Gordon Brown A tragédia de um sobredotado

Esta é a saga de um homem que nunca conseguiu ser o número um. Ou que não tinha conseguido até agora. Hoje, Gordon Brown, o escocês determinado, intelectualmente poderoso, mas também rude, sombrio e obsessivo, vai mudar-se para o nº 10 da Downing Street. Sem travar batalha

a O pequeno gabinete sem janelas que lhe foi atribuído no coração do famoso edifício do Parlamento britânico mal podia albergar duas secretárias. O desconforto, no entanto, nunca o incomodara. A sua vida de celibatário, fanático da política, cerebral e desprendido tornara-o indiferente à confusão. Desde que houvesse chão para empilhar livros e mesa para acumular papéis, Gordon Brown estava no seu ambiente. Só a escolha do parceiro com quem teria de partilhar o cubículo o deixara perplexo. Era outro noviço nas lides parlamentares, ainda mais jovem do que ele (que tinha feito 32 anos), com uma folha de serviços quase em branco.Ele não. Chegara a Westminster depois de 10 anos de intensa actividade política na sua Escócia natal - muito trabalho, muito esforço, muita paixão e já um bom rol de decepções. Um caminho trilhado a pulso para chegar até ali, o único sítio onde verdadeiramente sempre quisera estar. Profissão, só considerou a sério uma: a política. E a política, no seu país, passa inexoravelmente por um lugar nos Comuns.
Aos 12 anos, Brown já se entretinha a fazer pequenos serviços para o Labour local. Aos 18 era membro do partido. Aos 32, depois de alguns fracassos, chegava a Londres. O ano fatídico de 1983 que o levou a Westminster, eleito numa circunscrição operária do Sul de Edimburgo, terá tido no seu destino a mesma influência que viria a ter no seu ainda desconhecido companheiro de gabinete. A terceira derrota consecutiva do Labour atingira, desta vez, dimensões inauditas. Com uma maioria de 144 nos Comuns, os tories de Margaret Thatcher reinavam sobre a política britânica e desfilavam, arrogantes, nos corredores imponentes do edifício com os seus fatos de bom corte. O Labour apresentara-se ao eleitorado com um manifesto que alguém descreveu como "a mais longa nota de suicídio da História".
Ele sabia que as coisas não podiam continuar assim. O seu poderoso intelecto levantava questões, mas a desigualdade social sempre o revoltara. Era fiel aos valores tradicionais do socialismo. Bebera esse sentimento em casa e nas ruas onde passara a infância.
Trazia consigo uma bagagem política, intelectual e pessoal pesada. O oposto do seu jovial parceiro, que haveria de tomar sob os seus cuidados. Oriundo de boas famílias mais inclinadas para o lado conservador, com o percurso correspondente: colégio privado, Oxford e uma carreira brilhante como advogado. Ensinou-lhe a escrever comunicados de imprensa curtos e concisos, a estruturar os discursos, o b-a-ba da vida de um político, que ele aprendera a arengar aos mineiros de Fife, a conviver com os operários nos pubs, a lutar duramente por uma vaga numa circunscrição elegível. Trazia consigo a solidez e rudeza da Escócia. O seu pupilo revelar-se-ia um aluno brilhante. Tão brilhante que viria a determinar o seu destino.
A história da relação entre ambos está prestes a terminar.
Amarga, tensa, por vezes dramática. Só hoje a porta mais célebre de Londres se vai finalmente abrir para lhe dar passagem. Cumprindo a ambição e o esforço de uma vida. A este homem a quem ninguém pode negar a perseverança.
É determinado, intelectualmente poderoso, mas também rude, sombrio, solitário, obsessivo. O contrário do homem que sai no mesmo dia pela mesma porta, jovial, brilhante, carismático, caloroso, intuitivo, messiânico - Tony Blair.
A história de Gordon Brown é a história de um escocês sobredotado que teve de arrancar tudo a pulso na vida e na política e que um dia se cruzou com um inglês naturalmente predestinado a vencer. A mais longa, secreta e influente história de uma parceria política como provavelmente nunca houve outra, que marcou o destino de dois homens e do seu país.
Filho do pastor
Gordon Brown nasceu a 20 de Fevereiro de 1951, o segundo filho de Elizabeth e John Brown, ministro da Igreja presbiteriana da Escócia, perto de Glasgow quando Glasgow era uma cidade fantasma. Depressa a família parte para a modesta urbe de Kirkcaldy, Fife, não muito longe de Edimburgo, onde a espera a mesma paisagem desoladora de dificuldade e pobreza que caracteriza as comunidades operárias que sofrem na pele o ocaso da era industrial da Grã-Bretanha. Fábricas fechadas, minas encerradas, greves prolongadas, desemprego. O pai, talvez a influência mais marcante nos anos decisivos da sua formação, nunca lhe disse em quem votava mas apontou-lhe o dedo às injustiças na porta ao lado e isso determinou a sua opção política. Incutiu-lhe um forte sentido do dever em relação aos outros e de exigência em relação a si próprio.
A professora primária há-de dizer a um dos seus biógrafos (Tom Bower) que lhe tinha de dar mais e mais trabalho para alimentar a sua voragem de aprender. Um sobredotado que vive entre a escola e o Presbitério.
Aluno brilhante, Brown entra na faculdade aos 16 para estudar História e enfrentar pela primeira vez a tragédia pessoal que há-de acompanhá-lo. Um azar num jogo de râguebi (ainda hoje é fanático) provoca-lhe um deslocamento da retina. Perde a visão do olho esquerdo. Vai-lhe acontecer o mesmo ao direito, atirando-o aos 17 anos para uma cama de hospital, várias cirurgias e longos meses de quase absoluta obscuridade. Salva o olho direito. Regressa aos estudos, que conclui aos 20 anos com a nota máxima. Segue-se um doutoramento que já não esconde a sua obsessão: The Labour Party and Political Change in Scotland 1918-1928. Dá aulas nas universidades de Edimburgo e Glasgow, ensaia uma carreira de jornalista. Mas isso é só porque precisa de ganhar a vida. A paixão está noutro sítio: na política. Os seus amigos de então descrevem-no como enérgico, magnético, poderoso, sempre rodeado de admiradores. Sempre activo, sempre à procura de um bom argumento intelectual. Sem tempo para os afectos. "Política, política, política", a queixa da sua mais duradoura relação amorosa da juventude. Margarita, uma morena bonita que podia, se quisesse, usar o título de princesa, filha do rei da Roménia no exílio. Rompeu com ele. O padrão vai repetir-se.
O facto, na altura irrelevante, há-de vir a custar-lhe mais caro do que alguma vez poderia imaginar.
Em 1994, quando o seu destino se decide, é um homem sozinho, solitário, mal vestido, irascível, sem vida privada, convencido de que, para ganhar a liderança do Labour, só contam as ideias, o intelecto e a carreira. Nesse ano fatídico, o Labour já somara duas derrotas à de 1983 - em 1987 e em 1993.
Na véspera da última, quando toda a gente acredita, incluindo Brown e as sondagens, que chegara finalmente a hora do Labour, Tony Blair - o seu "irmão gémeo" e, com ele, a alma dos "modernizadores", convida um jornalista conhecido para almoçar num restaurante do Soho. A dada altura pergunta-lhe: acha mesmo que vamos ganhar? A resposta é um sim imediato. Blair retorquiu: não creio. Não via razões para isso. O partido ainda não se libertara do jugo dos sindicatos e continuava a não dizer nada à classe média. A derrota não parecia preocupá-lo. Pelo contrário, considerava-a uma grande oportunidade. O seu raciocínio era simples. A demissão de Neil Kinnock, o líder do partido, seria inevitável. Gordon Brown, nessa altura o chefe de fila dos modernizadores, deveria disputar a liderança a John Smith, um homem simpático mas da velha guarda que tinha a responsabilidade das Finanças no gabinete-sombra. Ele próprio poderia ser o "número dois". Acertou em quase tudo. Brown não teve a coragem de agarrar a oportunidade e quebrar o molde do velho Labour. Escreve Tom Bower: "É um aluno brilhante, o melhor da classe, que fica à espera que lhe entreguem o prémio em vez de ir ele próprio buscá-lo." O futuro chanceler do Tesouro justificar-se-á mais tarde: "Tinha de ser leal. Trabalhei com John Smith quase oito anos, nunca pensei, nem por um momento, fazer-lhe frente." Ofereceu-se para seu segundo e viu-se rejeitado com o argumento de que dois escoceses à frente do partido era demais. Smith oferece-lhe em troca o lugar de responsável pelo Tesouro, o posto mais importante do gabinete-sombra e... convida Blair para "numero dois". Recusa liminarmente.
Foi, dizem os biógrafos, o momento em que Brown deixou de ser "o próximo líder". No dia seguinte à eleição de Smith, em 1992, o Sunday Times dedicou cinco páginas a um perfil de Tony Blair transferindo para ele o título de "próximo líder" do Labour. O Standard, dias depois, antecipava em parangonas a "próxima guerra entre Blair e Brown".
Os "modernizadores" estavam fartos de esperar pelo líder. Dias depois, Peter Mandelson, o terceiro homem e o Merlin deste trio que haveria de fundar o New Labour, ex-jornalista que fazia e desfazia carreiras e que tinha sido, até então, o principal promotor de Brown como "o líder do futuro", deixou cair numa conversa a frase "já é tempo de encontrarmos um líder inglês". Forma pouco subtil de mudar de fidelidade na escolha do Rei Artur.
Neil Kinnock era galês e Brown mantinha as suas raízes na Escócia. Comprara uma casa em Edimburgo onde passava os fins-de-semana e mantinha uma intensa actividade de deputado. Indiferente ao cosmopolitismo da capital ou à sua vida social, Londres não passava de um gabinete de trabalho. Continuava a viver num apartamento caótico, no meio de livros e resmas de papel onde o máximo que conseguiu oferecer foi pizza.
Longa jornada intelectual
Em 1992, com a sua contribuição para o manifesto eleitoral, Brown está prestes a chegar ao fim de uma longa jornada intelectual. Já sabia que o capitalismo não estava à beira da crise fatal que a liderança do Labour ciclicamente anunciava. Já não defendia as nacionalizações, mas a regulamentação do mercado, nem o aumento dos impostos sobre os ricos. Tinha percebido que o Labour só regressaria ao poder se mostrasse que era capaz de gerir a economia de forma responsável.
Achava que era preciso inventar uma nova doutrina que fosse moderna mas alternativa ao thatcherismo. Uma "comunidade de oportunidades" contra "um mercado em que cada um compete solitariamente contra os outros ".
Ele e Blair tinham ido à América várias vezes observar a revolução doutrinária levada a cabo pelos Novos Democratas de Bill Clinton. Brown estivera em Havard a debater as mais modernas teorias económicas. Blair abraçara intuitivamente as ideias do futuro Presidente que iria ser o seu outro "irmão" na cena internacional. Ao contrário de Brown, não havia nada na velha doutrina do velho Labour que o prendesse.
Interessava-se por valores não por ideologias. Sobretudo, interessavam-lhe os resultados. Para que é que serve uma doutrina e um programa que nunca ninguém há-de vir a pôr em prática?
Quando no Verão de 1992, o então candidato à Casa Branca vem a Londres para uma conferência, Brown compreende subitamente que Clinton "odiava igualmente os ricos ociosos e os pobres ociosos". Começa a ter a noção de que o thatcherismo, como o reaganismo, tinha vindo para ficar. Multiplica-se em artigos e entrevistas nos media para insistir na sua nova descoberta intelectual: "Na nova economia, vamos ganhar de acordo com o que aprendermos."
Brown chegou à nova doutrina do New Labour através de um violento combate intelectual consigo próprio e com o partido. Tony apoiado nas suas intuições. Um puro cérebro. O outro puro instinto.
A lentidão de Smith nas reformas que prometera impacienta-os a ambos. Cada um reage à sua maneira. Brown deprime-se, irrita-se, multiplica-se em declarações. Vê conspirações contra ele em toda a parte. Blair considera a hipótese de abandonar a política. Quando os amigos insistem que as coisas acabarão por avançar, responde tranquilamente: "Mas Gordon quer isso muito mais do que eu..." Mas a dupla já passara de "Brown-Blair" para "Blair-Brown".
Na conferência do Labour no Verão de 1993 Gordon faz um poderoso discurso sobre a sua "nova agenda económica". Diz que o Labour não é contra os ricos nem contra a riqueza. Parece disposto a dar luta.
Quando Blair, num dos seus discursos seminais, proclama que o novo Labour "será duro com o crime e duro com as causas do crime", Brown reivindica a invenção da frase. Não entende que ninguém a conseguira fazer passar como o seu rival. Acredita, como sempre, que o que importa é a mensagem não o mensageiro.
"Granita. 750 pm"
A 13 de Maio de 1994, John Smith morre de um ataque cardíaco fulminante. No próprio dia, no seu apartamento de Londres, rodeado de colaboradores, assistindo às notícias sobre a morte do líder trabalhista, Gordon Brown começa a irritar-se com a frequência com que os jornalistas pronunciam a palavra "Blair". Convoca uma reunião de fiéis, que não quer que chegue aos ouvidos do seu ainda irmão-gémeo. A ideia de que não será ele o próximo líder é-lhe intolerável.
Dias depois, a 31 de Maio, uma assistente apanha do chão do seu gabinete um papel que provavelmente lhe caíra do bolso. Nele está apenas escrito: "Granita. 7.50 pm." Como é costume, chega atrasado ao restaurante. Vem de táxi com Edd Balls, um jovem oxfordiano e antigo colunista do Financial Times que se transformou no seu principal assessor (até hoje). Blair está sozinho numa mesa do fundo. Balls é mandado embora. Até ali, tinham feito tudo juntos, partilhado um gabinete, debatido ideias, viajado, imaginado o futuro.
Brown acabava de descobrir que tinha subestimado o seu "irmão gémeo". Era capaz de avaliar o intelecto dos outros e a sua lealdade. O resto, a imagem, o carisma, a capacidade de arriscar, o instinto mortal, era algo que desconhecia em absoluto. Ou melhor, era-lhe mais ou menos indiferente.
Quando chegou ao Granita sabia que tinha perdido a batalha. Já só levava em mente garantir o máximo de concessões ao seu rival a troco de deixar-lhe o campo livre para disputar a liderança. Queria muita coisa: não apenas o Tesouro como um droit de regard sobre a agenda interna. Obteve mais ou menos tudo isso. Os dias entre a morte de Smith e o jantar no Granita deixaram-no profundamente amargurado. Acreditou até ao fim naquilo que a imprensa, as sondagens e os amigos lhe desmentiam a todas as horas. Blair era o preferido. Do Labour, do país e da imprensa.
Tinha carisma, calor, uma família e aquela capacidade mágica de falar para a "middle England".
Ainda hoje ninguém sabe exactamente o que combinaram naquele jantar que determinou os últimos 15 anos. Brown pôs a correr que Blair lhe disse que não faria mais do que dois mandatos. Há quem diga que foi puro auto-convencimento para suportar melhor a derrota.
Unira-os a determinação de acabar com um partido envelhecido, distante das pessoas, condenado ao fracasso. Foi esta a sua grande obra em comum. A partir do momento em que tiveram de decidir quem chegaria ao topo, a sua parceria mudou de natureza.
"Controleiro maníaco"
Brown dirigiu Whitehall com mão-de-ferro. Ganhou a fama de "controleiro maníaco", "estalinista", político rude e implacável, rodeado por um círculo fechado de colaboradores capazes de lhe serem leais até à morte e de uma círculo vasto de inimigos (incluindo ministros), cujos egos foi deixando no campo de batalha à sua passagem. Maníaco do trabalho, devorador de teorias, livros e informação, desinteressado do lado social da vida política, só começou a humanizar-se no dia em que casou com Sarah Macaulay, a relações públicas que um dia se ofereceu para ajudá-lo a melhorar a imagem. Tinha 49 anos.
Em 2002, a sua primeira filha nasce prematura e morre dez dias depois. Com poucos meses de vida, é diagnosticada ao terceiro filho uma doença incurável. Vive a tragédia discretamente. Gordon Brown passa a ter vida privada. Da maneira talvez mais dolorosa.
Há duas coisas essenciais que falta dizer sobre este homem. Que foi o mais longo chanceler do Tesouro britânico desde 1813 e que presidiu a 10 anos de insolente crescimento económico do seu país. "Ele é talvez o mais bem sucedido chanceler da história deste país", disse Blair. Talvez por isso nunca o demitiu, nem quando a tentação foi grande nem quando a deslealdade de Brown foi demasiado visível. Brown vai ser coroado rei sem ter de travar batalha.

Sugerir correcção