Luzes e sombras de uma insurreição
O sequestro do navio português "Santa Maria" em 1961 por um grupo de militantes do DRIL (Directório Revolucionário Ibérico de Libertação) ainda hoje desafia o engenho e entendimento dos estudiosos que não conseguem explicar qual seria exactamente o plano dos insurrectos: se uma acção de força em grande escala contra um dos bastiões ultramarinos de Portugal e Espanha em articulação com uma potência estrangeira ou se, se pelo contrário, se traduziria tão-somente (como veio a acontecer) num golpe publicitário destinado a denunciar ao mundo as ditaduras de Salazar e Franco. Talvez algumas pistas ajudem a clarificar estas dúvidas. Do plano original delineado na Venezuela nada se sabe, contudo o que se pode perceber é que os testemunhos de alguns dos protagonistas dessa aventura são, em regra, mais contraditórios do que esclarecedores, por vezes até redundantes, como se todos os portugueses envolvidos quisessem ocultar algo de significativo nessa história. Realmente os silêncios a que temos assistido revelam embaraços sintomáticos. Ainda antes da captura do barco, a relação entre espanhóis e portugueses achava-se ensombrada por uma grande tensão. Especialmente entre os membros da estrutura de comando, composta por Velo Mosquera, Fernández Vásquez e capitão Henrique Galvão. A enervação começou em terra, relata Antonio Piñero, biógrafo de Velo Mosquera. Numa atitude classificada de inconsequente, Galvão induziu a sua secretária a entrar em contacto com o representante da embaixada portuguesa em Caracas a pedir-lhe financiamentos para o DRIL. Uma situação grave que punha em risco o início da operação, tanto mais que se tratava de uma violação ao pacto de sigilo em torno do "Santa Maria". Verdade ou não, o certo é que este misterioso episódio levou os espanhóis a vigiar os passos daquela mulher, enquanto o clima de desentendimentos com Galvão cresceu, marcado essencialmente por diferenças de ideias e opiniões quanto aos fins do sequestro.A bordo quem ditava ordens era Velo Mosquera. Galvão foi incumbido de aparecer ao mundo como porta-voz do grupo em virtude da nacionalidade do navio. Que rumo tomar? Ir para Angola e criar ali uma base operacional, como geralmente se sugere? Já demonstrei em artigo publicado há dois anos no "Diário de Notícias" que essa versão é insustentável e historicamente inverossímil. Onde estavam as tropas e o armamento capazes de assegurar o desembarque num ponto-chave da costa angolana? O grupo rebelde totalizava 24 pessoas e apenas 14 eram portadoras de armas. Um número assaz desproporcionado para um plano tão vasto. Sem dúvida que a esperança eram os cubanos, mas cedo esse sonho se dissipou antes do navio deixar as águas do Caribe.Realmente, parece ter havido promessas de apoio ao DRIL pelo comandante do exército cubano, Eloy Gutiérrez Menoyo. Este ex-combatente da serra de Escambray reuniu-se em Liège, em Agosto de 1960, com o espanhol Rafael Rojo Ruiz, chefe do DRIL naquela cidade, e com vários outros revolucionários. O que concretamente saiu desse encontro não se sabe. De qualquer modo, os fios de ligação com Cuba reforçavam-se. Já antes, em Abril de 1959, o capitão português Fernando Queiroga Chaves estivera em Havana em representação do general Humberto Delgado, então presidente do Movimento Nacional Independente (MNI). Das personalidades contactadas, destacam-se comunistas espanhóis, veteranos da guerra civil de Espanha, nomeadamente Alberto Bayo, assessor militar de Fidel Castro, "conhecido nos meios revolucionários da América Latina por general Bayo". Ele e Velo Mosquera estimavam-se muito, já que ambos haviam partilhado de uma rica experiência política na Venezuela. Por conseguinte, o envolvimento de soldados cubanos no plano "Santa Maria" era desejado pela facção espanhola do DRIL. Queiroga Chaves, um pró-castrista, considerava igualmente pertinente uma operação militar de grande vulto com a participação cubana. De acordo com a revista "Bohemia", o objectivo seria Angola.Foi justamente neste ponto que Henrique Galvão parece ter divergido dos seus correligionários. No íntimo não lhe interessava senão uma operação de publicidade, o mais espectacular possível. Conseguiu o seu intento sob a asa protectora dos Estados Unidos que, ao saber dos preparativos do DRIL, accionou os dispositivos adequados - Marinha e Força Aérea - a fim de prevenir que o navio aportasse a Havana e recebesse tropas. O resto foi pura encenação, incluindo o artifício de que Galvão desembarcaria em África.Quem denunciou o plano à CIA e ao Pentágono? Eis a grande dúvida. O regime de Fidel Castro lançou a culpa em Gutiérrez Menoyo - o qual, pouco antes do sequestro do "Santa Maria" a 22 de Janeiro, se exilou em Miami criando em poucos meses, com respaldo americano, a organização "Alfa 66" que se tornou conhecida pelas suas acções de insurgência em território cubano. A ser verdade este facto, talvez outras delações não sejam de excluir.