Fortaleza com cocos e pé na água
Ruínas no meio da selva e até ao mar, ali à mão de os portugueses fugirem. Alexandra Lucas Coelho
em Chaul
a Chaul tem lenda.É São Francisco de Assis que aqui rezou pela última vez e a monumental muralha ao longo da praia. São os conventos a serem comidos e torres, frescos, relevos a ganharem raízes. Será haver pouca gente que está lá e sabe, e menos gente ainda que sabe e já lá esteve.
Uma aspiração, mesmo para alguns investigadores da presença portuguesa, no próximo ano em Chaul...
Indo de Bombaim - com os arquitectos Walter Rossa, líder da expedição à Índia em Fevereiro (Pública de 25/02), e Sidh Mendiratta, português, de pai indiano -, o primeiro barco para sul sai às 6h15, e vai pela costa lentamente quando o sol já se levanta amarelo-eléctrico.
Em Revas, cais de chegada, junta-se uma multidão (não estava no barco, de onde saiu?) à volta do único autocarro disponível e que naturalmente viveu tanto como o Estado da Índia. Menos afoitos e mais atrasados vão de pé. Lotação até encher, e de porta aberta, como convém aos transportes locais, por falta de espaço e excesso de calor.
Os autocarros acabam em Alibag. A partir daí, moto-riquexó até Chaul.
Primeira imagem, uma selva. Primeiro som, catanas. Por cada golpe cai um coco lá do muito alto, onde está o sol. Homens enroscados nos troncos sobem e descem de lâmina na mão. Pássaros, corvos, clamor a toda a volta e por cima, num lusco-fusco verde.
Anda-se devagar, alerta, levantando os olhos.
Menos Walter, com o seu radar de ruínas portuguesas virado para terra. É assim que neste momento apanha um pedacinho de azulejo azul e branco.
- Este não tenho dúvidas de que é coisa do século XVII.
Os portugueses chegaram aqui por alturas de 1521. Primeiro uma feitoria, depois ordens religiosas, depois fortes e fortalezas para as defender, a história repete-se no Oriente.
Em Chaul - que fazia parte da Província do Norte do Estado da Índia, com capital em Baçaim - seria importante, por exemplo, a construção naval com madeira de teca, realça Walter, autor de um livro sobre as cidades fortificadas na Índia portuguesa.
Artilharia tuga
No meio das palmeiras começam a aparecer fachadas altas, ocres, negras. Arcos cobertos de ervas, torres num abandono luxuriante, a janela que foi da Misericórdia, a porta que foi do Convento dos Agostinhos, hoje uma nave fantástica de que sobram três paredes a dar para o céu.
Passa uma indiana de sari cor de cereja e trouxa na cabeça. Homens nas árvores, mulheres em caminho, aqui um tecido junto a um resto de igreja, ali uma escada aproveitando a firmeza das pedras, adiante uma rapariga a lavar os pés na fonte.
Tudo vivo entre ruínas como se a ruína fosse invisível ou a ordem natural das coisas.
- Isto é o tipo de contraforte que se fazia na primeira metade do século XVI - diz Walter, mãos na cintura, avaliando em volta - Se eles pegassem em Baçaim e Chaul do ponto de vista turístico... Mas roupa suja lava-se em casa. Não tenho moral, como português. Na minha terra demoliu-se uma casa do século XVII e venho para a Índia chorar?
Prosseguindo, a imponente torre dos franciscanos, cheia de troncos enrodilhados, verdejando. E lá dentro, onde não há tecto:
Duas peças de artilharia! - Sidh e Walter experimentam-nas com os pés. O que um leigo chamaria canhões.
- Por acaso têm um ar tuga.
Walter olha o céu entre as paredes.
- Espantoso não é?, uma cidade que funcionou durante 200 anos...
Bem mais à frente, passando pelos indianos que jogam críquete junto à praia, por mulheres que acartam areia e contornando várias vacas, outra torre.
Walter:
- Apresento-lhes o que sobra dos jesuítas! E é evidente que como eles sempre tiveram sentido de lucro construíram isto aqui ao lado...
Sand Top Hill Resort, promete um cartaz.
Uma palmeira gigante caiu junto à nave central do Convento dos Dominicanos, que se desdobra em capelas laterais.
- E ainda lhes dou frescos do século XVII - Walter de nariz no ar, mirando o carmim num resto de abóbada - Só para amigos...
Aproxima-se um cavalheiro de camisa branca e mãos atrás das costas.
- Esta é a minha terra. Veio do meu pai, que a comprou - diz em bom inglês.
Vaidhya Ashoka, 64 anos aqui nascidos. Herdou a terra e com ela os dominicanos, salvo seja. Aponta os frescos:
- Há 500 anos pintaram qualquer coisa aí.
Walter dá-lhe um cartão de visita e ele fica a observá-lo longamente.
- Estamos um metro acima do chão original - diz-lhe Walter, apontando a altura das portas.
O senhor Ashoka nem quer ouvir falar nisso.
- No. Totally original.
Encaminha para a casa dele, mesmo ali ao lado. Uma casinha que é mais um grande quarto, com uma cama elementar. Procura entre os seus haveres e regressa com a fotocópia de um livro em português do século XVII.
Sidh e Walter ajudam à decifração:
"Por haver morado neste lugar São Francisco Xavier passou ao norte e fez esta ermida. Dom Gil Eanes sendo capitão desta fortaleza para memória e louvor do santo ano de 1640."
Sidh traduz para o senhor Ashoka e mostra-lhe ainda o mapa da arqueóloga alemã que mais trabalhou em Chaul e indica as várias ruínas.
- Aqui a capela...
E o senhor Ashoka:
- Capela.
- Em 1521...
E o senhor Ashoka:
- 1521.
E por aí fora.
Mas a visita ainda não está terminada.
Falta uma outra casa, maior.
O senhor Ashoka abre a porta para uma camarata com chão de pedra e ventoinha, o essencial.
- Aqui cinco camas...
Escancara a porta ao lado
- Aqui outras cinco...
Lá à frente a casa de banho de buraco no chão.
É o Ashoka Lodge.
Cartão-postal
Trilhos de folhas com homens e mulheres de crianças ao colo, deuses indianos sobre as portas, mais uma capela, mais um arco - e então o mar.
Aí termina a fortaleza de Chaul com uma muralha em cima da praia. Espuma branca, praia dourada, pedra negra com tufos de coqueiros a transbordar para a água, que brilha ao sol.
Walter e Sidh abrem na areia os primeiros passos da manhã.
- Chaul era uma cidade importante com certeza, a Igreja
dos Agostinhos demonstra a qualidade da arquitectura e o dinheiro que devia circular aqui. Mas o facto de não ser património classificado faz com que não haja qualquer tipo de protecção. As coisas estão limpas porque são propriedade de privados, mas estão por estudar.
E se do ponto de vista da arquitectura interessa muito, como cartão-postal é magnético, dos "sítios mais bonitos da presença portuguesa", na avaliação de Walter.
Que, em suma, e no meio da praia, conclui:
- É a Índia portuguesa com os pés no mar e toda a gente pronta a fugir.