Tudo e um par de botas
Odomingo é dia bom para leituras calmas e para folhear jornais. Saí à rua cedo e vi que a manchete do Correio da Manhã era "Atraso na Justiça liberta homicida". E o PÚBLICO, na página 16, titulava "Protestos, greves e descontentamento na abertura dos tribunais", confirmando que juízes e procuradores vão entrar em greve. Na véspera, encontrei um conselheiro do Supremo Tirbunal de Justiça e um procurador da República (ambos da minha criação conimbricense) que se mostravam chocados com este anúncio de greve e com os efeitos devastadores que para a imagem das profissões judiciárias ela acarretará.Dediquei três anos da minha vida à luta pela reforma da Justiça, como é sabido. Senti que os advogados estavam mobilizados para um processo reformista, apesar da resistência dos mais conservadores, e entre estes dos mais privilegiados. Encontrei em muitos magistrados (mas muito pouco nas direcções dos seus sindicatos, com honrosas excepções) uma intensa vontade reformista, que nascia da constatação de que o sistema judicial estava a bater no fundo.
Há 30 anos que calcorreio os tribunais de norte a sul e por isso conheço, estimo e admiro magistrados (desde os que então podiam ser meus pais aos que poderiam agora ser meus filhos). Vejo o trabalho que muitos deles fazem e conheço as condições adversas que os condicionam, quando estão a fazer justiça em nome do povo. Disse vezes sem conta que, se toda a administração pública trabalhasse tanto em média como os juízes, tudo poderia ser diferente. E sei de injustiças -- do sistema remuneratório que ficou bloqueado pelo medo dos políticos em se aumentarem a si próprios.
Por isso mesmo sinto-me obrigado a abandonar o silêncio que tenho guardado para deixar escrito o meu profundo e ponderado protesto contra a inadmissível atitude dos sindicatos dos magistrados de decidirem uma greve e de a fazerem pelas razões corporativas e de defesa de vantagens que os motivam.
De facto, as magistraturas portuguesas resolvem fazer greve porque foi alterado o regime das impropriamente chamadas "férias judiciais", porque vai ser alterada a idade da sua reforma e porque vão ficar abrangidos pelo ADSE, em vez de terem um regime que se pressupõe mais favorável.
É evidente que a estratégia de marketing que vão aplicar vai falar em todos os males da Justiça. Mas isso não será mais do que uma cortina de fumo para tornar mais aceitável pelas populações e pelos opinion makers os manifestos prejuízos que vão causar com a sua atitude ao Estado de direito e aos cidadãos.
Sei do que falo. Durante os três anos em que fui bastonário estive obrigado a contactar com muita regularidade com os dirigentes sindicais das magistraturas. Por várias vezes os tentei mobilizar para uma luta conjunta com os advogados pela defesa do Estado de direito e pelo reforço das condições de cidadania. Muitas vezes apelei para um combate conjunto contra as reformas erradas, mal preparadas ou injustas, como era o caso da lei da acção executiva, da lei das custas judiciais ou da falta de condições tecnológicas dos tribunais para as reformas nessa sede. Nunca consegui que se mobilizassem ou que arriscassem - já não digo uma greve - ao menos uma acção visível de confronto com quem, podendo, não corrigia erros. E ainda menos consegui que - como colegas seus de outros países - fizessem, já não direi uma greve, mas ao menos ouvir a sua voz contra as violações do regime legal das escutas telefónicas, contra os abusos das prisões preventivas, contra as violações constantes e impunes do segredo de justiça, contra a denegação do acesso ao direito.
Pedi, vezes sem conta, que nos juntássemos para fazer propostas concretas de reforma do sistema judicial, que o melhorassem e que - partindo das profissões - obrigassem o poder político a mudanças orientadas pelos interesses dos cidadãos e pelo reforço do Estado de direito. Arrastando penosamente as direcções sindicais (sobretudo, sejamos justos, a dos Magistrados Judiciais), lá conseguimos que fosse impossível que se não realizasse o Congresso da Justiça. Mas, como é evidente, o que já não consegui foi que depois eles aceitassem continuar - como fora acordado e assinado solenemente - os trabalhos numa senda de propostas concretas de reformas.
Confrontado com a total recusa da ministra da Justiça Celeste Cardona em iniciar qualquer processo reformista (apesar de o primeiro-ministro Durão Barroso, no encerramento do Congresso da Justiça, ter anunciado que 2004 ia ser o ano das reformas da Justiça!), lancei uma campanha para revelar a tragédia dos atrasos da Justiça, como aqueles a que - e muito bem - o Correio da Manhã deu relevo exemplificativo. Chamei-lhe "Galeria dos Horrores". Durante meses - sempre com o cuidado de clarificar que não estava a culpar ninguém em concreto - revelei diariamente situações chocantes de pura denegação de justiça. A "Galeria dos Horrores" era enviada a todas as personalidades e entidades com responsabilidades no mundo da Justiça, entre os quais os sindicatos que agora se unem para fazer greve.
Os casos concretos revelavam que o problema não podia ser originado em especial nos que nos tribunais trabalham, pois a dimensão é tal que só com base numa teoria da conspiração se poderia concluir que a causa está nas pessoas), mas num sistema que tinha rebentado, tinha entrado em entropia ou revelava comportamentos cancerígenos. Mas nunca consegui dos sindicatos dos magistrados outra reacção que não fosse a de acharem que eu estava a culpar juízes e procuradores. Sobretudo, nunca os vi disponíveis - já não direi para uma greve - para um protesto formal acompanhado de propostas de mudança.
Esta greve demonstra que os magistrados portugueses (através dos seus representantes legítimos) desejam ser "funcionários", um pouco à medida do paradigma do Estado de direito liberal oitocentista. Curiosamente, querem ter todos os direitos e privilégios dos funcionários públicos, mas ao mesmo tempo todas as prerrogativas de quem integra um órgão de soberania. E isso, ter tudo e o seu contrário (ou, usando a linguagem popular, "tudo e um par de botas"), é que não é admissível. Magistrados que fazem greves querem ser tratados como funcionários. Não querem ser responsáveis pela concretização historicizada de uma função soberana. E não podem ser tratados como tal.
É claro que há muito mal-estar nas magistraturas e que há razões mais do que suficientes para que quem dedica a sua vida à Justiça se sinta frustrado e revoltado. É também possível afirmar que o Governo tem falhado na articulação e na abertura a propostas de reformas oriundas das profissões (mas onde estão elas?). Mas nada disso justifica um erro histórico, que terá consequências muito mais profundas do que insensatamente os putativos grevistas imaginam.
Tenho a certeza que a voz dos advogados portugueses, através do seu legítimo representante, acabará por se fazer ouvir (se é que não se ouviu já entre o dia em que escrevo e o dia em que posso ser lido) contra a greve - apesar de em declarações ao PÚBLICO, neste dia em que escrevo, contornar a questão. E acredito que magistrados prestigiados e respeitados (como os meus amigos que atrás refiro) poderão ainda exercer um magistério de influência. Admito, por isso, que esta greve pode ainda esvanecer-se na bela bruma do fim do Verão. Foi também para apelar nesse sentido que deixo este testemunho. Ex-bastonário dos Advogados