Tony Blair

"Já disse, estas são as minhas últimas eleições. Nas próximas, o partido terá outro líder." É raro um líder político antecipar assim a própria saída de cena. O que leva Tony Blair, duas vezes eleito por uma maioria estonteante, a lutar por um terceiro mandato em circunstâncias que a guerra do Iraque tornou penosas? Podia contentar-se com o facto de já ser o primeiro-
-ministro trabalhista que serviu o país por mais tempo consecutivo. Podia sentir-se compensado por ter transformado a paisagem política britânica. O seu drama é que fez do Reino Unido um país mais rico, mais confiante, mais justo, mas corre o risco de vir a ser julgado e lembrado apenas pela guerra do Iraque. Muito pouco para uma carreira fora de série. Por Teresa de Sousa

Uma formação atípica

Quando, em 1983, Tony Blair foi pela primeira vez eleito para o Parlamento na circunscrição de Sedgfield, Nordeste de Inglaterra, não muito longe da cidade de Durham onde viveu uma infância protegida, o Labour acabava de sofrer a sua maior derrota de sempre. Ao decidir apresentar-se ao eleitorado com um manifesto que um dos seus deputados, numa frase que ficou célebre, definiu como "a mais longa nota de suicídio da História", o Labour apenas tinha de se culpar a si mesmo. Na plataforma política que apresentou aos britânicos, e que Blair subscreveu, propunha que o Reino Unido se retirasse da Comunidade Europeia, "clube de capitalistas", defendia o desmantelamento unilateral da força de dissuasão nuclear britânica, a nacionalização da grande indústria e da banca. O Partido Trabalhista ainda não conseguira digerir os últimos anos do governo de James Callaghan, que tinham mergulhado um país paralisado por greves no seu "inverno do descontentamento".
Blair sentia a força do apelo de Thatcher aos eleitores. A sua formação pessoal e política tinha pouco a ver com a "tribo trabalhista". O jovem deputado de 30 anos chegara ao partido por caminhos que nada tinham a ver com a velha tradição operária e sindical do Labour.
Anthony Charles Lynton Blair nasceu em Edimburgo a 6 de Maio de 1953 e cresceu numa família bem instalada na vida. O pai, Leo Blair, ensinava Direito na universidade e praticava advocacia com sucesso; era membro activo do Partido Conservador e agnóstico. Ele frequentou as melhores escolas privadas antes de chegar a Oxford para cursar Direito, em 1970. Também houve um lado sombrio. Leo Blair viu a sua promissora carreira política brutalmente interrompida aos 40 anos por uma doença grave que afectou a segurança económica da família. Mas ao jovem Tony faltava sofrer o golpe mais duro: a morte da mãe, quando ainda estudava.
Terá sido o ambiente de Oxford e os tempos (não muito) contestatários que então se viviam na universidade a empurrá-lo para o Labour? Ou foi o seu encontro com Cherie Booth, hoje Blair, num famoso escritório de advogado especialista em direito do trabalho e com fortes ligações aos sindicatos? Ou teria sido a descoberta da religião, nos anos de universidade, em longas conversas com um jovem pastor australiano?
Seja como for, é em Oxford, entre as discussões filosóficas e a paixão pela guitarra e pela música rock (previsivelmente, o seu ídolo é Mick Jagger), que Blair forjou uma das características mais determinantes da sua personalidade - e também a mais inesperada num político de esquerda de um país profundamente secular: a religiosidade. "É o único primeiro-ministro de que me consigo lembrar que acredita ao mesmo tempo em Deus e na família", dirá muitos anos depois um dos seus conselheiros mais próximos.
Os historiadores têm de recuar até às décadas finais do século XIX para encontrar outro ocupante do número 10 de Downing Street com convicções religiosas tão visíveis nas decisões políticas: William Gladston, líder do Partido Liberal que governou o império a maior parte do século. Blair faz dele uma das suas principais referências. No "intervencionismo humanitário" que inspirará a política externa britânica na passagem para o século XXI ecoa o "intervencionismo moral" de 1880. Vantagem ou desvantagem para um político do século XXI?
Por enquanto, o que interessa é que Blair chegou a Westminster por caminhos pouco comuns que fez questão de sublinhar no seu discurso de estreia: "Sou socialista, não porque li livros que prenderam o meu interesse intelectual, não por qualquer tradição, mas porque partilho os seus valores da cooperação em lugar do confronto." Nos anos seguintes, assistiu a mais duas pesadas derrotas eleitorais (1987 e 1992).
Quando o sucessor de Neil Kinnock, John Smith, morreu subitamente com um ataque cardíaco, a troika de "jovens turcos" que Blair formara com Gordon Brown (a sua eterna sombra e o seu sucessor designado) e com Peter Mandelson (um jovem produtor televisivo, hoje comissário do Comércio em Bruxelas) estava preparada par pôr as suas ideias em prática. Brown, mais velho, mais "intelectual", mais sério, parecia calhado para disputar a sucessão. O facto é que já então ninguém parecia resistir ao carisma e energia de Blair. Os jornais adoravam as suas ideias iconoclastas. O partido começava a admirar o seu estilo. Foi ele o escolhido.
O seu objectivo era simples: criar um partido moderno, capaz de apelar à classe média, liberto do domínio férreo dos sindicatos. "Não é nada complicada a verdadeira razão da derrota (de 1992). É muito simples e é a mesma desde 1979. Ninguém confia no Labour para realizar as aspirações da maioria das pessoas num mundo moderno." Era preciso um partido em condições de ter sucesso depois da revolução thatcheriana. Centrista, reformista, europeísta, que procurasse conjugar o liberalismo económico com a coesão social.
A influência de Clinton

Blair foi buscar inspiração ao outro lado do Atlântico, aos "novos democratas" do recém-eleito Bill Clinton, transformando-a na "terceira via". Os dois forjaram uma amizade que ainda hoje perdura. O seu estilo de liderança deixa o partido perplexo. Recusa-se a entrar em debates infindáveis sobre qual é a melhor política para isto ou para aquilo. Gosta de iniciar as reuniões com uma simples questão: "O que é que o partido pretende alcançar? Definam o objectivo e depois discutam os meios." O seu pensamento político assenta na ideia de que o que importa são os valores e os resultados - os programas e as políticas apenas interessam se permitem realizar esses valores. E que valores são esses? "Digo-vos que uma sociedade decente não se baseia em direitos. Baseia-se em deveres. O nosso dever para com os outros." Não é à doutrina socialista que Blair vai buscar inspiração. É, muito mais, às suas crenças religiosas e à tradição liberal, desta vez encarnada noutra das suas referências, David Lloyd George, outro líder liberal do início do século XX cujo espírito reformista e preocupações sociais admira profundamente. O seu desprezo pelas velhas divisões entre esquerda e direita é absoluto. O seu discurso sobre a "compaixão com ponta afiada" - "não toleramos crianças com fome mas também não toleramos gangs de jovens a perturbar a ordem pública" - toca a maioria dos britânicos. Os seus extraordinários dotes de comunicador, a sua estranha capacidade de dizer às pessoas aquilo que elas querem ouvir, o seu dinamismo, a sua juventude fazem resto.
Depois de 18 anos de oposição, Blair vence as eleições de 1 de Maio de 1997 por uma margem enorme. "Na manhã do dia 2, o Reino Unido acorda um país diferente", escreve Philip Stephens. "Uma vez numa geração uma eleição provoca um tremor de terra que altera completamente os contornos da política nacional. A vitória de Blair foi um desses momentos."
Quando Clinton o visita em Downing Street no Verão de 2000, Blair dirá: "Esta é a nova geração de líderes políticos. Uma geração que prefere a razão à doutrina, que é forte nos seus ideais mas indiferente à ideologia, cujo instinto é julgar o governo não por grandes desígnios mas por resultados práticos." Blair está no seu apogeu, reparte o palco do mundo com o seu amigo e mentor americano. Não quer apenas mudar o seu país. Quer mudar o mundo. "Mudar é o que é preciso fazer."

Verdadeiro ou fingido?

Poucos meses depois, uma tragédia vai dar início ao seu love affair com o povo britânico. No fim de Agosto, a princesa Diana morre num brutal acidente de viação em Paris. O país fica em choque. A família real não reage. Da porta da sua casa de campo, Blair faz um discurso que ficaria para a história. "Sinto-me hoje como qualquer outra pessoa. Estou profundamente chocado. Ela era a Princesa do Povo e é assim que permanecerá, é assim que ficará para sempre nos nossos corações e na nossa memória." A escolha das palavras, o tom das palavras, o momento das palavras foram perfeitos. Tão perfeitos que, daí em diante, vai ser perseguido por uma dúvida metódica: "onde acaba o actor e começa o verdadeiro político"? A sua popularidade tem um reverso. Os críticos chamam-lhe artificial, vazio, apenas capaz de governar de acordo com as sondagens, um mero produto de marketing. Hoje, essa tese já desapareceu e até os seus mais duros opositores reconhecem que têm pela frente um homem com profundas convicções. Se dúvidas houvesse, a guerra do Iraque tê-las-ia dissipado.
Escreve Philip Stephens: "A 18 Março de 2003, a atmosfera na sala dos Comuns é eléctrica. As bancadas apinhadas. Blair preparava-se para levar o seu país para a guerra ao lado de George W. Bush." Exausto, derrotado pelo fracasso de não ter conseguido a segunda resolução do Conselho de Segurança da ONU, o primeiro-ministro prepara-se para jogar o seu futuro político. O sentimento adverso da opinião pública, expresso numa manifestação de um milhão de pessoas nas ruas de Londres três dias antes, as divisões do Labour, as defecções do governo, a rebelião dos deputados, tudo está contra ele. Blair mantinha-se inamovível: a guerra era "a coisa certata". Moralmente e estrategicamente. Fazem-se planos de contingência para a sua demissão. Se mais de metade da bancada do Labour votasse contra a guerra, Blair não tinha condições para continuar. Fez nos Comuns um dos discursos mais impressionantes da sua vida.
Mas isso faz parte da história recente. Blair foi o mais convincente defensor de uma guerra que acabou por travar nas circunstâncias que menos desejava. Em finais de 2003, a imprensa britânica escrevia que não chegaria ao Natal. A ausência de armas de destruição maciça, o caótico pós-guerra, o suicídio do cientista David Kelly, as dúvidas sobre a honestidade com que tratou publicamente as informações dos serviços secretos para defender a outrance a necessidade de derrubar Saddam, quebraram definitivamente a sua aura. Jogou com coragem e com convicção, mas perdeu.

"Um farol do bem"

Em Fettes, uma das mais prestigiadas e conservadoras public schools escocesas (o que, na Grã-Bretanha, quer dizer "privadas"), Blair foi educado para acreditar na missão civilizadora do Reino Unido. Tal como o antigo primeiro-ministro conservador Harold Macmillan, depois da crise do Suez (1956), acreditava que, depois do império, o papel da Grã-Bretanha era ser "a Grécia da Roma americana". Duas ideias fundamentais sustentaram a sua opção por apoiar Bush até ao fim: primeiro, "amarrar" os EUA à comunidade internacional, não os deixando sozinhos na resposta ao 11 de Setembro; segundo, "fazer o que estava certo", e o que estava certo era livrar o mundo de um ditador sanguinário, um perigo para a região e para o mundo, que ousava desafiar sistematicamente a comunidade internacional.
Em matéria de política internacional, Blair mostra uma extraordinária indiferença pelos cálculos da realpolitik. Acha, como Gladstone, que as democracias ocidentais têm deveres perante esse mundo, que extravasam ou "iluminam", como diz, o seu interesse próprio. Na Serra Leoa, no Kosovo, no Afeganistão, no Iraque, acredita que existem circunstâncias em que a utilização da força militar pode ser um "imperativo moral". Em 1999, foi o único a defender uma intervenção terrestre no Kosovo, em vez dos bombardeamentos pouco eficazes contra a Sérvia de Milosevic. Confrontou duramente Clinton com esse objectivo, sem sucesso. O Kosovo serve-lhe para formular a sua "doutrina da comunidade internacional":"A guerra para derrubar Milosevic é uma guerra justa, justificada, não em ambições territoriais, mas em valores."
"Nunca percebi por que é que as pessoas de esquerda não apoiaram a guerra contra Saddam", desabafou uma vez. Do mesmo modo que nunca percebeu "por que é que a França era tão indiferente às constantes violações das resoluções das Nações Unidas cometidas por Saddam". O Iraque será, no entanto, o seu maior falhanço.
A sua última campanha poderá resumir-se assim: todos os dias Blair tentou atrair as atenções dos britânicos para os êxitos da sua política interna; todos os dias alguma coisa haveria de atrair as atenções para a guerra no Iraque.
Se hoje vencer, será o único líder do Labour a conseguir um terceiro mandato. E ganhará mais algum tempo para tentar alterar o seu epitáfio político.

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