleto Ferreira-Dutton, que passa por um processo de embranquecimento para poder dar origem a uma linhagem aristocrata.
Cobrindo um período que vai de 1647 a 1977, esta espécie de épico irónico aborda temáticas como a burocracia, a prepotência, a desigualdade e o racismo profundamente enraizados na sociedade brasileira, atribuindo-os à própria formação do país a partir dos diversos contributos étnicos - os nativos americanos, os portugueses, espanhóis, holandeses e franceses, e os escravos de várias nações africanas - e à peculiar miscigenação, que não se limitou ao estupro das escravas pelos senhores europeus, mas incluiu a própria ingestão de europeus praticada pelos índios tupinambá.
Inesquecível, aliás, a passagem em que são elencados os vários aproveitamentos culinários de um frade português capturado por Capiroba e a posterior rendição da tribo à mais suculenta carne de holandês, facto que inaugurará a pecuária brasileira com a hilariante criação de holandeses para corte: "O flamengo tinha o gosto um pouco brando, a carne um tico pálida e adocicada, mas tão tenra e suave, tão leve no estômago, tão estimada pelas crianças, prestando-se tão versatilmente a todo o uso culinário, que cedo todos deram de preferi-lo a qualquer outro alimento."
A Casa dos Budas DitososEscrito para integrar uma colecção que a editora Objetiva dedicou aos sete pecados capitais, A Casa dos Budas Ditosos trata o pecado da luxúria pela voz de uma idosa libertina que descobre ter um aneurisma. O tom é coloquial (o livro pretende ser a transcrição de uma gravação feita pela mulher) e o conteúdo quase pornográfico (no bom sentido, claro). "Eu nunca pequei contra a luxúria. Quem peca é aquele que não faz o que foi criado para fazer", explica, perto do final da narrativa, a lúbrica velhinha.
"Imediatamente, já possessa e numa ânsia que me fazia fibrilar o corpo todo, resolvi que tinha que montar na cara dele, cavalgar mesmo, cavalgar, cavalgar e aí gozei mais não sei de quantas vezes, na boca, no nariz, nos olhos, na língua, na cabeça, gozei nele todo e então desci e chupei ele, engolindo tanto daquela viga tesa quanto podia engolir, depois sentido o cheiro das virilhas, depois lambendo o saco, depois me enroscando nele e esperando ele gozar na minha boca, embora ninguém antes me tivesse dito como realmente era isso, só que ele não gozou na minha boca, acabou esguichando meu rosto e eu esfreguei tudo em nós dois. É impressionante como eu fiz tudo isso logo da primeira vez."
Se a iniciação sexual foi assim, pode facilmente imaginar-se o resto.
Vila RealPublicado em 1979, é, talvez, o mais político dos romances de João Ubaldo Ribeiro, e também aquele em que a narrativa ubaldiana mais se aproxima de uma certa ideia de prosa poética: "Argemiro olhou o corpo morto do padre Bartolomeu, endurecido entre as mortalhas amareladas que trouxeram e as quatro velas acesas, estranhamente paradas no meio de todo o vento."
Parente próximo de algum neo-realismo europeu, o livro trata a temática da propriedade da terra e da migração dos nordestinos, narrando, ao jeito das gestas heróicas, a resistência de um exército de deserdados ao avanço de uma Caravana Misteriosa dedicada a expulsar os trabalhadores pobres das terras que tinham ocupado em Vila Real, no Vale de Aratanha, no Nordeste brasileiro. Personagens como Ernesta - "Esta mulher Ernesta tem a fala diferente. Não esconde os olhos quando conversa, não esconde a boca, não estranha nada" - ou Lourival, o alemão, adquirem uma tessitura heróica por oposição às malvadas tropas de Godofredo, em perseguição dos trabalhadores mesmo depois de os ter expulso de Vila Real e de ter destruído o respectivo cemitério.
O Sorriso do LagartoPublicado cinco anos depois de Viva o Povo Brasileiro, o romance suscitou natural curiosidade e chegou a dar origem a uma minissérie televisiva, mas não resiste à eventual comparação com o seu antecessor. Publicado em Portugal pela Caminho, é uma espécie de versão baiana de A Ilha do Dr. Moreau, balançado entre a crítica social e uma intriga a meio caminho entre o policial e a ficção científica, tendo por mote a criação de monstros genéticos numa ilha do interior da Baía.
A escrita é límpida, parabólica, torrencial e coloquial. Mais eficaz enquanto crítica da frivolidade, do preconceito racial, do culto da aparência e da ascensão social rápida do que enquanto parábola científica, o romance tem em mira o poder económico enquanto força capaz de influenciar a própria evolução da espécie e, por isso, capaz de criar uma estirpe de lagartos capazes de sorrir. O réptil, porém, corporiza uma outra metáfora, a da criminalidade, por ser um animal capaz de perder a própria cauda para escapar aos que o perseguem, deixando-os entretidos com o rabo que continua a mover-se mesmo depois de ter sido separado do corpo. Consumada a fuga, o lagarto cria outra cauda.
Setembro não tem sentido 1968
Sargento Getúlio 1971
Vila Real 1979
Viva o povo brasileiro 1984
O sorriso do lagarto 1989
O feitiço da Ilha do Pavão 1997
A casa dos Budas ditosos 1999
Miséria e grandeza do amor de Benedita 2000
Diário do Farol 2002